A caçada
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
A notícia de que Sua Majestade
o rei Alberto ia realizar uma caçada em terras da família Prado, em São Paulo,
trouxe à minha lembrança, tão confusa nestes últimos tempos, o fantasma de uma
velha saudade.
Estudante, ainda, na Paulicéia, fui
eu convidado, um dia, pelo meu colega de turma, o atual conselheiro Antônio
Prado, para um recreio venatório em propriedade de sua família, na serra do
Cubatão, onde abundavam, ainda, naqueles tempos, o veado, a paca, o porco do
mato, e, em especial, as onças, os famosos tigres americanos, que faziam enorme
estrago na criação.
Organizada a comitiva, composta
de numerosos cavalheiros da melhor sociedade paulista daquela época, partimos
para São Bernardo, indo pousar, ao fim de dois dias de viagem, na fazenda do
Encantado, pertencente a Exma. D. Veridiana, no ponto mais alto da serrania. No
terceiro dia, enfim, partíamos todos para a mata, montando vinte e oito cavalos
e conduzindo quarenta e sete cães, distribuídos pelos diversos membros do
séquito.
Separados uns dos outros, ia eu
beirando um córrego marulhoso que rolava da penedia, quando ouvi, ao longe,
entre a reza religiosa da selva, o barulho da matilha, anunciando a caça.
Esporeei o cavalo, venci um bosque de ipês, atravessei uma clareira, e cheguei
ao local. Em uma furna da montanha, evitando, feroz, a pontaria dos caçadores,
estava uma onça, acuada, mostrando os dentes enormes, agudos, afiados, para uma
dezena de cães!
— Atire, doutor! — pedi,
apeando-me, ao Dr. Antônio Prado.
— É impossível! — observou-me o
futuro estadista.
A posição era, realmente,
péssima. Defendido por umas raízes entrelaçadas à boca da furna, o felino não
só impedia o avanço dos cães, como impossibilitava, em absoluto a pontaria dos
caçadores. Vários tiros já haviam sido disparados pelos atiradores mais
adestrados, conseguindo eles, apenas, enfurecer o animal, que empregava toda a
sua agilidade na defesa.
De repente, ouviu-se um galope no
rumo da furna; e, um minuto mais, apeava-se ao nosso lado, risonha, jovem, arrebatadora,
a formosíssima Sra. Corrêa Aires, cuja beleza constituía, então, com o seu
moreno rosado, seus olhos azuis e os seus finíssimos cabelos castanhos, o maior
dos orgulhos de São Paulo.
— Que é? — perguntou, mostrando,
num sorriso, os seus lindos dentes de neve, a furiosa amazona batendo com o
chicotinho de ouro na sua pequenina bota de montaria.
— Uma onça! — explicamos, todos,
a uma voz.
Nesse momento, a onça, que
olhava, fixa, para fora, deteve os olhos na moça, como deslumbrada. A linda
caçadora tirou do cinto de veludo uma pistola de caça, de cabo de marfim,
levou-a à altura dos olhos, e, fazendo pontaria no felino, que a fitava,
esquecido de si esmo, disparou. A fera deu um salto de dor, estorcendo-se. A
matilha investiu, latindo, penetrando a furna. Um instante depois era a onça
arrastada para fora, morta.
Sorridente. Fresca, maravilhosa,
a divina caçadora colocou o pezinho sobre o corpo da fera, buscando-lhe a
ferida. De repente, descobriu-a:
— Foi no coração! — disse.
E, encarando Antônio Prado,
desafiadora:
— Morreu como certos homens...
Nós, em torno, baixamos os olhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...