
A confissão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Em que se prova que certas
perguntas inocentes, claramente feitas, valem, às vezes, por uma informação
perigosa.
O padre Sebastião havia tido
notícia, por intermédio do sineiro, que a sua paróquia, colocada sob a
invocação de Nossa Senhora do Retiro, se achava minada, solapada, anarquizada,
pela corrupção dos costumes. Segundo o depoimento dessa testemunha, o bairro
estava semeado de casas duvidosas, onde algumas senhoras levianas se juntavam
durante certas horas do dia rindo, dançando, palestrando com rapazes e velhos
divertidos, que ali ficavam, até à noite, consumindo o seu tempo e gastando o
seu dinheiro. Escandalizado com a denúncia, o virtuoso sacerdote chamou, uma
tarde, o sacristão e recomendou-lhe:
— Francisquinho, nós precisamos
agir, na freguesia, contra o demônio da corrupção. A seara de Deus, que se
mostrava tão prospera, principia a ser devorada pelas lagartas do Demônio. E
nós precisamos trabalhar, meu filho!
O sacristão arrebitou o nariz
para melhor farejar o escândalo, e o reverendo explicou o seu plano:
— É preciso que você, que conhece
toda a gente, indague, por aí, quais são as casas suspeitas, em toda a
paróquia. Veja o número dos prédios e venha avisar-me, para que ou tome as
providências.
Francisquinho pegou no chapéu,
sacudiu-o no cocuruto, e partiu, rebolando-se, pelas ruas do bairro, a indagar,
de café em café, de botequim em botequim, de antro em antro, onde estavam
situados aqueles focos de corrupção. E à tarde, informava, com a sua vozinha em
falsete, a Sua Reverendíssa o vigário:
— Meu padrinho, descobri tudo; as
casas são três: uma na rua dos Enforcados nº 29, outra na rua França Coelho nº
417, e outra na travessa de Santa Apolônia nº 46. E é só.
Padre Sebastião tomou nota em uma
das folhas do breviário, decorou, depois, um por um, o nome das ruas e o número
das casas, e, no dia seguinte, foi, como de costume, confessar e absolver os
fiéis.
Estava ele no confessionário,
ouvindo, peneirados no crivo de ferro, os pecados do seu rebanho, quando
percebeu na última dama que se ajoelhara à sua frente, uma das senhoras cuja
virtude não lhe merecia grande confiança. Cauteloso, o sacerdote, em certo
momento, indagou:
— E você, filha, nunca abandonou
o seu lar, para ir à Rua dos Enforcados nº 27?
— Não, senhor! — gemeu a moça.
— E à Rua França Coelho nº 417?
— Também, não, senhor! — insistiu
a dama.
— E à travessa Santa Apolônia nº
46? — tornou o pároco.
— Não, senhor!
Padre Sebastião absolveu a linda
ovelha impoluta, e, como não tivesse mais ninguém a confessar, deixou-se ficar
no confessionário a olhar para a porta da igreja, por onde ia sair a última
confessada. De repente, abriu a boca, espantado: no portal do templo, a formosa
paroquiana tomava nota a lápis, em uma carteirinha, que exumara, ali, de uma custosa
bolsinha de ouro. Desconfiado, o sacerdote encaminhou-se para a porta,
arrastando em silêncio as suas moles sandálias de lã, e, chegando perto da moça
indagou, interessado, com a sua santa voz de além-túmulo:
— De que é que toma nota, minha
filha?
A dama, sem se aperceber da
pergunta, respondeu, apenas, como se falasse a si mesma:
— Essas eu não conhecia, não!
E, guardando a carteirinha na
bolsa de ouro, retirou-se, descendo os degraus.
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