11/04/2017

A filha do faroleiro (Conto), de Virgílio Várzea


A filha do faroleiro

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Manhã alegre de outubro, no sul. A cidade do Desterro acordara há muito pela linha do cais, no seu contínuo movimento marítimo. O sol, ascendendo gloriosamente por trás do morro do Antão, lançava a princípio os seus grandes panos de luz sobre as montanhas fronteiras correndo na terra firme; depois estendia-os, pouco a pouco, às terras altas da ilha onde, pela distância, disposição e relevo das massas de argila e granito se iam desenhando com nitidez os quadrados irregulares das roças, de um verde de tons infindos. Toda a vasta e magnífica baía começava a resplandecer então como uma imensa catalufa líquida em que se espalhavam ao litoral, à calmaria da hora, as paisagens e o casario branco e rareado dos sítios alcandorados, aqui, além, sobre cabeças e cabos, como imensos ninhos risonhos onde a felicidade habita. Na bela curva do porto, fechada a noroeste pelo monte do Estreito e a sueste pela ponta do Zé Mendes, cruzavam-se, em velejos graciosos, lanchas, canoas e botes, com velas alvas de linho. Muito fora, para o largo, a multidão dos navios de longo curso e de cabotagem: cascos elevados de barcas, bordas de lúgares e brigues, de polacas e patachos, e talhes finos de escunas e iates coroados pelo arvoredo dos mastros, artisticamente entrelaçado à larga trama delicada e aérea da cordoalha. Mais além, para o sul, onde a recortada costa insular finda em ponta, ponta de penedia empinada, entrevia-se, através os rasgões da bruma argêntea, já em dispersão e em fuga sobre a vastidão das águas, os pórticos amplos da barra abrindo para os rumos austrais – o cabo dos Naufragados e três ilhotes graníticos, rendados e meio fulvos na orla afastada e nostálgica do horizonte do mar.

De pé, no cimo da escada, ao extremo da longa ponte da Capitania, em que se erguia um alto guindaste de ferro em meio às duas linhas dos turcos de onde pendiam, içados, os escaleres do serviço — eu e o meu camarada Horácio de Carvalho, oficial de diligências da repartição onde éramos empregados, contemplávamos, mudos e enlevados, o quadro admirável do alvorecer na baía, enquanto embaixo, na vaga, ao longo das muralhas circulares do antigo forte de Santa Bárbara, a poucos metros dali, um grupo de remadores em faina, numa “lupa” maruja, desfazia a amarração da catraia que nos devia levar ao farol de Naufragados. Assim nos achávamos quando uma figura alta de caboclo surgia de repente a meu lado, grosso e atlético na sua japona escura de oleado, a mão erguida em continência até o boné em palmatória, de pala curta encurvada: — Pronto, seu secretário. ‘Stá atracada a catraia...

Acomodando os sobretudos e livros que levávamos, descemos logo a escada, tomando lugar à popa, sobre as largas bancadas recobertas de tapetes de linho branco orlados de pano azul, com âncoras vermelhas aos ângulos. O marinheiro, que embarcara em seguida e se fora colocar à ré do guarda-patrão, depois de me dirigir uma pergunta a que dei assentimento, gritou para os tripulantes:
— Larga! E aguentaremos pra adiante, até que venha uma aragem...

Doze pulsos musculosos vibraram os punhos dos remos, cujas longas e polidas pás de pinho de Riga entraram a bater a superfície serena das águas com chapes-chapes contínuos, alternando ritmicamente com o cantar monótono e áspero das toleteiras metálicas.

A catraia começou a resvalar pesadamente no meio da calmaria, uma calmaria de fim de sueste, completa, absoluta, “podre”, como dizem os marujos. Mas o céu, no alto, era azul, de um azul macio e límpido, sob o pálio de ouro do sol. E à proporção que avançávamos para o meio da baía, onde velas e velas passavam, lentamente, em revoadas alvíssimas, a amontoação dos navios de longo curso e de cabotagem se ia gradativamente ampliando e cada casco destacava, aproado à maré, nas amarras, a mastreação muito nítida à loura luz da manhã.

Reclinados à borda, e ainda enlevados no pitoresco panorama da rade, olhávamos agora, não sem uma vaga nostalgia, as casas brancas da cidade recuando pouco a pouco, sob as cintilações de ouro do sol, na linha rasa do cais. Era uma profusão de paredes fulgurantes no mar de almagre dos telhados, de onde irrompiam para o alto, aqui, ali, como grandes brochadas de cal, as torres altas das igrejas dispostas aos pares, muito eretas, com as suas cruzes de ferro como se fossem traçadas, à pena, no cetim azul do Espaço.

O mar nos atraía porém no seu lençol de esmeralda, estreitado entre o continente e a ilha, expondo a cada margem, em recortes arenosos, alvuras doces de praias: e, passada a linha dos barcos, esquecemos a cidade, fascinados pelos ninhos risonhos das enseadas e sacos, bordando a costa insular para o sul do Desterro a Naufragados.

Pela ilhota do Largo, um vago sopro de brisa começou de frisar levemente a serenidade das águas. O patrão mandou então içar velas: e dois latinos alvacentos palpitaram nos mastros, imensamente abertos, como um estranho, gigantesco par de asas em voo Mas a aragem mal pudera bojá-los a um bordo, nas lassas escotas delgadas. E a catraia parecia adormentada no banzeiro, sem uma esteira de espuma popa fora, ou burburinho cantante ao talha mar.

Assim rolamos longas horas, sem quase nada adiantarmos, até que enfrentamos o arraial da Tapera, para onde mandei aproar. Aí lançavam redes e pelo alto dos cômoros cresciam já alguns pequenos montes de peixe, cobertos com ramos de árvores. Por toda a parte o meio-dia jorrava profusamente do alto um fino pó de ouro morno — e como estivéssemos só com o café da manhã, ordenei ao patrão fosse arranjar uns peixes para uma “caldeirada”. O prestante marinheiro partiu para o recanto da costa onde andavam as redes e daí a instantes volvia com uma cambulhada de corvinas frescas. Rapidamente se fez um fogo de gravetos e, pronto o “caldo”, foi-nos ele servido, em pratos de uma cabana próxima, à sombra de um laranjal, enquanto a catraia, abicada na areia, as velas ferradas nas altas vergas recurvas, balouçava os topes no ar. E um rapazinho grumete, de quinze anos mais ou menos, a face róseo-morena e de negros olhos nostálgicos, que ficara a tomar conta da embarcação, sentado ao banco de proa, alegremente cantava:

Em que ditosos momentos
Dorme a veleira catraia,
Na calma do mar, dos ventos
Sobre as areias da praia!

Duas horas depois, já a embarcação velejando e ao rumo, a aragem refrescava e, em algumas bordadas, apesar da maré de enchente, alcançávamos Naufragados. Todo esse último trecho da viagem, eu e o meu companheiro, o fizemos estirados às longas bancadas de ré; com as roupas a bem dizer escaldando, mordidos intensamente nas mãos e no rosto pela viva luz solar que nos batia de chapa, entediados pela singradura morosa e esquecidos das belas paisagens litorais e do próprio Mar, que nessa época irresistivelmente nos levava a passarmos domingos inteiros a bordejar à vela em escaleres ou baleeiras e acordarmos com as estrelas para as pescarias ao largo.

Entretanto, ao pisar o cais de pedra do porto eu me sentia bem outro, no bom humor da chegada. O Horácio, muito alto no seu todo da houssard, sobraçando o sobretudo e os livros, o grande pince-nez de tartaruga acavalado ao nariz, a face pálida meio tostada agora pelo sol, dizia-se ainda “maçado da retardada viagem”. Mas no seu vago sorriso transparecia sem dúvida um alegre estado da alma.

Para se ir de desembarque ao farol era necessário percorrer-se uma extensão de mil metros, ou mais a galgar, por um sinuoso atalho de cabras, a grande lombada de outeiros que começa em Caiacanga e vem morrer em Naufragados. Conhecendo bem o local, meti-me logo a caminho, sem esperar que o patrão e os remadores saltassem e, seguido do meu amigo, que às vezes tenteava cautelosamente as ervagens para não rolar morro abaixo, entrei a recontar-lhe alegremente a deliciosa impressão que eu experimentara, quando ali estivera pela primeira vez, ao ver a filha do 1º faroleiro, a Rosália; uma morena de rara e adorável beleza.

— Fora isso há quatro anos, dizia-lhe eu, quando tu andavas ainda lá pelo Rio ou São Paulo. Eu tinha vindo examinar o farol. A inspeção fora rápida porque o dia ameaçava temporal e a embarcação que me trouxera — um velho escaler de cavernas partidas e metendo água — não dava para aguentar o tempo, caso se fizesse preciso arrastá-lo. Ainda assim, pude percorrer a grande casa dos faroleiros e a torre do farol, examinar o aparelho da lâmpada e os sobressalentes. Foi em uma das seções dessa casa — a que está hoje de luto pela morte do chefe — que vi a Rosália, uma menina de treze anos então, cujos olhos negros e lindos, a pele doce e de jambo os cabelos pretos e densos caindo-lhe até muito abaixo da cinta, fascinavam vivamente. E era de tal graça ingênua essa adorável criança, no seu porte alto e cheio, que a gente esquecia-se a olhá-la, num enlevo... Enfim, meu amigo, uma verdadeira formosura. Contemplei-a por instantes apenas, pois já estava a embarcar. Mas a impressão experimentada, ao deixar nesse dia o farol, ficou-me indelével no espírito. Vais ver daqui a pouco a Rosália, que, apesar de um lustre volvido, deve estar ainda a mesma, ou mais formosa, talvez. E mais não digo, por enquanto, para que tenhas uma verdadeira surpresa.

O Horácio, que caminhava mais atrás e já cansado da subida íngreme, às minhas últimas frases murmurou apenas monossílabos, como numa vaga dúvida de tudo o que eu lhe narrava...

No entanto chegávamos ao alto da vasta colina onde se abria o amplo terrapleno em que assentavam a torre branca do farol e a casa dos faroleiros: e paramos um pouco, a descansar sob as raras árvores copadas que aí ensombravam o atalho, admirando a imensa marinha circundante envolvendo todo o cabo. O sol, posto fosse de primavera e descesse já do zênite, tinha rutilação ardentíssima e peneirava moedinhas de ouro dançantes através as rendas das ramas que tremiam ao vento. E apesar dessa aragem do mar era tal a mornidão do ambiente que uma sonolência invadia-nos, argumentada pelo contínuo zumbir dos besouros e o chiar melancólico e monótono das primeiras cigarras. O verão antecipava-se estranhamente naquele ano.

Como porém o serviço do farol aguardava-nos com urgência, recomeçamos a marcha que se fazia agora por caminho plano e livre, de boas andadas. Ao cairmos no descampado do outeiro encontramos o 2o faroleiro que, tendo visto a catraia atracar, corria já ao nosso encontro. Apenas trocamos os primeiros cumprimentos, eu e o meu camarada demos-lhe os nossos pêsames pela morte do irmão, o 1º faroleiro. E eu, curioso de pormenores sobre o passamento desse obscuro mas digno homem, que conheci durante meia dúzia de anos, sempre forte e atlético embora já na velhice, interroguei:

— Mas como fora a morte do Espírito Santo, coitado, assim tão de repente, pois não havia ainda um mês estivera na Capitania? Não obstante a idade, estava forte, alegre, bem disposto, revelando ainda muita vida. Imagino em que desolação se não acha a família...

O homem, marchando ao meu lado, o pescoço meio vergado agora pelas desilusões e os desgostos, os cabelos e a barba mais grisalhos que nunca, respondeu-me numa voz trêmula e desolada:

— É verdade, seu secretário, ninguém esperava por aquela: O Joaquim, apesar dos setenta, andava ainda muito rijo, trabalhava como há quinze ou vinte anos passados, e nunca se queixava de nada. E para ver, eu lhe conto. Quando se fez a última pintura, no farol, este ano, foi ainda ele quem subiu à cúpula da torre, a pulso, para pintar a agulha e os para-raios... De repente, e quando menos se esperava, apanhou uma que o levou logo à cama... E não houve nada que o aliviasse, nem remédios de botica. Em cinco dias deu a alma ao Altíssimo. E lá está enterrado no cemitério do Pântano, desde a semana atrasada...

Aproximávamo-nos da vasta casa dos faroleiros. Pela frente, no terreiro limpo e varrido, um grupo de crianças de luto traquinava. À empena do norte, elevava-se um alto cercado de jardim e de horta, abrigado dos ventos furiosos do sul. Ao lado oposto, mais avançada para o mar, sobre o descalvado do cabo, a torre alta do farol, troncônica e de alvenaria branca, destacando no céu azulado como uma das grandes e luminosas catedrais da Esperança e do Bem, que se erguem humanitariamente por todas as paragens litorais do globo, beirando de um gigantesco rosário faiscante de belas estrelas de ouro as ilhas, penínsulas e continentes, para guiarem ao asilo remansoso e seguro os Nautas desventurados que, pelas desoladas noites revoltas de tormenta, buscam ansiosamente as enseadas e portos de abrigo, fugindo aos tremendos escarcéus do alto mar. Depois, eram os grossos vagalhões do Atlântico que vinham, iracundamente rugindo, desmanchar-se contra a penedia em rolos de espuma alva.

A certa distância, eu vi assomarem à porta de uma das seções do amplo casarão duas matronas de preto — a mulher do 2º faroleiro e a viúva cunhada. Estranhando a ausência da Rosália, cuja lembrança me bailava vivamente no espírito, perguntei ao bom do homem que caminhava a meu lado:

— Então, Sr. Francisco, que é da sua sobrinha Rosália, que eu aqui encontrei da vez passada?! Casou ou está passando tempos em casa de parentes aí para algum arraial?...

— A Rosália? seu secretário, acudiu o homem imediatamente, na sua voz de pesar. A Rosália anda por aí, bonita ainda, é verdade, mas totalmente louca, pobrezinha! Vossa senhoria não sabe o que houve? o Joaquim não lhe contou? Pois eu lhe conto. Faz um ano, agora em junho, que se deu uma grande desgraça. A Rosália ia casar, por esse tempo, com um rapaz da Pinheira, que aqui esteve de uma feita e a pediu ao pai. O Joaquim e a “mana” não lhe negaram a mão da filha, porque o rapaz era bom, de gente pobre e honrada, mas um mouro de trabalho: vivia da pescaria, já tendo a sua casinha e umas braças de terra, que dava a “meias” no lugar. As bodas estavam tratadas para o São João. Tinha-se falado ao rapaz para vir nas vésperas pra cá, e daqui os dois se irem “receber”, na igrejinha do Pântano... No dia aprazado, o rapaz, trazendo as suas coisas e “preparos”, embarcou numa canoa com dois camaradas e fez-se de proa para cá. Mas o tempo não estava seguro e, logo ao amanhecer, todos nós começamos a cismar que poderia sobrevir de repente um transtorno. E assim foi, por nossa desgraça, porque quando a canoa em que vinha o Tomás apontou no primeiro ilhote dos Papagaios, o pampeiro caiu, furioso, acompanhado de uma trovoada que parecia o fim do mundo. A canoa rompeu bem até à ilhota da Fortaleza, mas ao chegar a meio do canal da barra, onde o vento e as águas eram um Deus nos acuda, e foi virar para o porto, entrevelou-se nas ondas e desapareceu. Nós que estávamos a vê-la, lá do alto da torre, deitamos logo a correr para a ponta a arriar a baleeira, mas já ninguém viu mais nada, além da canoa emborcada... Daí a três dias dois dos corpos foram parar à Tapera: o de Tomás, porém, nunca mais apareceu... Assim que deu com o sinistro, a Rosália caiu com um vagado, e teve muitos seguidos durante quase um mês. Quando isso passou, a coitadinha entrou a malucar, a falar sozinha, a não “assuntar” direito o que dizia... De então para cá, quando o sol está vai-não-vai, à tardinha, pega num braçado de flores que colhe atabalhoadamente no jardim, e lá se atira a correr em direção à ponta do cabo, onde se afundou a canoa. Aí, de pé sobre as rochas mais avançadas, e inclinada para as vagas, põe-se a jogar, aos punhados, aquelas flores no mar, como se elas porventura caíssem sobre o sepulcro do noivo... O Joaquim, ao ver a filha nesse estado, pegou a cismar e a entristecer, caindo por fim muito mal. Correu para a botica, mas foi o mesmo que nada. Ao cabo de quinze dias sucedeu o que já lhe contei, e a viúva, infeliz, ficou por aí a lastimar-se, com os filhos na orfandade... Enfim, seu secretário, foi uma grande desgraça.

Quando o homem findou, eu e o meu camarada, vivamente impressionados, exclamamos:

— É verdade, Sr. Francisco, que terrível desgraça!...

Mas já chegávamos à primeira seção do vasto prédio e, saudando as senhoras e crianças, entramos para uma sala onde logo nos foi servido café. E como desejávamos voltar à cidade nessa mesma tarde, apenas descansamos um instante, passamos a cuidar do inventário, transportando-nos, acompanhados do 2o faroleiro, ao compartimento ou depósito em que se achavam os sobressalentes e demais material. No depósito havia quatro janelas abrindo para um e outro lado do terreiro, e duas pequenas portas — uma para a torre do farol e a outra, pela qual passaremos, comunicando com a enorme habitação dos faroleiros e do pessoal da baleeira do serviço, que, uma ou duas vezes por mês, viaja entre o farol e a capital. Prateleiras, como as de uma tasca, tomavam as paredes de alto a baixo, exibindo uma multidão de objetos de todo o gênero e grandes latas cilíndricas de óleo mineral.

Sentado numa cadeira de ferro junto de uma pequena mesa, o oficial de diligências abriu os livros e, tirando o tinteiro e a pena, entrou a inventariar os objetos por classes, número, estado de conservação e qualidades, enquanto o faroleiro nos ia mostrando um a um...

Posto que atento ao serviço, eu não esquecia a Rosália, num grande desejo de a ver, como outrora, na sua beleza adorável. E olhava de vez em quando o terreiro que se alongava pelo cabo batido da aragem do mar e revolvia no espírito a dolorosa história da pobre rapariga — quando ela subitamente apareceu rente à janela onde eu me achava, atacada no seu vestido afogado de luto, mas os olhos fascinantes no rosto inefável de virgem, carminado pelo sol. Saudou-me silenciosamente, com um gracioso mover de cabeça e estendeu-me a mão pequenina, roliça e de unhas rosadas, que apertei sorrindo, mas com uma emoção de mágoa. Depois, desviando de mim os seus olhos encantadores, debruados de longos cílios veludosos, pousou-os no meu amigo, e teve um vago sorriso. O Horácio, suspendendo por instantes a escrita, voltou-se, cumprimentou-a e pôs-se a fixá-la também. Mas fora só um relance, porque ela fugiu logo, num ímpeto incerto de louca e numa grande mudez...

E agora, mais penalizado e mais triste, eu acompanhava com a vista o seu vulto alto e negro, marchando a passadas violentas, mas ereta e garbosamente, para os rochedos avançados do cabo. Ao voltar-me para dentro, deparou-se com o meigo olhar do meu amigo, buscando vivamente o meu através dos vidros do seu pince-nez de míope. E ele murmurou com tristeza:

— Muito linda na verdade, a Rosália, coitada!...

Quando o inventário findou já o sol, no outro lado do mar, ocultava a sua luz por trás dos montes de oeste.

Saímos a dar uma volta pelo cabo. E como a cinza da noite começasse a rolar do alto e se acendesse já a leste a pontilhação dos astros, entramos na torre do farol para a nossa visita ao aparelho da lâmpada, que radiava lá acima, pelo seu foco colossal, aberto como uma fantástica e monstruosa tulipa de ouro, o qual encerrado num grande círculo envidraçado, com os seus eclipses instantâneos, banhava de largas faixas de luz a barra, o longo canal da baía e a amplidão negra, desolada e nostálgica do Atlântico...

Em seguida embarcamos, entrando a bordejar na catraia em demanda da cidade. O céu estava deliciosamente sereno, muito alto e radioso na imensa rede prateada das estrelas. O mar, açoutado pelo vento do largo, dobrava, em curtas vagas espumosas, aqui e além feericamente malhado de estrias de luz escarlate, sob os farolins dos navios e os combustores erguidos da profusa iluminação do cais.

Aconchegados à popa, nos sobretudos de inverno, por causa do vento frio do mar, eu e o meu amigo, os olhos alçados ao Azul, nos embebíamos fundamente do esplendor sideral, trocando ainda palavras de compaixão e de afeto sobre a jovem e desventurosa Rosália, flor de beleza e de graça, irremediavelmente perdida para sempre na noite turva e sinistra, pior sem dúvida que a Morte, da loucura formidável!

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