O mártir Jesus: Senhor Crispiniano E. de Jesus
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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De acordo com a tática adotada nos anos anteriores Crispiniano B. de Jesus
vinte dias antes do carnaval chorou miséria na mesa do almoço perante a família
reunida:
— As coisas estão pretas. Não há
dinheiro. Continuando assim não sei aonde vamos parar!
Fifi que procurava na Revista da Semana um modelo de fantasia
bem bataclã exclamou mastigando o palito:
— Ora, papai! Deixe disso...
A preta de cabelos cortados trouxe o
café rebolando. Dona Sinhara coçou-se toda e encheu as xícaras.
— Pra mim bastante açúcar!
Crispiniano espetou o olhar no
Aristides. Espetou e disse:
— Pois aí está! Ninguém economiza
nesta casa. E eu que aguente o balanço sozinho!
A família em silêncio sorveu as
xícaras com ruído. Crispiniano espantou a mosca do açucareiro, afastou a
cadeira, acendeu um Kiss-Me-De-Luxo, procurou os chinelos com os pés. Só achou
um.
— Quem é que levou meu chinelo daqui?
A família ao mesmo tempo espiou
debaixo da mesa. Nada. Crispiniano queixou-se duramente da sorte e da vida e
levantou-se.
— Não pise assim no chão, homem de
Deus!
Pulando sobre um pé só foi até a
salinha do piano. Jogou-se na cadeira de balanço. Começou a acariciar o pé
descalço. A família sentou-se em torno com a cara da desolação.
— Pois é isso mesmo. Há espíritos
nesta casa. E as coisas estão pretas. Eu nunca vi gente resistente como aquela
da Secretaria! Há três anos que não morre um primeiro-escriturário!
Maria José murmurou:
— É o cúmulo!
Com o rosto escondido pelo jornal
Aristides começou pausadamente:
— Falecimentos. Faleceu esta madrugada
repentinamente em sua residência à Rua Capitão Salomão nº 135 o
Senhor Josias de Bastos Guerra, estimado primeiro-escriturário da...
Crispiniano ficou pálido.
— Que negócio é esse? Eu não li isso
não!
Fifí já estava atrás do Aristides com
os olhos no jornal.
— Ora bolas! É brincadeira de
Aristides, papai.
Aristides principiou uma risada
irritante.
— Imbecil!
— Não sei por que...
— Imbecil e estúpido!
Da copa vieram gritos e latidos
desesperados. Dona Sinhara (que ia também descompor o Aristides) foi ver o que
era. E chegaram da copa então uivos e gemidos sentidos.
— O que é, Sinhara?
Não é nada. O Totônio brigando com
Seu-Mé por causa do chinelo.
— Traga aqui o menino e ponha o
cachorro no quintal!
O puxão nas orelhas do Totônio e a
reconquista do chinelo fizeram bem a Crispiniano. Espreguiçou-se todo. Assobiou
mas muito desafinado. Disse para Fifi:
— Toque aquela valsa do Nazaré que eu
gosto.
— Que valsa?
— A que acaba baixinho.
Carlinhos fez o desaforo de sair
tapando os ouvidos.
As meninas iam fazer o corso no
automóvel das odaliscas. Ideia do Mário Zanetti pequeno da Fifi e primogênito
louro do Seu Nicola da farmácia onde Crispiniano já tinha duas contas atrasadas
(varizes da Sinhara e estômago do Aristides).
Dona Sinhara veio logo com uma das
suas:
— No Brás eu não admito que vocês vão.
— Que é que tem demais? No carnaval
tudo é permitido...
— Ah! é? Eta falta de vergonha, minha
Nossa Senhora!
Maria José (segunda-secretária da
Congregação das Virgens de Maria da paróquia) arriscou uma piada pronominal:
— Minha ou nossa?
— Não seja cretina!
Jogou a fantasia no chão e foi para
outra sala soluçando.
Totônio gozou esmurrando o teclado.
O contínuo disse:
— Macaco pelo primeiro.
Abaixou a cabeça vencido. Sim, senhor.
Sim, senhor. O papel para informar ficou para informar. Pediu licença ao
diretor. E saiu com uma ruga funda na testa. As botinas rangiam. Ele parava,
dobrava o peito delas erguendo-se na ponta dos pés, continuava. Chiavam. Não há
coisa que incomode mais. Meteu os pés de propósito na poça barrenta. Duas
fantasias de odalisca. Duas caixas de bisnaga. Contribuição para o corso.
Botinas de cinquenta mil-réis. Para rangerem assim. Mais isto e mais aquilo e o
resto. O resto é que é o pior. Facada doída do Aristides. Outra mais razoável
do Carlinhos. Serpentina e fantasia para as crianças. Também tinham direito.
Nem carro de boi chia tanto. Puxa. E outras coisas. E outras coisas que iriam
aparecendo.
Entrou no Monte de Socorro Federal.
Auxiliado pela Elvira o Totônio tanta
malcriação fez, abrindo a boca, pulando, batendo o pé, que convenceu Dona
Sinhara.
— Crispiniano, não há outro remédio
mesmo: vamos dar uma volta com as crianças.
— Nem que me paguem!
O Totônio fantasiado de caçador de
esmeraldas (sugestão nacionalista do Doutor Andrade que se formara em Coimbra)
e a Elvira de rosa-chá ameaçaram pôr a casa abaixo. Desataram num choro sentido
quebrando a resistência comodista (pijama de linho gostoso) de Crispiniano.
— Está bem. Não é preciso chorar mais.
Vamos embora. Mas só até o Largo do Paraíso.
Na Rua Vergueiro Elvira de ventarola
japonesa na mão quis ir para os braços do pai.
— Faça a vontade da menina,
Crispiniano.
Domingo carnavalesco. Serpentinas nos
fios da Light. Negras de confete na carapinha bisnagando carpinteiros
portugueses no olho. O único alegre era o gordo vestido de mulher. Pernas
dependuradas da capota dos automóveis de escapamento aberto. Italianinhas de
braço dado com a irmã casada atrás. O sorriso agradecido das meninas feias
bisnagadas. Fileira de bondes vazios. Isso é que é alegria? Carnaval paulista.
Crispiniano amaldiçoava tudo. Uma
esguichada de lança-perfume bem dentro do ouvido direito deixou o Totônio
desesperado.
— Vamos voltar, Sinhara?
— Não. Deixe as crianças se divertirem
mais um bocadinho só.
Elvira quis ir para o chão. Foi.
Grupos parados diziam besteiras. Crispiniano com o tranco do toureiro quase
caiu de quatro. E a bisnaga do Totônio estourou no seu bolso. Crispiniano ficou
fulo. Dona Sinhara gaguejou revoltada. Totônio abriu a boca. Elvira sumiu.
Procura-que-procura.
Procura-que-procura.
— Tem uma menina chorando ali adiante.
Sob o chorão a chorona.
— O negrinho tirou a minha ventarola.
Voltaram para casa chispando.
Terça-feira entre oito e três quartos
e nove horas da noite as odaliscas chegaram do corso em companhia do sultão
Mário Zanetti.
Crispiniano com um arzinho triunfante
dirigiu-lhes a palavra:
— Ora até que enfim! Acabou-se, não é
assim? Agora estão satisfeitas. E temos sossego até o ano que vem.
As odaliscas cruzaram olhares
desalentados. O sultão fingia que não estava ouvindo.
Maria José falou:
— Nós ainda queríamos ir no baile do
Primor, papai...
Será possível?
— Ahn? Bai-le do Pri-mor?
Dona Sinhara perguntou também:
— Que negócio é esse?
— É uma sociedade de dança, mamãe. Só
famílias conhecidas. O Mário arranjou um convite pra nós...
Deixaram o sultão todo encabulado no
tamborete do piano e vieram discutir na sala de jantar.
(Famílias distintas. Não tem nada
demais. As filhas de Dona Ernestina iam. E eram filhas de vereador. Aí está.
Acabava cedo. Só se o Crispiniano for também. Por nada deste mundo. Ora essa é
muito boa. Pai malvado. Não faltava mais nada. Falta de couro isso sim. Meninas
sem juízo. Tempos de hoje. Meninas sapecas. O mundo não acaba amanhã.
Antigamente — hein Sinhara? — antigamente não era assim. Tratem de casar
primeiro. Afinal de contas não há mal nenhum. Aproveitar a mocidade. Sair antes
do fim. É o último dia também. Olhe o remorso mais tarde. Toda a gente se
diverte. São tantas as tristezas da vida. Bom. Mas que seja pela primeira e
última vez. Que gozo.)
No alto da escada dois sujeitos
bastante antipáticos (um até mal-encarado) contando dinheiro e o aviso de que o
convite custava dez mil-réis mas as damas acompanhadas de cavalheiros não
pagavam entrada.
Tal seria. Crispiniano rebocado pelo
sultão e odaliscas aproximou-se já arrependido de ter vindo.
— O convite, faz favor?
— Está aqui. Duas entradas.
O mal-encarado estranhou:
— Duas? Mas o cavalheiro não pode
entrar.
Ah! isso era o cúmulo dos cúmulos.
— Não posso? Não posso por quê?
— Fantasia obrigatória.
E esta agora? O sultão entrou com a
sua influência de primo do segundo vice-presidente. Sem nenhum resultado.
Crispiniano quis virar valente. Que é que adiantava? Fifi reteve com
dificuldade umas lágrimas sinceras.
— Eu só digo isto: sozinhas vocês não
entram!
O que não era mal-encarado sugeriu
amável:
— Por que o senhor não aluga aqui ao
lado uma fantasia?
Crispiniano passou a língua nos
lábios. As odaliscas não esperaram mais nada para estremecer com pavor da
explosão. Todos os olhares bateram em Crispiniano B. de Jesus. Porém
Crispiniano sorriu. Riu mesmo. Riu. Riu mesmo. E disse com voz trêmula:
— Mas se eu estou fantasiado!
— Como fantasiado?
— De Cristo!
— Que brincadeira é essa?
— Não é brincadeira: é ver-da-de!
E fez uma cara tal que as portas do
salão se abriram como braços (de uma cruz).
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