11/03/2017

A Bandeira (Conto), de Virgílio Várzea


A Bandeira
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

---


Havia já dois meses que a revolta da Armada contra o governo do marechal Floriano ia acesa e terrível, permanecendo ainda em estranha abstenção e inexplicável neutralidade um dos seus principais elementos de ação na capital da República — o possante e famoso forte de Villegagnon, tênue e quase desvanecida lembrança histórica da ilusória França Antártica de outrora e do grandioso sonho do célebre conde de mar huguenote Gaspar de Coligny e do seu lugar-tenente, o arrojado aventureiro, cavaleiro de Malta e vice-almirante da Bretanha, Nicolau Durand de Villagagnon, de quem o pitoresco ilhéu e grande praça de guerra perpetuam característica e geograficamente o nome e a memória.

Como os insurrectos dominavam inteiramente as águas de Guanabara, não se sabia verdadeiramente a causa de semelhante abstenção e neutralidade. Corria, entretanto, que era o almirante Saldanha da Gama, então diretor da Escola de Marinha e o mais prestigioso e querido dos generais da Armada que, declarando-se neutro entre os dois contendores, assim mantinha o grande baluarte naval, não obstante os ímpetos mal contidos dos oficiais e marinheiros para se unirem aos seus bravos irmãos de armas.

Em terra, a inquieta alma popular, sempre cheia de entusiasmo e ilusão, picada pela tarântula da Aventura, de há muito curiosamente esperava, em expectativa ansiosa, qualquer solução ou desfecho para aquela singular atitude do velho forte insular. Por isso, diariamente aumentava, como uma enorme preamar de equinócio, a vasta aglomeração de povo, sobre colinas e montes, ao longo da extensa curva das praias e cais da cidade, fora dos principais pontos de desembarque e assalto guarnecidos fortemente pela guarda nacional e contingentes do exército às ordens do Marechal.

Mas, na antemanhã daquele dia, um frêmito geral de emoção alvoroçara as almas, com a notícia extraordinária, instantaneamente levada aos quatro ventos, de que Villegagnon aderira finalmente à revolta, devendo hastear, ao sol das 6, conforme as Ordenanças Navais, a bandeira branca da pugna civil, ao lado do glorioso pavilhão auriverde.

Com efeito, ao despontar radiante e triunfal do sol, lá tremulava, à fresca brisa do mar, como numa alegria de gala, no tope da verga do alto mastro de guerra do forte, o nevado filelle do pendão revolucionário, acenando ironicamente para a Terra e para o Mar, como um velho símbolo querido de Concórdia e de Paz.

O marechal Floriano, apenas soubera da grande ocorrência, aliás há muito esperada e que só lhe causara estranheza em não ter sobrevindo conjuntamente ou logo após ao levante naval, o que perspicazmente lançava à conta de rivalidade entre os almirantes Custódio e Saldanha, que disputavam agora a primazia do prestígio e domínio em sua classe, e mais ainda à astúcia e sagacidade do segundo, cuja atitude neutral feria fundo a disciplina militar mas que esse chefe marítimo queria acobertar à sombra da ideia — em outro caso muito justa e louvável — de evitar que os jovens e futuros educandos da armada (aspirantes ou alunos navais) logo aos primeiros passos de sua carreira se envolvessem em pronunciamento ou insurreições, buscando assim tirar todo o partido da situação a fim de, no momento oportuno, jogar-se francamente à revolta, pois que disfarçadamente desde muito o estava; o marechal Floriano que, soldado experimentado e veterano de uma grande campanha onde ganhara celebridade, não vacilava nunca em pôr em execução a medida que lhe parecesse acertada para chegar a um fim, embora avaliasse perfeitamente o peso de mais este embaraço na luta já de si grave, e até arriscada, em que se achava envolvido, luta ramificada já a três Estados do sul e fundida então ao Federalismo gaúcho que vinha de longe e não fora ainda suplantado pela legalidade; o marechal Floriano imediatamente ordenou às grandes fortificações da barra respondessem, com renhido fogo, ao forte revolucionário, apenas este começasse a alvejá-los com os primeiros disparos de grande artilharia, conforme as notícias que circulavam em terra, vindas da esquadra e das ilhas por ela dominadas.

Assim, à tarde, a primeira a romper, com efeito, foi Villegagnon com os seus quatro ou cinco possantes canhões de 400 da bateria da barra. Então, as duas grandes fortalezas, solidamente assentes sobre os pórticos graníticos de Guanabara e que lhe guardam ciosa e intransigentemente a entrada contra qualquer assalto inimigo, Santa Cruz e São João, e a pequenina Lage, que fica mais para dentro, já em águas da baía — entraram a vomitar-lhe incessantemente balas rasas e metralhas. E o fogo cerrara, medonho, espalhando o terror e a morte sobre o coração da Pátria...

Na sua estrutura ancestral, dificilmente defensável e totalmente exposta às poderosas baterias de suas irmãs da barra, descasamatada e rasa, de um poder ofensivo inferior ao daquelas, com muralhas que vinham das primeiras épocas coloniais — a velha fortificação da Armada a todos enchia de entusiasmo, empenhada, como estava, numa luta desigual e singular. Mas a sua oficialidade e marinhagem, acesas numa bravura e fúria legítimas e patrióticas, a nada atendiam ou olhavam, transformadas em verdadeiros gigantes de força e temeridade...

As balas cruzavam, incessantemente, sobre a ilhota invicta e lendária. E por toda a parte, em torno, emergiam da larga planura das águas, num belo horrível emocionante, altos repuxos de espuma, lembrando de repente os jatos colossais de monstruosos mamíferos marinhos triássicos, ou atuais, ou essas geyzers escaldantes dos Oceanos Polares.

A princípio, por circunstâncias casuais, decerto, e quem sabe também pela falta de segurança nas pontarias, apesar dos numerosos e seguidos disparos, os projéteis da legalidade quase não atingiam o alvo...

Mas uma lancha a vapor largou a toda a velocidade do Aquidabã para Villegagnon. De terra, do Arsenal de Guerra, apenas a avistaram, começaram as descargas de fuzis e metralhadoras do exército, como costumava suceder em tais circunstâncias, desde o primeiro dia da ação, a fim de, senão impedir, pelo menos dificultar ou fazer pagar caro a atracação ao forte insurreto.

Os marinheiros de vigia e ronda, ao depararem com a lancha e ao sentirem os primeiros tiros do Arsenal sobre o porto e a ponte de embarque da sua ilhota, que eles mantinham meio defendidos daquele lado por chapas de ferro e um grande batelão de carvão encalhado para esse fim, correram imediatamente a respostar os tiros de terra com as suas coropachecks, metralhadoras, canhões-revólveres e de tiro rápido.

Um desses marinheiros, o João Leandro, caboclo de vinte anos, robusto e de grande intrepidez, quando acorria com os outros à ponte, olhando casualmente para o principal reduto do forte, notou que o branco e querido pendão da revolta fora de súbito arrancado à verga onde tremulava. Deixou logo os companheiros e, sem dizer palavra, galgou, de um fôlego, a escada que levava até lá, a ver o que tinha sido, a fim de tudo comunicar ao bravo comandante Sílvio Péllico Belchior, então com alguns oficiais à bateria dos grossos canhões de 400, atirando continuamente contra as fortalezas da barra. E procurava por toda a parte a bandeira que certamente não poderia ter caído no mar, quando a encontrou num recanto das muralhas, com a adriça partida e inteiramente desgornida da verga, obra sem dúvida de alguma bala certeira de metralhadora ou fuzil vinda de terra. Jubiloso e sorrindo, enveredou para o alto mastro, que galgou com a destreza e rapidez de um símio, e metendo pé ao estribo, foi até ao lais da verga, regornindo a adriça e fazendo de novo tremular ao vento a branca bandeira revolucionária. Depois voltou para o cruzamento do mastro e, de pé, junto ao calcês, sobre a verga, quedou-se a olhar serenamente as águas...

O bombardeio à grossa artilharia, entre a fortaleza insurgida e as legais, prosseguia ainda atroadoramente. A lancha que largara do Aquidabã atracara já à Villegagnon, graças a valorosa defesa que, no porto e na ponte, os marinheiros opunham denodadamente, embora já com algumas perdas, ao fogo cada vez mais intenso do Arsenal do Guerra.

E o João Leandro continuava a contemplar placidamente da altura, como da mastreação de um navio, o panorama geral da baía...

De terra, das trincheiras de sacos de areia do Arsenal, desde que o viram subir ao mastro para rearvorar a bandeira branca da revolta, tão execranda e odiosa à legalidade quanto simpática e querida aos insurretos que se tinham espontaneamente congregado em volta dela para a conquista da liberdade e de um governo civil que representasse a vontade geral da Nação e dignamente a servisse, — de terra alvejavam-no continuamente, com fúria e truculência brutais.

Mas o audaz marinheiro, com o espírito arrebatado pelo esplendor da tarde, docemente tocado de saudosas recordações da sua vida íntima e inteiramente esquecido do perigo, em meio à luta fratricida, nem sequer se voltava para o lado de onde as infernais balas de fuzil incessantemente passavam, cercando-o de uma zoeira sinistra, como estranhos e invisíveis vampiros que lhe respeitassem ainda, acaso, o invejável e sereno heroísmo, mas que só espreitavam o momento propício para sugar-lhe a vida. Nem ele, absorvido como estava, ouvia talvez aquela música fúnebre e maldita dos projéteis. E a passear lentamente os olhos sobre o inefável conjunto da imensa marinha, demorava-os às vezes, nostalgicamente, sobre cada detalhe...

O sol fulvo da tarde, caindo em desmaio opalino para os longes nebulosos e vagos, barrava a vastidão do poente, na linha do Corcovado, da Tijuca e da Gávea, de um escarlate festivo, manchado, aqui e ali, de esparsos flocos de arminhos. Para o fundo de Guanabara onde, conforme os planos e a distância, relevos verdes ou azuis de montanhas e ilhas bordavam o horizonte ou certos pontos da planura líquida, os cascos e a cordoalha emaranhada dos navios de guerra insurretos silhuetavam-se vivamente no Azul, como nas grandes telas modernas do Almirantado Inglês, em que o gênio feliz de De Martini reproduz, à perfeição, os vastos cenários marítimos. Eram o Aquidabã, a Trajano, o Tamandaré, a Guanabara, o Javari e outros, já mudos e sem os jorros de fumo da sua artilharia, portando pelas amarras e como adormecidos, agora, às últimas claridades do ocaso. Depois era a infinda multidão dos navios das esquadras estrangeiras e dos barcos mercantes, a vapor ou à vela, nacionais e internacionais, confundindo-se numa água-forte monstruosa, coberta já de um largo manto brumoso. Toda essa vasta e admirável aglomeração de cascos e mastros trazia à lembrança essa descrição monumental do porto de Tiro, cheirando a maresia e a cedro do Líbano, que nos deixou Fenelon nas páginas encantadoras do pequeno livro em que nos conta as aventuras marítimas do meigo filho de Ulisses. Do lado da barra, as fortalezas, envoltas em fumo alvadio, não cessavam de troar, num ritmo espaçado e tremendo, desolando com os seus grossos disparos a placidez etereal das ave-marias...

O valente marinheiro, embora as infernais balas de fuzil continuassem a zumbir pressagamente em torno dele, permanecia de pé sobre a verga, agarrado ao mastro, embevecido ainda com o maravilhoso espetáculo do crepúsculo e das águas, tão largamente sugestivo. Cismava agora, talvez, no seu Estado longínquo, no arraial em que nascera, branquejando alegremente ao sol, entre cômoros e sebes verdes, junto à vaga azul do Mar. E que de imagens risonhas e felizes lhe não bailavam ali, ao momento, na visionada retina! Eram decerto as dessas criaturas amadas — Mãe, Irmãs e Noiva — cujos seres, quase ideais para nós, se acham presos indelevelmente, por íntimos filões indestrutíveis de afeto, ao nosso coração e ao nosso espírito, e que, embora ausentes e afastados, nos afagam e osculam sempre, carinhosamente, através de todo o espaço e de todo o tempo, iluminando o dia do nosso destino, e a noite da nossa saudade, como incomparáveis e benditos astros...

O João Leandro enlevava-se nos encantos da Natureza e nas evocações luminosas da vida afetiva, totalmente deslembrado das agruras e perigos daquela luta terrível, quando, de repente, um sopro de morte passou, tocou-o, paralisou-lhe os sentidos...

Fora uma das balas de fuzil, vindas de terra, que lhe varara o peito.

E seu corpo agonizante tentava ainda agarrar-se aos cabos e ao mastro, num último impulso para a Vida; mas as mãos e os braços afrouxavam-se-lhe já frios. O sangue escorria-lhe, em pastas, pela boca e pela ferida. E ele rolou, por fim, ao chão, como uma massa hirta...

Cerrara a noite. Os planos afastados da paisagem sumiam-se, numa vasta amontoação de cinza. O céu, no alto, enlutava-se em sombra. Todo o mar refulgente, como um metal que se oxida, ia perdendo o seu brilho. E pelo ar, enoitado ao desaparecimento da luz fugindo para o Azul de outros países, viam-se os relâmpagos sangrentos de um ou outro disparo dos fortes, troando agora dantescamente na treva, que aumentava e envolvia tudo...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...