11/09/2017

Os "Reddis" (Conto), de Humberto de Campos


 Os "Reddis"

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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A alma humana é uma caverna tão ponteada de esconderijos e retorcida de zigue-zagues que ainda não houve na terra um homem, por mais atilado e meticuloso, que chegasse a conhecer a metade, sequer, do seu próprio coração. Quando a gente supõe haver encontrado uma vida simples, singela, sem complicações nem subterfúgios, eis que se abre diante de nós um abismo, um vulcão, uma boca subterrânea, capaz de engolir o peregrino que lhe busca desvendar o mistério. Mesmo no que diz respeito à educação, isto é, às qualidades adquiridas pelo indivíduo, essas surpresas não são raras nem, geralmente, pequenas. E era disso mesmo que eu me convencia, mais uma vez, há poucos dias, ao voltar da última recepção do coronel Anfrísio Guimarães, pai do Dr. Claudemiro Guimarães cujo nome é, pode-se dizer, um dos orgulhos da nova geração de advogados brasileiros.

Homem de sólidos capitais, o coronel, assim que o filho casou, teve, não se sabe por que, uma desinteligência com a esposa, a velha e virtuosa D. Querubina, passando a residir no palacete do novo casal, cujas despesas, de nove contos por mês, são enfrentadas galhardamente pela sua fortuna. Madame Claudemiro, a nora, tem pelos cinquenta anos do sogro uma adoração filial. O filho, o Dr. Claudemiro, respeita-o duplamente como pai, e, principalmente, porque o velho lhe desculpa sempre, como os bons pais, perante a esposa, as suas longas vigílias jurídicas fora do lar. E como a vida lhes corra, a uns e a outros, como um ribeiro japonês entre margens de crisântemos eu me dou, de vez em quando, ao prazer de visitá-los, concorrendo para a enchente das suas salas nas costumeiras recepções dos domingos.

Um desses dias, fui. E conversávamos em uma roda sobre costumes orientais, quando, de repente, a propósito de casamentos, eu me lembrei dos "reddis", povo da Índia meridional, cuja história havia lido na véspera, e contei, com certo desvanecimento:

— Os "reddis", nesse particular, são originalíssimos. Entre eles, a mulher de quinze ou vinte anos pode esposar um menino de seis, o qual será criado por ela. Enquanto, porém, a criança não cresce, ela fica, por seu turno, entregue a um parente do marido, geralmente ao pai deste, seu sogro, o qual poderá substituir o filho em todas as eventualidades. E este esposo interino preenche de tal forma as suas funções de tutor, que o marido, quando cresce encontra, já, a casa repleta de crianças, que, sendo seus filhos, são, também, seus irmãos.

Como se fizesse em torno de mim um silêncio geral, eu o aproveitei, continuando:

— Esses maridos não ficam, porém, prejudicados; sendo as suas mulheres mais velhas do que eles, e os "seus" filhos quase da sua idade, eles terão, mais tarde, a compensação, fazendo com os filhos o que o pai fizera com eles. E assim vivem muito bem.

Enquanto eu contava essa história, notei que alguém se afastava do grupo. E quando acabei, fiquei estarrecido com uma surpresa: junto de mim, com a minha bengala e a minha cartola na mão, estava o coronel Guimarães, que me perguntava, pálido, com ligeiros tremores no "cavaignac":

— O conselheiro pediu o seu chapéu?

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