10/08/2017

Os dois pescadores (Conto), de Júlio César Machado


Os dois pescadores 

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I
É preciso ver Lessa da Palmeira, ao cair da tarde, quando o sol beija saudoso a costa, depois de se despedir do rio, e as mulheres dos pescadores, concertando as redes na praia, entoam as canções da noite!

Toda a gente vos dirá que é no tempo dos banhos, quando uma grande parte da sociedade do Porto para ali vai habitar, e consegue dar à vila o bulício, a vida, a elegância — toda a gente vos dirá que é nesse tempo que deveis ver Lessa. Eu, não. Nem o meu conto ia entender-se com a sua ação simples e vaga, se eu não vos dissesse já que tudo isto vai ler-se, se passou em princípios de junho, mês em que a sociedade já não dança nas cidades, mas em que a natureza é a elegante!...

Não é uma coisa fácil, por fim de tudo, descrever Lessa em toda a sua feição melancólica e marítima. Não se sabe bem, ao vê-la se é uma rica vila, se uma pobre aldeia. Por entre choupanas humildes, erguem-se prédios magníficos. Dir-se-ia o sorriso do luxo a insultar as lágrimas da miséria, se a melhor poesia deste lugarejo não consistisse exatamente neste singular contraste, cuja explicação forma o seu louvor.

Eis o segredo:

Lessa é uma terra de pescadores: cada um dos barqueiros da costa tem ali a sua cabana, onde procura no seio da família o esquecimento das lutas do mar e a serena alegria do amor doméstico, Às vezes, estes pescadores cansados dos perigos, ou levados pela ambição, embarcam como marinheiros, a bordo de algum brigue, e vão ao Brasil procurar fortuna. Mas, antes de partirem, cada um deles ajoelhando diante da capela do Senhor dos Aflitos — que fica situada na praia, olhando sempre o mar — dirige a Deus a promessa de no caso de voltar rico da terra para onde parte pobre, edificar um opulento prédio no sítio em que deixa a sua cabana.

A crença popular conserva e aumenta de dia para dia a fé consagrada a esta capelinha, que as ondas banham quando o mar vai alto. Foi junto dela,que se encontrou o braço do Senhor de Matosinhos. Por que se chama Senhor de Matosinhos, é que eu ignoro: a crônica — que não é pequena aliás, e forma um grave volume de quatrocentas páginas in. 49, de que o único exemplar que resta se mostra por curiosidade a quem visita a igreja — denomina-o Bom Jesus de Bouças.

Como é a história do braço do Bom Jesus de Bouças, ou Senhor de Matosinhos, ou mesmo Senhor dos Aflitos, como se vê da história que ao princípio lhe chamavam? Oh! Uma simples tradição, uma lenda toda infantil; meio graciosa, meio ingênua; galante quase: nem muito séria, nem irrisória: levemente fantástica; coisa entretida de ouvir; que não dá nem tira às coisas deste mundo; e que, em todo o caso, quem não quiser estar sério pode dispensar-se de ler!

O Senhor de Bouças perdera um braço. Ele estava na sua igreja, bem agasalhado; bem servido, bem festejado — mas, pobre Bom Jesus, faltava-lhe o seu braço: um dos seus braços: se era o direito ou esquerdo é o que eu fiz mal em não indagar, mas a verdade fiel é que os meus apontamentos nada me dizem sobre isso.

Tinha a gente dos arredores mágoa veemente que tão bom Senhor assim se visse privado da satisfação de ser completo. As velhas do sítio — e se há sítio em que tenha havido velhas era Lessa das Palmeiras! — rezavam em cada noite orações expressas para que um milagre do mesmo Senhor lhe deparasse o braço que perdera.

— Vejam! Vejam! — exclamava a velha Brazia, a quem por ali chamavam a coruja do pinhal.

— Vejam o que é o poder divino, que tem mais à mão o braço de cada um do que o seu próprio! Perdera eu o meu, e veriam se o Bom Jesus de Bouças mo tornava logo a pôr, ou não!

— O Bom Jesus de Bouças não perdeu o seu braço — redarguiu a velha Paula, conhecida ali pela nortada. Foram os fariseus que lho tiraram, para o deitarem ao rio!

— Se ele estivesse no rio via-se!

— O rio levou-o para o mar!

— Se estivesse no mar, havia calma!

— Que te Deus livre! Ele tem na mão a tormenta!

Um furacão rompia; a vaga espumava na costa; as gaivotas adejavam, e fugiam.

— Te arrenego! Te arrenego! Ai! Os malditos dos fariseus! Não ouves o vento? Não ouves o mar? a vingança! É o castigo! a morte. O braço do Senhor de Bouças revolve as ondas!...

Muito tempo decorreu desta forma, entre terrores e sustos. O braço do Senhor de Bouças era a preocupação constante da gente devota de Lessa da Palmeira. Onde estaria ele? Que seria feito dele! Havê-lo-iam roubado, escondido, aniquilado? Singular destino!

Uma ocasião, um padeiro do sítio despediu um dos moços, por lhe haver faltado ao respeito. A contenda nascera simplesmente de que o rapaz se lhe queixava de estar endemoninhado o forno.

— Oh! Rapaz excomungado! — gritava o padeiro fulo de cólera. — Endemoninhado o meu forno! O meu forno que faz o melhor pão de Deus, que há por estes sítios, a cem léguas em redor!

Endemoninhado! E digo! E repito! Todo eu me sinto queimado pelas lavaredas do maldito, que repele uri tronco da lenha que se lhe deita!

— Repele agora um tronco! Já se viu alarve assim?

— Tão certo seja, enquanto que Deus me alumie enquanto eu quiser viver!...

Despedido o moço, outro o substituiu. Ao terceiro dia, porém, o pobre rapaz estava também queimado e despedia-se cheio de terror do forno maldito!

— Oh! praga de moleiros! — exclamava o padeiro na maior consternação. — Que descrédito! Que abandono eminente para a minha fábrica! Vejam se é possível, como estes marotos inculcam, que o forno ouse repelir a lenha que se lhe deita! Eu próprio, voto a Cristo! — vou mostrar aos vizinhos, para que me sirvam de testemunhas, o embuste destes dragões, que querem desacreditar-me! Acerquem-se os meus moços! Chegue-se a minha família! Reclamo a vizinhança! Peço o concurso dos imparciais! Eh! rapazes! (a uns banqueiros que iam passando). Venham cá também, se têm amor à verdade! Entre na minha casa a gente de boa língua. Ao forno!... Ao forno!...

E o padeiro, cercado de uma multidão imensa, caminhou resoluto ao forno, e lhe atirou pela terceira vez o tronco que no dizer dos moços, já o fogo duas vezes repelira. Então o assombro foi geral, e a vozearia nos circunstantes subiu aos ares em gritos de medo: por entre a lenha, que o fogo aceitava, as chamas repeliram o tronco, que veio bater sobre a multidão! O povo fugiu horrorizado, e o padeiro caiu de cama, tão doente ficou de susto. A autoridade e o cura da paróquia visitaram nesse mesmo dia o estabelecimento, que, parecendo mal agourado, tinha de ser o lugar glorioso de onde saísse o primeiro grito do mais festivo júbilo de Lessa da Palmeira: o pároco conheceu com inefável alegria, que o tronco, que o fogo rejeitava, era o braço do Bom Jesus de Bouças!...

Convocada uma romaria, foram os devotos à igreja de Matosinhos entregar ao Senhor o seu recém-chegado braço, e, como ele lhe ajustasse à própria, ofereceram-se-lhe muitos grilhões de ouro, muitas argolas de filigrana, tudo ao som de foguetes, de vivas, de orações e de soluços das beatas, prometendo-se logo edificar uma capela no sítio do abençoado forno, celebrar todos os anos a gloriosa e produtiva romaria do Senhor de Matosinhos, Senhor de Bouças, Senhor dos Aflitos ou Senhor do Braço, como lhe chamava a gente rústica dos arredores.

Hoje ainda — ainda e sempre! — a crença popular conserva na veneração mais sincera o culto pela tradição. Os pescadores de Lessa, nas tormentosas noites do inverno, quando o mar açoita a costa, o vento geme nas ondas, e a catraia perde o leme, não tem senão uma prece e um voto para elevar a Deus:

— Piedade, Senhor! Pelo vosso bendito braço!

II
Dizia-se em Lessa que a mãe do pescador Raimão tinha 40 anos. Por mais que ela e a sua certidão de idade porfiassem em atestar 52, não havia quem lhes desse crédito. O povo tinha razão, talvez; a verdadeira idade de uma mulher é a que ela parece ter; quem não prefere uma de 40 que pareça ter 30, a uma de 30 que pareça ter 40!

Era branca de neve e parecia ter sido extremamente formosa: as leves rugas que se lhe divisam na fronte, tinham o ar de se encontrarem em direções combinadas, e devam-lhe um aspecto grave e melancólico; chama-lhes ela dádivas da experiência. Os seus olhos, conquanto não tivessem já o brilho fantástico, que passa com a mocidade, guardavam ainda luz bastante para que uma vista sua penetrasse a alma, e decifrasse sem custo os mais guardados segredos. Tinha o nariz pronunciadamente aquilino, e, apesar da idade, conservava todos os dentes alvos e brilhantes. Desenhava-se-lhe pelo rosto uma expressão continuadamente perscrutadora, severa, e por vezes de uma ironia, que gelava a alma.

Ana se chamava. Tratavam-na em Lessa pela “senhora Ana”. Estava viúva havia nove anos; desde a morte de seu marido, que era um dos pescadores mais remediados do sítio, ninguém teve que ralhar dela; e conquanto se enfeitassem muitos para a tentarem a segundas núpcias, nenhum conseguiu obter dela o mais leve olhar de promessa.

Tinha dois filhos. A um deles, na intenção de o fazer seguir estudos, chegou a mandá-lo a um colégio do Porto: um dia, porém, foram também precisos à casa aqueles dois braços, e o pequeno, trocando a aula pelo mar, fez-se barqueiro aos 12 anos.

Todo o período da sua mocidade foi triste como a noite. Ele nem sequer andava na catraia de seu irmão, e teve que sujeitar-se, por alcançar mais lucros, a fazer parte da campanha de outro barco da costa. Quando alguma vez, por estar muito rijo o vento e o mar em vagalhões, não podiam sair à pesca, o pobre rapaz passava a tarde na praia, ajudando a consertar as redes e deixando insensivelmente correr-lhe o pranto pelas faces.

— Que diabo tens tu, rapaz — perguntavam-lhe os companheiros.

— Tristezas a que sou dado! — respondia ele sorrindo e disfarçando. — Isto é do sítio!
Os barqueiros espalhavam a vista em redor, e pareciam dar-lhe razão. A natureza ali é tudo; natureza agreste, ainda que cheia de encantos em todo o seu tom de melancolia, de saudade e de fé. Rio, árvores e mar! Está-se bem ali, mas sente-se a necessidade de chorar! À medida que se alarga a vista por aquele horizonte da cor da esperança, por que não sente esperança a nossa alma? Mil ideias fatais nos lembram! Chega a parecer-nos felicidade o morrer moço, e diz a gente a si próprio, olhando para o farol e para as ondas: — Quantos irão no comboio da tarde, levando pena de não haverem ido no da manhã?!

Todos do sítio estimavam Roberto. O patrão da catraia, que tinha uma filhinha linda como os amores, havia dito um dia à mãe do mancebo:

— Esta há de ser para o seu Roberto!

A mãe sorriu-se; o rapaz fez-se corado.

— E então eu fico ao sinal? — perguntou Raimão, rindo

— Tens razão, meu rapaz. Esquecia-me de ti. Pois digo-te que há de tudo ser regulado por outra bitola. Ela é que há de escolher a seu tempo aquele de vocês que lhe quadrar mais ao jeito!

A criança pendurou-se a um braço do Roberto e exclamou num tom caloroso:

— Este!...

Foi puramente uma galanteria. Ficou por muito tempo na memória do povo esta graça infantil. Um dia, porém, houve quem visse Roberto ir ajoelhar-se diante da capela do Senhor dos Aflitos: ele tinha 13 anos então: a prece que dirigiu a Deus foi a prometer um palácio edificado no lugar da sua cabana, se tivesse vida e fortuna para voltar rico. Criança ajoelhou, e ergueu-se homem — estava marinheiro. Já nessa noite não apareceu em casa, e quando na manhã seguinte se espalhou a notícia de que ele partira a bordo de um brigue para Brasil a mãe recordou-se aterrada de que o pequeno lhe umedecera a mão de lágrimas, a última vez que lha beijou!

Catorze anos se passaram desde este acontecimento: na ocasião em que principia o meu conto voltara Roberto do Brasil, e correra a abraçar sua mãe e seu irmão àquela humilde choupana de Lessa da Palmeira, que o tinha visto nascer!...

Entre os dois irmãos o contraste era completo, Roberto era um mocetão alto, magro, levemente pálido, de olhos negros e melancólicos, expressão serena e elegante. Raimão parecia ter 40 anos, não tendo mais que 32: era baixo, grosso, corado, olhos claros, expressão alegre e um caráter franco, prazenteiro, rude. Tinha as boas qualidades do primeiro, probidade, sisudez, bom coração e boa índole, mas faltava-lhe a sua principal qualidade, o seu principal defeito talvez — a ambição —; por isso, enquanto Roberto lutou com as dificuldades da vida material, atravessando a miséria para chegar à fortuna, Raimão prosseguiu na sua condição obscura, passando os melhores dias da sua mocidade numa catraia sobre as ondas!

Raimão estava casado. O patrão do barco havia morrido, e ele desposara a filha que ficara órfã — aquela criança que se pendurara no braço de Roberto, ao escolhê-lo por noivo, Isabel era o seu nome — tinha a este tempo 23 anos.

Toda a gente de Lessa se recordava de ver um velho de barba grisalha e longos cabelos brancos que lhe davam um ar de patriarca, e que levava sobre a fronte, sem ela se lhe curvar por isso, as neves de 80 invernos. Alguma coisa de altivo e digno, uns restos de antigo ar marítimo, atitude de coragem, que não se perde nunca, revelavam que esse velho era um pescador tornado mendigo, que ganhava amargamente aquele triste pão de cada dia, que se pede cada noite ao céu. Ao seu lado, como uma Antígona rústica, ia sempre uma rapariga, sua filha, cujo ombro se oferecia à mão do octogenário, apesar dele afetar que andava direito e leve. O seu fato, quase tão velho como ele, tinha o asseio da miséria altiva; nem uma nódoa, nem um buraco. A rapariga dava uma graça severa ao seu traje, mais que simples, que parecia um molho de farrapos noutra que não fosse ela. A sua tez pálida, a sua fraqueza que dissimulava uma vontade enérgica, o seu ar de reserva quase soberbo, de tanta frieza era, indicava uma dor profunda que se aceitou, um segredo penoso calado para sempre!...

Esse velho, outrora patrão num barco de pesca, perdera o barco no mar; quando Deus o chamou para si, a rapariguita que o acompanhava a pedir esmola, ficou órfã. Raimão viu-a uma manhã ao sol, e achou-a tão formosa que a quis para noiva. Era Isabel.

Durante a ausência de Roberto, a vida daquela família era tranquilíssima. De manhã fazia-se o trabalho da casa; e de tarde, um pouco antes do pôr-do-sol, iam a senhora Ana e sua nora passear pela praia até avistar a catraia, quando Raimão andava no mar; ou, se partia ele de noite, ficavam as duas a fazer serão.

III
Voltou Roberto enfim e quebrou-se naquela cabana o sossego habitual para o filho que há tanto tempo arredado de sua família fosse recebido sob o teto paterno com um aparato ruidoso, que equivalia em Lessa da Palmeira ao festim de Salomão à rainha de Sabá, ou ao rei Assuero à judia Ester. Roberto chegou a Lessa no começo de uma linda noite de junho, e no dia seguinte foram convidados todos os pescadores do sítio para um jantar na praia. Eram para cima de 30 homens do mar, com as suas famílias, todos sentados na areia, em roda das caldeiras da cozinhada de peixe miúdo.

— Eis-me entre vós — dizia Roberto: — Eis-me entre vós como outrora, irmãos! A fortuna não me tornou altivo, e a maior alegria da minha existência é tornar a ver minha terra, e poder dizer: A minha família está aqui! minha mãe! O meu irmão! Os pescadores de Lessa! Eis a minha família, irmãos!

— Esqueceu-te falar de mais alguém que te é parente! — exclamou Raimão, indicando Isabel.

Oh! Perdoa-me, Raimão! A mulher do nosso irmão é nossa irmã, e depois de minha mãe sois vós dois a quem eu estimo mais no mundo. Como é sua graça, mana?

— Isabel! — respondeu a rapariga, fazendo-se corada.

Nome de santa! — replicou Roberto em tom de cumprimento.

— E dos sítios?

— E mais que é — disseram os pescadores.

— Bem pequena, a viste! — redarguiu Raimão.

— É o que fizeste em ir para o Brasil! — exclamou a senhora Ana, rindo e beijando Roberto. 

— Perdeste a Isabel!

— Agora perdeu! — disseram os pescadores.

— É que vocês não sabem a história! O caso passou-se assim: haverá hoje 15 anos, o pai desta rapariga disse-me por esta maneira: “Senhora Ana, esta minha filha há de ser para um dos seus rapazes!” Isabel, que teria nesse tempo seis anos, agarrou a mão de Roberto e gritou: — Há de ser este!

— Ai que graça!...

— Mas depois, com o tempo — acrescentou Raimão, rindo —, tive artes para fazer mudar o vento, e preguei com ela, bem mastreada, na capela-mor do Senhor de Matosinhos, onde o padre me deu para a mão o leme, navegando até hoje com maré a favor!...

E uma coisa imprudente avivar lembranças do passado. Se o passado é o nada, pira que evocar fantasmas? O coração deixa-se levar às vezes de visões, e eu não sei que haja predileções mais perigosas do que as que uma sombra inspira... Os olhos de Roberto procuraram os de Isabel, e ao encontrarem-se pareceram fugir-se.

— À saúde da companhia! — disse Raimão, empunhando um dos canjirões de vinho.

— À saúde de Roberto! — gritavam os pescadores, bebendo.

— A saúde da menina Isabel! — exclamou Roberto.

— Mana Isabel é que se lhe chama! — redarguiu Raimão. — Meninas são as crianças, meu rapaz!

— À saúde da Sra. Isabel! — gritaram os pescadores.

— Parece tudo isto à minha alma um sonho! — exclamou a mãe. — Estares tu em Lessa de Palmeira, rico e feliz! Meu bom filho!...

Roberto sorriu-se para Isabel.

— Não és tu feliz?

— Por que o não seria, se estou ao lado de nossa mãe?

— Mas deixaste-a para seres rico! — respondeu Raimão rudemente.

— Nunca mo perdoarão, bem sei. Na terra é uma loucura querer ter muito; tudo aqui se há de deixar...

A senhora Ana não perdeu um único movimento de Roberto nem de Isabel, quando acabou o jantar, e Roberto lhe pediu a bênção, foi com singular expressão de severidade que ela lhe respondeu:

— Deus te acuda!

Raimão estendeu a mão a Roberto, e sentiu a dele fria e trêmula: então, com um sorriso de bondade, perguntou-lhe, abraçando-o:

Que tens tu, vamos, que tens tu?

Roberto, fixando a vista na de seu irmão, retorquiu, fazendo-se pálido!

Eu!?

IV
Por que parecia Roberto entristecer-se no meio das festas? Que melancolia indefinível se desenhava no seu pálido sorriso, quando, mergulhando-se em êxtase, demorava um olhar anuviado sobre o primeiro objeto que a vista lhe encontrasse? Ah! Pobre mãe... Pobre mãe! Só ela sentia o alcance de todos estes indícios, que pareciam esclarecer-lhe o que o coração lhe adivinhava! Roberto não dirigira nunca a palavra a Isabel senão com um indizível ar de amargura, e a rapariga de quando em quando arriscava até ele um olhar fugitivo, mas dir-se-ia que preocupado.

Alguns dias se passaram depois da chegada de Roberto, sem sucesso notável naquela casa. Apenas a senhora Ana continuava perscrutanto tudo, e fazendo experiências para conseguir tirar uma conclusão que ela cuidava pressentir. Uma noite —, era véspera de São João —, a senhora Ana e Isabel, sentadas cada uma de seu lado a uma janela que dava para o rio, conversavam acerca dos diferentes caracteres dos dois irmãos. Isabel falando de seu marido conservava o ar de frieza que lhe era habitual; quando, porém, se tratou de Roberto parecia ver-se o céu no fogo do seu olhar, sentir-se a felicidade na perfumada doçura da sua voz. A senhora Ana fixou a vista na de sua nora, e disse-lhe em leve acentuação de ironia:

— Que entusiasmo quando falas de Roberto, e que frieza falando de teu marido!

É porque saúdo em Roberto qualidades, que meu marido não possui.

Não é por isso, Isabel!

Então...

— É porque o amas!

— Eu! exclamou a rapariga, tornando-se pálida.

— Tu mesma! — replicou a mãe do pescador, severamente.

Depois, tomando-lhe uma das mãos, continuou assim:

— Ouve, Isabel. Há cinco dias que meu filho Roberto voltou a Lessa, e há cinco dias que conheço em ti uma fatal mudança. Tu tens 21 anos, Isabel; e eu tenho 52. Gostas pela primeira vez de um homem — sim! porque nunca quiseste a teu marido! infame, este atrevimento. Seu próprio irmão! Oh!

Isabel deixou pender a cabeça sobre o peito e pareceu cismar. A noite estava tão amorosa que tudo parecia alheio às paixões terrestres. O mar sussurrava ao longe, a brisa suspirava no rio; cuidava-se ouvir a harmonia das esferas, julgava-se sentir a dança dos astros; cada grão de areia tinha voz de poeta: murmúrio encantador e inexplicável como o bater das asas das pombas e das fadas! Oh! que linda noite de junho!
A senhora Ana, sem despregar a vista de Isabel, foi dizendo-lhe:

— Ambos são meus filhos, e quero tanto a um como a outro — mas quero ainda mais à honra desta casa; a deles!... Bem sei que Roberto não é capaz... nem tu tampouco, bem o sei; não é de nenhum que eu me receio, mas do amor de ambos! Raimão quer-te a seu modo e bem sabes que aquela alma não é de paixões ardentes, mas suave e boa, honesta e santa, como não é para desprezar na terra; supõe — defenda-nos Deus! — que ele desconfiava dessa simpatia, que te prende a Roberto! Naquelas organizações como a dele, são muito mais para temer certas crises, e se a vida nesta casa tem sido até hoje o céu, não tens tu remorsos de ir fazer um inferno de um paraíso?

Isabel ergueu a fronte e balbuciou?

— Logo, às fogueiras, hei de falar-lhe: pedir-lhe-ei que me esqueça, que me não perca, que me não tente!

— Às fogueiras?

— Sim; depois da ceia. É a primeira vez que me fala. Será a última em que lho conceda às escondidas. Hoje, irei.

— Não hás de ir.

— Não hei de...

— Não.

— Quer então que o engane, que o faça esperar?

— Não esperará debalde, Isabel, sossega. Há de encontrar alguém. Encontrar-me-á a mim!

— Quê!

— E preciso.

— E tem ânimo...

— De remediar tudo; daqui a pouco seria já tarde!

Viram neste momento Raimão e Roberto, que vinham pela estrada. Isabel teve apenas tempo para dizer com ar suplicante à senhora Ana:

— Ao menos não seja áspera com ele, não?

— E para não vir a sê-lo que lhe irei falar. Nem uma palavra, vê bem!

— Não sou eu quem mais que ninguém precisa que nada disto se saiba?!

V
Os pescadores, as mulheres e os filhos dançaram toda essa noite na praia em redor das fogueiras. Raimão, a senhora Ana, Isabel e Roberto foram também assistir ao queimar das alcachofras. Oh! a poética noite! A noite saudosa! A noite de um instante!

— Olha! — dizia Roberto aos pescadores. Nas estrelas fugindo do céu, já as mouras saem das covas, seduzidas pelo perfume da erva pinheira queimada, que sobe aos ares com os cânticos do amor!

— Não sabíamos, — diziam os pescadores. — Conta-nos isso Roberto; tu que sabes contar tão bem!

— As mouras, meus amigos, vivem escondidas nas suas covas. Ficaram aqui desde dominação mourisca e ocultaram-se para melhor guardarem os seus tesouros.

O que é o tesouro das mouras? — perguntavam as raparigas.

— É um mundo de pérolas, de esmeraldas, de rubis e de safiras! Os pescadores de coral nunca o avistaram tão rubro como o dos seus braceletes; nas sestas do Oriente nunca se adornou a favorita com pérolas mais pálidas que as dos seus colares: nem as damas da Europa mostraram num baile mais esplêndidos diamantes, que os dos seus toucados!

— Ih!!!! — exclamaram as raparigas.

— Tal qual como ela reza! — ponderavam os pescadores.

Roberto continuou:

— As mouras têm cordões de ouro, que é um sonho! Brincos e anéis, que é um milagre! Logo, pela volta da madrugada, é que elas saem das covas para arejarem o seu tesouro sobre a terra... E quando as estrelas empalidecem, e a noite se despede num saudoso suspiro... Então, elas saem, e ninguém as vê! ninguém as pressente! A natureza não acordou ainda: a lua esconde-se entre duas nuvens brancas, e não se deixa ver mais; o rouxinol calou-se; as namoradas sonham; a onda nem rumoreja! As brisas da noite aquietaram-se... Tudo dorme... E as mouras estendem os seus tesouros! E olham-nos estáticas! Ébrias de felicidade! De opulência! De prestígio! Ouro e joias!... A alegria! A riqueza! A força!...

— Como é belo! — exclamaram as raparigas.

— Como é belo! — disseram os pescadores.

E Isabel, que o escutava estática, balbuciou, olhando-o::

— Oh! Sim! E belo!...

— E depois? — perguntou Raimão.

— Depois, aos primeiros raios do sol, as mouras desaparecem, e os seus tesouros apagam-se! Pobres encantadas, vão de novo para debaixo da terra guardar, à sombra, a sua beleza e as suas joias, donzelas, a alcachofra à fogueira. Nesta noite tudo tem virtude, e o futuro sabe-se por qualquer coisa! Deitem cinco réis no lume!... deixar queimá-los bem! De madrugada, é dá-los a um pobre pedinte, sem mais que estas palavras: “O teu nome, irmãozinho?” O nome do pobre há de ser o do noivo da dama, que lhe dá a esmolinha do São João e depois, é os bochechos! E as sortes no copo d’água! E nadar de noite! E ir lavar a cara à fonte para ficar bonito! E amar! E esperar! Viver!...

— Toca a bailar! — gritaram os pescadores.

— Que dança há de ser? — perguntaram as raparigas.

— A feliz cadeia! A feliz cadeia, que é dança de feição. Rompam os pares! Alcachofra ao lume!...

— Alcachofra ao lume!

Os pares formavam uns detrás dos outros, girando em redor da fogueira, dançando no fim de cada volta, e mudando de par em seguida.

— Vivam os pescadores de Lessa da Palmeira! Viva a noite de São João!

— Viva!

— Viva!

Roberto, aproveitando a ocasião, afastou-se lentamente pela praia, e foi mais para perto do mar, esperar Isabel no sítio ajustado. Estava a noite pesada, mas serena; a brisa discreta da madrugada beijava as ondas, e fugia rápida. O ar estava morno e débil, o céu sem nuvens, ainda que sem transparência. Todas as forças naturais pareciam extinguir-se, e os espíritos participariam da mesma atonia, se aquela não fosse a noite do ruído, da alegria, da esperança, a noite de São João — noite que até as aves conhecem, porque ela acorda aos seus cânticos e sorri aos seus amores! Ouviam-se apenas as vozes dos pescadores e das raparigas, depois, a intervalos, ao longe, uma flauta executando modas do povo, música não se sabe de onde, que o ar espalha! O orvalho da noite impregnava-se de perfumes; a areia estremecia no aproximar da onda; os latidos surdos dos cães da aldeia perdiam-se lentamente no espaço.

A pobre mãe sentiu confranger-se-lhe o peito de íntima dor, ao aproximar-se de Roberto; mas o mancebo, ao avistar um vulto de mulher, não se lembrou sequer que pudesse ser outra senão Isabel, e exclamou fervorosamente:

— Obrigado por ter vindo, Isabel! A minha alma precisava tanto revelar-lhe que sentimentos lhe inspira!

A senhora Ana, que ia baixando a fronte, ergueu-a para que seu filho a conhecesse: Roberto balbuciou com voz trêmula:

— Quê! Não és tu, Isabel? Então, é...

— Tua mãe!

A morna aragem, precursora das tempestades, pareceu nesse instante gemer nas ondas.

— Mas por que motivo a encontro eu aqui, tão distante das fogueiras, perdida na noite!

— Eu devia perguntar-to a ti, se não soubesse o que aqui te trouxe!

— Pois sabe...

— Tudo!

Ficaram por algum tempo silenciosos ambos.

— Roberto — disse a senhora Ana ao fim de instantes — esperavas encontrar Isabel, e era tua mãe que te esperava! Não mintas; não tentes mentir-me. Estás-te portando infamemente, por que insistes em amar Isabel? E Isabel é a mulher de teu irmão!

— Devia ser minha noiva; não mo disse já?

— E hoje mulher de teu irmão! — replicou a senhora Ana, austeramente.

— Mas se sinto, que, ao avistar estes sítios queridos e memoráveis, acordou de novo na minha alma esse amor de criança, que o tempo adormecera?

A mãe fixou os olhos nos dele, e disse-lhe com uma expressão de bondade e de consolação infinita:

— Não deves filho, permanecer aqui. Lembra-te da honra de teu irmão! Isabel não te ama... Não... Foi ela quem me disse que lhe pediras uma entrevista para esta noite...

— Disse-lhe...

— Disse. E eu prometi dissuardir-te dessa louca temeridade, e sosseguei-a, jurando-lhe que há de reinar de novo nesta casa a tranquilidade, que sempre tornou feliz o nosso lar. Partirás esta madrugada, sim, Roberto? Peço-to eu!

— Impossível!

— Ordena-to tua mãe, Roberto! Mas...

— Nada mais. É uma afronta à honra de Isabel teimares nesse amor. Dirás, direi eu, que os novos hábitos da tua existência te não deixavam viver aqui entre nós: chamar-te-ão soberbo, talvez — quererás antes que te chamem ruim? Partirás?

— Partirei, minha mãe!

Quando voltaram para entre os grupos, que dançavam em redor das fogueiras, encontraram já alguns dos pescadores a desamarrar as catraias.

— Que é isso? — disse Roberto a Raimão. — Para a pesca já?

— Vão fugir as estrelas; são mais que horas!...

— Um favor, Raimão! Tenho neste momento um capricho, quero recordar-me das noites da minha infância; empresta-me a tua catraia, e segue tu em alguma dos companheiros. E um desafio que te proponho; arredado do mar há tantos anos, quero ver se ele me conhece ainda; na madrugada se verá qual de nós recolhe mais peixe!...

Os pescadores romperam num grito de alegria:

— Viva Roberto, o pescador!

Raimão abraçou-o, chorando.

— Alma de marinheiro! Há de ser sempre boa! Leva a catraia, leva! Guia-a sozinho, tu a quem Deus guiou!

— Ao mar! — exclamou Roberto.

Depois, abraçando sua mãe, olhou para Isabel, dizendo com a voz tomada pelas lágrimas:

— Parto! Bem vê!...

As fogueiras continuaram ainda. Aos descantes da festa misturavam-se as vozes dos pescadores, cantando, no mar. As catraias afastaram-se, em direções contrárias: quando deixou de se avistar a de Roberto. Isabel abraçou-se à senhora Ana, e ambas choraram em silêncio, orando. Uma ideia de susto as oprimia. A escuridão é um espectro sem forma, que dispõe para crenças e para terrores: quem tem medo, reza!... Ao ruído insolentemente alegre da festa confundia-se por instantes o rumor dos soluços e suspiros. Para aquelas duas almas — da mãe e da amante — cada hora que decorreu até a madrugada teve a imensidade. Pareciam inspirar, aos que dançavam, um sentimento de susto vago, supersticioso, e, como eles se arredavam, elas tinham sempre em redor de si um círculo de solidão... Cada uma delas dizia à outra, palavras de que o eco lhe causava medo... Uma louca aragem lhes trouxe ainda ao ouvido, frouxamente, uma voz que cantava, ao longe, no mar. Abas estremeceram, no primeiro momento, e disseram sorrindo de esperança:

— A voz de Roberto?...

Mas, ouviram apenas este nome, que as ondas pareceram repetir.

É o eco! — disse a mãe, tremendo. — É aquele espião, que se esconde nos rochedos!

Ia romper a aurora; as fogueiras extinguiam-se; os pares fatigados da noite pareciam expirar com ela, à medida que se dissipavam no ar os perfumes, que ela exala na sua urna... Avistaram então as duas mulheres, uma sombra ao longe, no mar; a maré crescia, crescia, e a sombra vinha aproximando-se da praia. À pálida claridade do crepúsculo elas puderam reconhecer a catraia de Roberto.

— A catraia! Oh! A catraia!... — exclamaram ambas, com a alegria no olhar e o paraíso na alma.

Mas o barco vinha vogando à mercê das ondas, sem leme e sem barqueiro. Elas olharam-no fixamente numa vista desesperada e fúnebre, como interrogando o mar. Pouco depois, numa lancha que vinha da mesma direção, apareceram uns poucos pescadores, conduzindo um cadáver: o cadáver de Roberto, que se atirara às ondas!

— Roberto! — gritaram as duas mulheres, como loucas! — Roberto!

O grito perdeu-se nas brisas da madrugada.

— Morto! — exclamou a mãe. — O meu filho! Morto! e... por mim!... Oh! E sobre aquela cabana, em que devia erguer-se um palácio, teremos de erguer um túmulo!

A voz de Raimão cantava ao longe...

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