11/09/2017

A fome no Amazonas (Conto), de Humberto de Campos


A fome no Amazonas

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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São alarmantes, aflitivas, desesperadoras, as notícias provenientes da Amazônia, relatando o que têm sido, ali, os horrores da fome. Reduzidas à miséria extrema, centenas de famílias vivem, naquelas regiões inóspitas, sem remédios, sem roupa, sem alimentação, num retrocesso forçado à vida selvagem. As casas, que outrora permaneciam abertas à margem das estradas e dos rios, fecharam-se de todo, para que o viajante não veja, de passagem, a nudez das pessoas que nelas habitam. Milhares de senhoras, de moças, de meninas, refugiaram-se nos aposentos, por não terem um andrajo, um molambo, um trapo, sequer, para velarem as partes vergonhosas do corpo. E, se a carência de vestidos é tamanha, que se poderá dizer, então, da falta de alimentos? O episódio narrado pelo Sr. deputado Pereira Teixeira, que dele teve notícia por um amigo recentemente chegado do Acre, é desses que dissolvem em lágrimas as fibras mais duras do coração.

Seringueiro destemido, o Antônio Cajapió havia resistido, quanto possível, na sua barraca de Santa Ifigênia, à fúria da calamidade. Avisado de que os vapores de Manaus não iriam mais àquelas paragens, levando mantimentos, enquanto a borracha não subisse de preço, meteu-se ele no seu casebre, a consumir o que lhe restava: carne seca, feijão, farinha, bolachas, e, quando acabou tudo, sentou-se na canoa, e pôs-se de viagem, descendo o rio.

Ao fim de dois dias, descobriu, à beira da grande estrada fluvial, um barracão, que se achava completamente fechado. Intrigado, encostou a embarcação, amarrou-a a uma árvore da ribanceira e, como não tivesse mais um punhado de farinha para a fome do dia, resolveu disputá-lo, mesmo pela violência, aos moradores daquela tapera. Com esse intuito encaminhou-se para a porta, e bateu:

— Ó de casa!

Ninguém respondeu.

— Ó de casa! — insistiu.

Como o silêncio continuasse, o caboclo procurou uma fresta da porta, e olhou: dentro, estiradas na paxiúba do soalho, estavam, completamente despidas, a dona da casa, mulher ainda jovem, e duas irmãs desta, que lhe faziam companhia. Espiando pela fresta, viu ele que a família se encontrava em conciliábulo, procurando, talvez, um meio de atender ao viajante, quando não havia mais, na casa, quem tivesse um vestido ou um pedaço de pano para a nudez. De repente, como se tivessem deliberado alguma coisa, ele viu, do seu ponto de observação, que a dona da casa se afastava do grupo e, tímida, assustada, vergonhosa, chegava à mesa, tomava um prato vazio, que ali se achava, e, colocando-o no lugar em que devia estar a folha de parreira, encaminhar-se para a porta. Um minuto mais, a porta abria-se, e o caboclo recuava, espantado, ante o tipo escultural que lhe caía sob os olhos e cujo corpo só era vedado à sua curiosidade no ponto em que estava coberto pelo prato.

— Que deseja? — indagou a cabocla, de olhos baixos, desconfiada.

O viajante examinou, por um instante, a mulher, pensou dois minutos, e, sem se conter, trovejou:

— Almoçar!...

À tarde, quando a canoa partiu, as três mulheres juntavam com uma vassoura os cacos da louça espalhados no chão...

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