A Gratidão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Estávamos nos últimos dias de dezembro de 1846. Uma camada muito espessa de neve cobria o solo. O ar, sombrio e carregado, indicava que mais neve não tardava a cair. Os ramos nus das árvores dos montes tremiam soprados pelo vento norte gelado. Estava tudo num perfeito sossego, e tristeza; nem o mais leve murmúrio se ouvia.
Uma velha, e uma criancinha, apesar do rigor do frio, seguiam com
dificuldade o caminho, que da serra de Valongo conduz a São Cosme. A criança,
de espaço a espaço, soprava às mãozinhas inteiriçadas pelo frio, e não se podendo
sustentar sobre os pés, que tinha inchados pelas frieiras, caminhava vacilante;
mas vencendo todos os obstáculos, com uma energia superior à sua idade, tomava
galhardamente o seu lugar ao lado da velha. Esta parecia ter sessenta anos.
Estava corcovada mais pela miséria, do que pela idade, e tinha no rosto
profundas rugas. Pelo modo como andava, e tateava o caminho com a muleta,
via-se que era cega.
— Aonde vamos nós, Rosa? — perguntou a velha à rapariguinha.
— Em meio caminho, a minha avó.
— Jesus Senhor, valei-me, — disse a cega, — pois que as minhas pobres
pernas já estão cansadas, e parece-me que não chego ao fim da jornada.
— Encoste-se ao meu ombro, avozinha, que eu não estou cansada.
— Não, não. Tudo está acabado. Eu morro aqui, Rosinha. Tenho muita fome,
e muito frio para vencer o caminho até São Cosme. Ai meu Pai do céu, que me
sinto desfalecer...
Fez um gesto de desespero, e a cega caiu sobre o caminho.
— Avozinha, avozinha, — gritava Rosa assustada, — volte a si, que lho
peço eu; mais um pequeno esforço e chegaremos a São Cosme.
A cega não deu acordo de si.
— Avozinha, — continuou Rosa chorando, e cobrindo-a de beijos, — se me
abandona, que hei de fazer? Quer que eu morra de paixão?
— Morrer, tu, minha Rosinha, — disse a cega levantando-se. — Oh! meu
Deus, não permitais tal.
— Então levante-se que lho peço eu; se fica aqui mais tempo o frio
matá-la-ia. Em São Cosme nos aqueceremos.
— Ai de mim, — disse a cega, levantando-se ajudada de Rosa, — e a Sra.
D. Teresa receber-nos-á?
— Há de receber sim, minha avozinha, eu lho afianço. Não creio que a boa
Sra. D. Teresa nos despeça. Quando eu lhe ia vender flores silvestres, que
apanhava no monte, abraçava-me, e dizia-me muitas vezes, que desejava que eu
fosse sua filha.
— Não duvido que ela te receba, porque és muito linda e agradável; agora
o que eu não creio é que me receba a mim, que sou uma velha e cega, que para
nada sirvo.
— Se assim acontecer, voltaremos à nossa aldeia, e os bons lavradores,
que conheceram meus país, terão piedade de nós, socorrer-nos-ão, e eu
trabalharei para lhes pagar, o que eles vos derem.
A avó, muito comovida, apertou ao coração a pequena, e murmurou palavras
de ternura e gratidão; e reanimada por esta felicidade, que Rosa lhe tinha
feito experimentar, retomou com passo mais firme o caminho de São Cosme.
O vento soprava já com mais força; o ar tinha escurecido mais, e
pequenos flocos de neve se viam voltejar no ar. Rosa, tiritando com frio, fazia
esforços sobre-humanos para poder andar, e cada passo, que a pobre cega dava,
era acompanhado de um suspiro surdo. O vento aumentou, e os flocos de neve, que
ao princípio eram raros, caíam em maior abundância.
— Rosinha, — disse a cega, — bem queria andar, mas não posso; deixa-me
ficar.
— Avozinha, eu já avisto a torre da igreja de São Cosme.
— Estás bem certa disso?
— Eu não queria mentir...
— Vamos andando. Permita Deus que eu possa vencer o caminho.
— Não tenha receio de me cansar, minha avó; sou forte, e não estou
fatigada. Encoste-se ao meu ombro.
— Meu querido anjinho, que Deus te pague tudo o que me fazes.
Chegaram finalmente a São Cosme, à quinta de D. Teresa de Sousa, depois
de mil esforços, que cansaram completamente avó e neta.
Era tempo; mais um instante e teriam caído ambas no chão. Entrando na
cozinha da casa, o calor produziu-lhes uma reação tão violenta, que
desfaleceram.
CAPÍTULO 2
D. Teresa de Sousa, e mais algumas vizinhas, que se tinham reunido para
cirandar, acercaram-se das duas infelizes. Depois de lhe ter ministrado todos
os cuidados necessários para as reanimar, como o seu principal mal era a fome,
mandou-lhe dar um bom caldo, e acomodá-las a um dos cantos do lar, em que ardia
uma grande fogueira.
— Agora, Rosinha, — disse D. Teresa, ameigando-a, — conta-nos, como a
esta hora, e com este tempo vieste até aqui com esta boa mulher.
— Desculpai, minha boa senhora, — disse a cega, — Rosinha é a minha
neta.
— Sim, Sra. D. Teresa, é minha avó, de quem tantas vezes tenho falado a
vossa excelência e...
— Então por que não continuas? — lhe replicou D. Teresa.
A pequena levantou para D. Teresa os seus lindos olhos azuis, com uma
tal expressão de súplica, que a comoveu.
— Fala, fala, minha menina. Não tenhas receio. Queres pedir-me alguma
coisa, não é assim?
— Vede, minha boa senhora, — disse Rosa, contendo as lágrimas a custo, —
eu e a minha avó, somos muito desgraçadas. O meu pai, que era rachador de
lenha, feriu-se pelo São João num a perna com o machado. A minha mãe mandou-me
chamar a toda a pressa o Sr. Pereira, que é um homem muito entendido. Fui, o
mais depressa que pude, e quando cheguei a casa do Sr. Pereira estava ele para
sair, e não queria vir comigo para não torcer o seu caminho; mas eu tanto lhe
pedi, que sempre me acompanhou. Quando viu a perna o meu pai, logo disse, que
estava muito mal, e que não prometia curá-lo. Duas semanas depois veio à ferida
uma moléstia, de que me não lembra agora o nome, e o meu pai morreu.
Rosa calou-se chorando, e a cega também soluçava. D. Teresa abraçou a
rapariguinha, apertou a mão à pobre velha, e disse:
— Para hoje já é demais, amanhã...
— Perdoe-me, Sra. D. Teresa, — replicou Rosa, — mas é melhor que eu
termine hoje, — e continuou:
— Havia um mês que o meu pai tinha morrido, quando a minha mãe caiu de
cama; a febre não a deixava. Eu ia aos campos apanhar as ervas, que a minha avó
me ensinava, para lhe fazer remédios, mas nada sarava a minha mãe. Um dia
abraçou-me e disse-me:
“Minha pobre Rosinha, eu vou unir-me com o teu pai, mas que será de ti?
Trabalharei, lhe respondi.
És muito nova para isso; mas entretanto rogarei muito a Deus para que te
receba sob a sua santa guarda, e te não abandone. Nunca desampares a tua avó,
sê-lhe obediente e carinhosa... ainda queria falar, mas não pôde, abraçou-me e
à avozinha, e expirou.”
Desde então alguns rachadores, amigos do meu pai, nos recolheram e
socorreram; mas como não são ricos, e precisam de mudar de terra por não terem
aqui que fazer, lembrei-me de vir pedir agasalho à senhora, pois que, sendo tão
boa, não deixaria de nos recolher, que somos tão desgraçadas. Sou fraquinha,
mas posso trabalhar. Sei fiar, e começo a lavar. Guardarei os bois, e os
carneiros e tratarei do galinheiro. A minha avó também fia muito bem e estou
muito certa, que a há de satisfazer com o seu trabalho. Oh! senhora — disse Rosa
ajoelhando-se aos pés de D. Teresa — não nos abandoneis; satisfazemos-nos com
pouco, e faremos todo o possível para vos agradar, e rogaremos continuamente a
Deus pela vossa vida e felicidade.
D. Teresa comoveu-se tanto, com a singeleza e candura desta súplica, que
duas lágrimas lhe brilharam nos olhos.
— Levanta-te, Rosinha, amanhã falaremos nisso. Tu e a tua avó ide-vos
deitar. Sempre te direi, que és muito linda e corajosa, para que se não tenha
piedade de ti.
Rosa beijou com reconhecimento as mãos de D. Teresa, e a cega encheu-a
de bênçãos. D. Teresa mandou-as conduzir a um pequeno quarto, limpo e quente,
em que um sono reparador lhe reanimou as forças.
CAPÍTULO 3
Ainda mal a aurora tinha raiado, já Rosa estava a pé. Fatigada, como estava, da jornada do dia antecedente, custou-lhe muito a levantar-se cedo, mas fez um esforço para mostrar os seus desejos a D. Teresa.
Arranjou-se, o melhor que pôde, com os seus velhos vestidos, e, depois
de ter dirigido mentalmente a Deus uma oração fervente, desceu ao andar térreo.
— Já a pé, — disse-lhe alegremente D. Teresa.
— Estava tão cansada do caminho de ontem, que receei, já fosse tarde;
mas graças aos vossos benefícios, minha senhora, já estou pronta, para o que me
determinardes.
— E a tua avó?
— Ainda dorme. É tão velhinha e tão doente, que vos peço tenhais piedade
dela.
Rosa ergueu as mãos, e esperou trêmula a resposta da dona da quinta.
D. Teresa de Sousa era, o que vulgarmente se chama, uma mulher de casa.
Tendo viuvado há doze anos, geria com tanto acerto e economia as suas
propriedades, que a sua fortuna tinha aumentado consideravelmente.
Os vizinhos do lugar diziam que, pela avareza e mesquinharia, é que
tinha alcançado a fortuna, que possuía, pois que em qualquer coisa sempre tinha
que diminuir, e acrescentavam ironicamente, que, dando tantas esmolas, o
dinheiro nunca lhe havia de faltar.
Fosse como fosse, o que sei é, que D. Teresa sensibilizou-se tanto com a
história de Rosinha, que, quando ela ergueu as mãos, e a viu com os olhos
arrasados de lágrimas, esperando a resposta, disse para si; que a uma súplica
tão humilde e cheia de tanto amor filial, era impossível resistir.
Neste momento quem acusasse de avarenta D. Teresa de Sousa, seria
injusto com ela, porque, recolhendo a avó e neta, tomava um encargo bastante
pesado. Rosa era ainda muito pequena, e para além do mais muito fraquinha, para
poder ter utilidade real! A pobre criança estava a fazer dez anos, mas era
muito franzina e delicada. O seu rosto, cercado de compridos caracóis louros, e
animado com uns grandes olhos azuis escuros, inspirava simpatia. Tinha as
maneiras delicadas, e a linguagem menos rude, que a dos camponeses dos
arredores. Esta distinção numa criança, ainda tão tenra como Rosa, nascia da
sua inteligência muito desenvolvida.
A mãe, logo que ela teve tino para se não perder nos caminhos, mandava-a
apanhar flores silvestres, que ia vender às famílias mais abastadas das aldeias
vizinhas. Como Rosa era muito linda as senhoras das casas acolhiam-na muito
bem, divertiam-se com ela, ouvindo-a tagarelar, e demoravam-na muitas vezes a
brincar com as suas filhas.
Sendo muito viva tomou facilmente as maneiras, e modo de falar, das
pessoas com quem tratava, de modo que os rachadores denominavam-na a
fidalguinha.
Se tinha adquirido maneiras delicadas, não havia perdido as boas
qualidades, de que era dotada; humilde e carinhosa para todos, quem a conhecia
adorava-a.
O que a mim, minhas caras leitoras, me levou tanto tempo a dizer, passou
num instante pela ideia a D. Teresa de Sousa, e fixou-lhe a resolução de
recolher a avó e a neta.
— Vou-te mandar vestir uma roupinha melhor, Rosinha, — disse-lhe D.
Teresa, animando-a com uma brandura, que lhe não era habitual, — porque espero
hás de ser uma boa criada, serviçal e trabalhadeira.
— Então fico em casa de vossa excelência? — disse Rosa, não podendo crer
em tanta ventura.
— Ficas, sim, e parece-me que nunca me darás motivo para me arrepender
do que hoje faço.
— Oh! minha senhora, estai certa que me esforçarei o mais possível, para
vos agradar e satisfazer os vossos desejos.
— Assim o espero. Anda vestir-te.
— Desculpe-me, senhora. Mas a minha avó... — e Rosa parou corando.
D. Teresa, querendo experimentar a sua protegida, disse:
— Que quer a tua avó?
— Ela também fica?
— Não. A tua avó é cega e velha, para nada serve, e eu não sou rica
bastante, para me encarregar da sustentação de duas pessoas.
— Então, senhora, agradeço os vossos benefícios, e todo o bem que me
queríeis fazer, mas não posso abandonar a minha avozinha, que morreria de paixão.
Vou ajudá-la a levantar-se, e regressaremos à nossa aldeia.
— E que hás de fazer na tua aldeia?
— Irei humildemente pedir a um mestre tamanqueiro um pequeno cantinho da
sua casa, que estou certa me não negará. Não sou robusta, mas tenho coragem, por
isso trabalharei nos socos durante o inverno. Quando vier o verão irei vender
flores e frutos, como os demais anos, e como eu, e a pobre cega, de pouco
precisamos para viver, parece-me que ganharei para ambas. Logo que chegue a
primavera não seremos pesadas a ninguém...
D. Teresa apertou Rosa nos braços, e chegou-a ao coração.
— Basta, Rosinha, tu és um anjo do céu, que Deus enviou a minha casa
para me trazer a felicidade. Vai-te vestir, e depois irás participar a tua avó,
que ambas ficais para sempre na minha casa.
Descrever a alegria da avó, quando soube a decisão de D. Teresa, é-me
impossível fazê-lo, minhas caras leitoras; vós, que deveis ser dotadas de bom e
piedoso coração, melhor a podereis imaginar. Abraçava Rosa, agradecia a D.
Teresa com um reconhecimento muito sincero, prometendo fazer todo possível para
ser menos pesada à sua benfeitora. Rosa nada dizia, mas a eloquência do seu
olhar provava a D. Teresa a sua gratidão.
CAPÍTULO 4
Rosa, ainda que novinha e de fraca organização, tornou-se útil em casa.
Incansável no trabalho, de manhã cedo tratava da capoeira e do pombal; depois
ia guardar os bois e os carneiros, e, enquanto que os vigiava, fiava na sua roca.
Ao jantar, quando recolhia a casa, tinha sempre que fazer. Era um gosto
ver esta criança tão tenrinha arrumar, limpar e lustrar os móveis, como o faria
a melhor mulher de casa.
D. Teresa cada vez mais estimava a sua protegida, e felicitava-se pela
ter recolhido. A avó também não era inútil. A cegueira não a impossibilitava de
fiar desde pela manhã até à noite, e o seu trabalho era perfeito. Tudo corria
bem, e todos andavam contentes e satisfeitos.
Chegou a primavera. Começaram a desabrochar com o tépido sopro desta
estação, e mostraram as suas galas, a bela pervinca azul, o narciso de coroa de
ouro, o lírio de campanas odoríferas, e a bela violeta de cálices perfumados.
Rosa, quando ia à serra, era para ela um dia de alegria. Procurava os
caminhos tapetados de musgo, os regatos, que tantas vezes tinha passado, as
fontes escondidas pelas sarças, e as árvores, sob as quais tinha encontrado as
mais lindas flores. Rosa sentia-se mais livre e mais feliz na serra, do que nos
campos da quinta; a todo o momento parava extasiada diante das belezas da
natureza, e cada sítio novo, que achava, era como se fosse um amigo. Quando o
sossego voltava, depois desta alegria e animação, esta poética criança fazia
cestinhos de vimes e juncos, que guarnecia com musgo e flores silvestres, mas
com um gosto e beleza esquisito, os quais D. Teresa mandava vender, dando sempre
bom preço.
Ganharam renome os cestos de Rosa.
Em todas as quintas e casas ricas dos arredores não queriam outros, e
até muitas famílias da cidade, que iam passar o verão àqueles sítios, compravam
e procuravam com avidez os cestos desta gentil ramalheteira.
D. Teresa, como mulher que compreendia os seus interesses, entendeu que
lhe era de mais proveito o empregar Rosa, durante a primavera, a fazer cestos e
ramos, do que na quinta, por isso assim o determinou. Quando Rosa o soube,
saltou de alegria, porque se dava melhor à sombra dos pinheiros e carvalhos, do
que em casa.
Passou-se assim o verão, e D. Teresa não teve que se arrepender da sua
resolução. Um certo número de meias coroas de prata provou o bom resultado do negócio de cestos e flores.
O inverno pareceu triste e monótono a Rosa. Tinha-se habituado de tal
maneira a ir todas as manhãs para a serra, que chegava muitas vezes a
esquecer-se do trabalho, e ir insensivelmente até à baixa dela. Voltava então
muito apressada à quinta e redobrava de atividade, para fazer esquecer as suas
faltas involuntárias.
Ocupou-se a fiar quase todo o inverno, e o produto do seu trabalho foi
aumentar o pequeno tesouro começado com a venda dos cestos e flores.
D. Teresa considerava Rosa como sua filha, não podendo estar sem ela um
único instante, e nos dias de feiras e romarias tinha gosto em que Rosa
aparecesse entre as mais lindas e mais ornadas lavradeiras do lugar.
A amizade, que tinha a Rosa, refletia-se na avó; tratava-a com tal
respeito e afabilidade, que a poderiam tomar por mãe de D. Teresa, tanto ela a
cercava de cuidados e desvelos.
A felicidade da pobre cega, e bem assim o futuro de Rosa poder-se-iam
julgar seguros; mas como nada neste mundo é imutável, o momento, em que a
adversidade ia estender o seu braço de ferro sobre as duas infelizes, não
estava longe.
CAPÍTULO 5
Voltou a primavera e com ela as encantadoras ocupações de Rosa. Foi com
entusiasmo, que a cândida e poética criança encontrou as flores, suas amigas,
com que preparou os primeiros ramos, que apareceram no mercado.
Os cestinhos e ramos de Rosa obtiveram uma grande extração, como no ano
anterior. Ia entregá-los pessoalmente nas casas ricas, e muitas vezes as
senhoras morgadas, se julgavam felizes por ter na sua companhia esta linda
criança por algum tempo.
Rosa, vestida à lavradeira, era muito galante e modesta; o seu metal de
voz era agradável, e as maneiras tão delicadas, que quais sempre as freguesas,
ao preço do ramo, juntavam um presentinho para a vendedeira; mas quando
perguntavam a Rosa o que era que mais estimava, respondia sempre, que o seu
maior desejo era possuir um livro para se instruir.
Rosinha tinha uma paixão ardente pelo estudo; quase sem mestre tinha
aprendido a ler correntemente, e a sua maior alegria consistia em obter um livro
para se entregar à leitura.
D. Teresa pela sua parte também não obstava aos desejos de Rosa, tanto
que se lhe não dava que ela faltasse às suas obrigações; mas devemos fazer-lhe
justiça dizendo que sabia aliar a satisfação dos seus desejos, com o cumprimento
dos seus deveres, por isso só depois de ter terminado os seus afazeres é que se
dava ao estudo.
Estava Rosinha uma ocasião sentada à borda de um ribeiro, entretida a
colher juncos para fazer um cesto, quando, sem ela o pressentir, se lhe
aproximou uma senhora ainda jovem.
— Para que estais escolhendo esses juncos, minha menina? — disse-lhe a
jovem senhora com modo afável.
Rosa levantou a cabeça, e vendo a desconhecida, saudou-a e respondeu:
— Faço cestinhos com flores para vender.
— Quero então já avaliar a vossa habilidade. Amo muito as flores, por
isso queria que me fizesses um cestinho já, e se eu ficar contente hás de me
fazer um todos os dias. Aceitais?
— Aceito, sim, minha senhora, e ainda que tenho muitas encomendas a
satisfazer, vou já preparar o vosso.
— Assento-me aqui ao pé de ti e vamos conversando. Como te chamas?
— Rosa de Jesus, uma sua criada, minha senhora.
— Assim, Rosa, o teu trabalho é fazer cestos de flores para depois os
ires vender?
— Sim, minha senhora.
— E teus pais em que se ocupam?
— Já não tenho pais; só me resta a minha avó, que é cega.
— És órfã, e onde moras?
— Estou em casa da Sra. D. Teresa de Sousa, proprietária em São Cosme,
tão boa, como rica.
Há um ano, que eu e a minha avó não sabíamos aonde nos havíamos de
recolher; estávamos em dezembro, e havia dois dias que não tínhamos comido,
quando de repente me lembrei da Sra. D. Teresa. Eu e a minha avó, que então
morávamos na serra de Valongo, pusemo-nos a caminho para São Cosme. O caminho é
muito mau, por isso mais de uma ocasião julguei que a minha avó ficava na
estrada, porque já não podia andar; mas o Senhor teve misericórdia de nós, e
felizmente terminamos a jornada. A Sra. D. Teresa tratou-nos com muita bondade,
e recolheu-nos na sua casa, apesar de sermos um encargo muito pesado.
— Amas então muito a Sra. D. Teresa?
— Se a amo. Não queria mais nada, senão poder reconhecer todo o bem, que
nos faz. Não desejo senão crescer e robustecer para lhe poder servir de
utilidade.
— Estou muito contente, minha pequena, por te ouvir falar assim. Quando
te vi senti-me atraída para ti, e ficaria muito desgostosa se te não
encontrasse com sentimentos dignos da estima que te consagro.
Parece-me que o meu cesto está acabado?
— Ainda lhe falta uma cercadura de não
me deixes. Permiti, senhora, que eu vá ao próximo ribeiro colher estas
flores, porque ali as há mais frescas, e em mais abundância.
— Ide, que aqui te espero.
Rosa partiu correndo.
D. Júlia de Andrade, que tanto interesse mostrava pela protegida de D.
Teresa, tinha vinte anos.
O cabelo preto muito comprido, e naturalmente encaracolado, fazia-lhe
sobressair ainda mais a palidez do rosto. Os olhos castanhos tinham um brilho
de febre. A fisionomia demonstrava um padecimento interno, numa palavra, estava
afetada de uma tísica pulmonar.
A sua mãe, a Viscondessa do Candal, receando pela vida de D. Júlia,
tinha consultado os mais acreditados médicos de Lisboa e Porto, e todos tinham
aconselhado os ares do campo, e o não constrangimento, como os meios mais
profícuos para debelar a moléstia. A Viscondessa tinha portanto deixado o Porto
e ido habitar com as suas filhas D. Júlia e D. Berta uma quinta próximo da
serra de Valongo.
D. Júlia parecia que revivia no meio da luxuosa natureza, que a cercava.
Todos os dias dava grandes passeios, e distraía-se ou sentando-se à sombra dos
carvalhos e sobreiros, ou embrenhando-se entre as sarças. Ao princípio a
Viscondessa receou que estes passeios tão longos prejudicassem a saúde da sua
filha, mas vendo-a mais alegre e mais vigorosa, e que se a palidez não tinha
desaparecido, a expressão sofredora do rosto era menos pronunciada, ficou mais
sossegada e esperou obter o triunfo sobre a moléstia.
D. Júlia era tão boa, e ao mesmo tempo tão prudente, que a sua mãe não
temia deixá-la em plena liberdade, e gozar da vida segundo as suas fantasias.
A Viscondessa queria que D. Berta acompanhasse sua irmã nos seus
passeios; mas D. Berta, que era uma jovem de 16 anos de idade, orgulhosa do seu
nascimento e beleza, recusou obstinadamente acompanhar sua irmã, dando como
razão, que lhe repugnava o juntar-se como ela com esses estúpidos e rudes
aldeãos, que habitam os campos, e a quem ela acariciava, e que além disso
estragava os seus vestidos seguindo D. Júlia pelos caminhos estreitos e
escabrosos dos campos e da serra. As mil vozes da natureza eram mudas para D.
Berta; no seu coração só imperava o egoísmo.
Num destes passeios é que D. Júlia encontrou Rosinha, e que ficou
encantada com a sua inocência.
Havia muito que D. Júlia esperava Rosa, e já receava que ela não
voltasse, quando a viu vir correndo.
— Perdoai-me, senhora, o ter-vos feito esperar tanto tempo, mas eu fui
muito longe colher as violetas e os não
me deixes, porque queria que o meu cestinho vos agradasse. — Assim falando
Rosa apresentou a D. Júlia um cestinho, que era um primor de arte no gosto, e
esperou toda confusa, a sua apreciação.
Uma alegre exclamação de D. Júlia lhe fez vir o sorriso aos lábios.
— Quero abraçar-te, minha querida menina; há muito tempo que não vi nada
tão lindo, e como me causaste um grande prazer, quero recompensar-te; mas
deixa-me ainda admirar o teu belo trabalho.
Este cestinho podia ver-se. No centro tinha raminhos de violetas com as
folhas verdes, ainda úmidas; uma coroa de lírios cercava as violetas, e em
volta uma grinalda de musgo, semeada de raminhos de rosas amarelas e gerânios.
Dois ramos de madressilva serpenteavam por entre os juncos formando as azas.
— Não quero — disse D. Júlia, depois de alguns instantes de silêncio —
que uma obra tão bela tenha um viver efêmero; vou já bordar um quadro, cópia
deste cestinho, que há de ficar muito rico. Mas, Rosinha, quanto queres por
este trabalho?
— Dar-me-á o que quiser, minha senhora, como costumam fazer as outras
minhas freguesas.
— Mas quanto é que custam ordinariamente?
— Três ou quatro vinténs.
— Quatro vinténs! — disse D. Júlia admirada.
— Acha caro, minha senhora? — disse Rosa com acanhamento.
— Caro, não, minha pequena. Quando estava no Porto pagava, por muito
maior preço, ramos que tinham muito menos valor, que o teu cestinho. Toma,
Rosinha, não tenho aqui senão esta meia coroa, mas amanha a esta hora aparece
aqui, e falaremos...
— Não posso aceitar o que me dais, minha senhora, porque é muito.
— Queres fazer-me zangar?
— Não, senhora. É a primeira vez que a vejo, mas já a estimo muito. Eu
não preciso de nada; a Sra. D. Teresa é muito minha amiga e...
— Não é uma esmola que te dou — replicou D. Júlia, metendo a moeda de
prata na mão de Rosinha — não te esqueças da recomendação, que te fiz, de
estares amanhã aqui a esta mesma hora.
E antes que Rosa tivesse tempo de recusar, já D. Júlia tinha
desaparecido, levando na mão o cestinho.
Rosa ficou um instante sem saber o que havia de fazer, mas recomeçou
ligeiramente o trabalho. Quando ao jantar voltou a casa, contou a D. Teresa o
seu encontro de pela manhã, o que lhe tinha acontecido e perguntou-lhe se devia
ou não guardar os cinco tostões.
— Não te autorizo a pedir, Rosa, mas isso não é uma esmola, é um
presente, que te fazem, podes portanto arrecadar esse dinheiro. Ris-te. Já sei.
Esse dinheiro vem a propósito para aumentares o teu mealheiro, com o qual te
hei de comprar um rico jaqué para o São Miguel.
— Não, senhora — replicou Rosa com a alegria nos olhos — não é esse o
meu pensamento, e que me causa tanta alegria.
— Que é então?
— Rogo-vos que me não façais perguntas; depois o sabereis.
— Guarda o teu segredo, porque sei que não és desgovernada, e que o não
hás de gastar mal gasto.
Rosa abraçou ternamente D. Teresa, e foi entregar as suas encomendas de
flores e cestos.
CAPÍTULO 6
D. Júlia recolheu-se para casa muito tempo depois da hora, que tinha determinado.
A Viscondessa, impaciente e sobressaltada com a demora, saiu, no
caminho, ao encontro da sua filha.
— Estiveste incomodada, minha filha? — disse-lhe ela.
— Não, minha senhora. Este cestinho, que aqui trago, é que foi a causa
da minha demora.
E D. Júlia mostrava a sua mãe o cestinho, que Rosa tinha feito.
— Como é lindo — respondeu a Viscondessa — Não sabia Júlia, que tinhas a
prenda de fazer cestos de juncos entrançados.
— Não fui eu que fiz este cestinho, minha mãe.
— Então quem foi?
— Foi uma lavradeirinha, que encontrei no meu passeio.
— Uma lavradeira?!
— Sim, minha senhora. E acreditareis, minha mãe, que por todo este
trabalho me pediu a grande quantia de quatro vinténs?
— Não te pergunto quanto lhe deste, porque conheço a bondade do teu
coração, e tenho a firme convicção de que não abusaste da sua simplicidade.
— Dei-lhe só meia coroa, porque não tinha mais na minha bolsinha. Não
queria recebê-la, ajuizando que lha dava como uma esmola; mas tanto fiz que a
aceitou, e convencionei com Rosa, (pois a minha ramalheteira assim se chama)
para nos encontrarmos amanhã, no mesmo sítio, à mesma hora; e se ela, como
penso, for digna da simpatia, que me inspirou, e do interesse que já me causa,
consentir-me-eis, minha boa mãe, que a tome sob a minha proteção?
— Consinto em tudo, minha filha, que te dê prazer, e distração. Se a tua
protegida for digna dos nossos benefícios, unir-me-ei contigo, e acordaremos no
que devemos fazer para seu bem.
D. Júlia abraçou com ternura a Viscondessa, e agradeceu-lhe a sua
bondade.
Neste comenos, a Viscondessa e a sua filha, chegaram a casa.
D. Júlia colocou com muito cuidado sobre uma mesa da sala o cestinho, e
correu com presteza ao seu quarto a preparar um cavalete, pincéis e tintas para
dar princípio ao quadro projetado, e, tendo tudo disposto, desceu à sala a
buscá-lo.
D. Berta estava examinando o cestinho com atenção e minuciosidade.
— Não estão tão bem dispostas e combinadas essas flores, Berta? — disse
D. Júlia.
— Assim, assim. Não gosto destas violetas, que formam o centro do ramo.
Podias ter tido melhor gosto e fazer coisa melhor.
— Não concordo com a tua opinião. Estou convencida de que Rosa não podia
ter melhor gosto.
— Rosa?
— Sim, Rosa. Ah! é verdade; ainda te não contei o encontro, que tive
esta manhã. Ora ouve.
D. Júlia contou a sua irmã minuciosamente toda a conversa, que tivera
com Rosa.
Quando ela acabou, D. Berta fez um gesto de desdém.
— E, sem dúvida, Júlia, já te
afeiçoas-te a essa pequena; não é assim? — disse D. Berta.
— Rosa, — respondeu unicamente D. Júlia — tem merecimento bastante, que
a torna digna da proteção, que se lhe dispensar.
— O que mais me admira e me espanta, Júlia, é a rapidez com que
simpatizas com qualquer, e como instantaneamente conheces e decides, que essa
pessoa é digna da tua afeição e amizade... Não quero tomar-te o tempo; julgo
que vinhas buscar o teu lindo cestinho, não é assim?
— Vinha, sim, para o ir copiar num quadro, pintando-o.
— Pintá-lo?! — disse D. Berta, dando uma grande gargalhada. — Que
liguemos alguma atenção às flores dos nossos parques e jardins, concedo; mas
que empreguemos o tempo e o talento com as silvestres, que só tem os perfumes
para si, parece-me uma singularidade esquisita.
— A minha opinião, Berta, é exatamente o contrário. Mas isso não admira,
porque nós raras vezes estamos acordes sobre qualquer matéria. Ponhamos isso de
parte; queres tu vir amanhã, comigo e com a nossa boa mãe, ver Rosa?
— Não posso. Combinei com a Francisquinha e Ritinha Meireles virem
amanhã aqui passar o dia. Além disso, falar-te-ei francamente, não há nada para
mim mais antipático do que todas essas lavradeiras; e andar uma légua para me
ir achar face a face com um monstrozinho, parece-me um tanto aborrecível.
— Rosa é muito linda e interessante.
— Para ti, Júlia, todas as lavradeiras são lindas e interessantes. Para
mim todas são feias, e broncas. O calor começa a incomodar-me — disse D. Berta,
sentando-se indolentemente sobre um sofá. — Vai, Júlia, vai pintar o teu
lindo cestinho, que eu vou sonhar com o meu Porto, para onde espero ir muito
breve.
Estas últimas palavras já mal se perceberam, porque foram acompanhadas
com um bocejo, e D. Berta cerrou os olhos.
D. Júlia lançou sobre sua irmã um olhar de compaixão e saiu.
Alguns instantes depois deu princípio ao quadro.
CAPÍTULO 7
No dia seguinte Rosa saiu para a serra, muito cedo, para adiantar o seu
trabalho, e poder assim dedicar mais tempo à jovem senhora, que tão amável e
generosa tinha sido com ela.
Trabalhou com tal desembaraço, que, muito antes da hora marcada por D.
Júlia, tinha terminado o seu serviço.
Aproveitou portanto o tempo entregando-se à leitura de algumas páginas
de um livro, de que lhe tinham feito presente no dia anterior. Lia com atenção,
e, quando encontrava algum trecho rico e belo, parava, para exprimir a sua
alegria e entusiasmo.
Estava Rosa de tal sorte entregue à leitura, que não pressentiu a
chegada da Viscondessa e da sua filha D. Júlia.
— Que livro estás lendo, com tanta atenção, minha menina — disse-lhe a
Viscondessa.
Rosa saudou-a, apresentou-lhe o livro e respondeu:
— São as Meditações religiosas de
Rodrigues de Bastos.
— E encontras grande prazer na sua leitura?
— Se encontro, minha senhora. Quando estou sentada à borda de um regato,
ou debaixo de um carvalho anoso, lendo neste livro, parece que a minha alma se
despe de todos os seus invólucros terrenos e mundanos, e se põe em contato com
Deus, autor de todas estas maravilhas da natureza, que nos cercam, e a quem no
fundo do meu coração adoro e venero.
A Viscondessa e a sua filha, admiradas do que ouviam a uma pequena do
campo, trocaram entre si um olhar de inteligência.
— E que mais costumas ler? — perguntou D. Júlia.
— Não tenho muitos livros. Além deste possuo um catecismo, uma vida de
santos, de que leio uma página cada domingo, e mais uns livrinhos de histórias
bonitas. Esquecia-me dizer-vos, que também tenho um livro de geografia, que me
deu o mestre escola da minha freguesia, mas que não leio, porque tem muitas
palavras, que não entendo.
— Pelo que me dizes conheço que tens desejos de te instruíres. Se te
proporcionassem os meios do fazeres, serias feliz?
— Seria, sim, minha senhora; mas infelizmente isso é impossível, porque,
para ir todos os dias à mestra, é preciso ser muito rica.
— Mas se te mandassem à mestra? — insistiu D. Júlia.
— Seria muito feliz, mas nem quero pensar nisso.
— Pelo contrário; eu e a minha mãe, viemos procurar-te para que nos conduzisses
a casa da Sra. D. Teresa, e, se a tua protetora estiver satisfeita contigo,
pedir-lhe-emos para te deixar ir todos os dias à mestra. Então não respondes?
— Perdoai-me, senhora. Estou muito contente e alegre, e queria
agradecer-vos, mas não posso. Que fiz eu para merecer tantos benefícios?
— Mostraste-te reconhecida aos benefícios da Sra. D. Teresa, e isso
indica um bom coração; és trabalhadeira e tens desejos de te instruíres;
mereces portanto que nos interessemos por ti — disse-lhe a Viscondessa. —
Vamos, ensina-nos o caminho para a quinta da Sra. D. Teresa.
Rosa, comovida, dirigiu-se para a quinta com a Viscondessa e a sua
filha. Pelo caminho respondeu modestamente, e com graça, a todas as perguntas,
que lhe fizeram, e cada uma das respostas confirmou mais, as duas senhoras, no
bom conceito, que tinham formado de Rosa.
Quando chegaram à quinta, D. Teresa não estava em casa, mas não devia
tardar muito, por isso esperaram. Rosa apresentou às duas senhoras cadeiras
para se sentarem e ofereceu-lhes um copinho de leite fresco e morno.
D. Júlia, a quem o caminho tinha fatigado, aceitou o oferecimento.
Rosa trouxe então uma toalha de linho, alvo como neve, que estendeu
sobre uma mesa, na qual colocou o melhor pão, que havia em casa, manteiga e um
copo de leite.
D. Júlia, com uma alegria infantil, aceitou este lunch frugal, e, reanimadas com ele as suas
forças, pediu para visitar a quinta.
A avó de Rosa estava sentada no jardim, debaixo de um caramanchel de
clematites, fiando, e cantando com voz trêmula o estribilho de um romance
antigo. Nesta boa velha, bem vestida e de boa presença, ninguém seria capaz de
reconhecer a pobre cega, que dezoito meses antes, quase morrendo de fome e
frio, e podendo apenas suster-se em pé, encontramos seguindo o caminho da serra
de Valongo para São Cosme.
A Viscondessa do Candal e a sua filha saudaram a pobre cega, e esta,
prevenida pela netinha, correspondeu-lhe respeitosamente.
— Não vos incomodeis, boa mulher — disse-lhe a Viscondessa — permiti-nos
somente que conversemos por um instante convosco.
— É muita honra para mim, minha querida senhora; — respondeu a cega —
estou portanto às vossas ordens.
— Visto isso não vos recusareis a dizer-me se estais satisfeita com a
vossa neta?
— Se estou contente com a minha Rosinha?! — exclamou a cega — com ela,
que é a minha bênção sobre a terra. Quando o meu genro morreu, por causa de uma
ferida, que fez num a perna com o seu machado, porque ele era rachador de lenha
na serra, e a quem minha filha, mãe de Rosa, seguiu passado pouco tempo, quase
que enlouqueci, porque não sabia o que havia de fazer. Rosa, disse-me com a sua
voz meiga e humilde: avozinha, eu conheço uma senhora muito caritativa; vamos a
sua casa, que estou certa nos há de recolher. E foi verdade.
A Sra. D. Teresa, essa boa e caritativa senhora, para quem peço a Deus
todos os benefícios e bênçãos, teve a caridade de recolher na sua casa uma
velha enferma e inútil como eu. Mas isto devo-o a Rosinha, porque ela sabe
dizer as coisas de tal maneira, que, penetrando até o coração, comovem e
decidem à compaixão. Vai em dezoito meses que aqui nos achamos. Fio um pouco
para não estar em descanso; mas Rosinha, senhora, Rosinha, cantando sempre,
trabalha desde pela manhã até à noite. Em quanto que dura o verão, ocupa-se a colher
flores na serra e no campo, e a fazer cestinhos com elas; mas isto não obsta a
que, quando se recolhe, lave a roupa, limpe os móveis, e ajude a cozinhar, e se
quisesse dizer-vos tudo o que ela faz, ou sabe fazer, levar-me-ia muito tempo.
Assim, amo muito a minha querida Rosinha. Mas onde estás tu, que te não
chegas a mim para te dar um abraço?
Rosa, com o pretexto de ir colher um ramo para D. Júlia, tinha-se
retirado, quando a avó começara a elogiá-la.
A Viscondessa e a sua filha ouviram com prazer o panegírico de Rosa,
feito pela avó, e iam fazer novas perguntas, quando D. Teresa chegou.
Depois de terminados os comprimentos preliminares, a Viscondessa expôs a
D. Teresa como sua filha simpatizara com Rosa, e estava resolvida a tomá-la sob
a sua proteção, se D. Teresa a isso se não opusesse.
— Primeiro que tudo — respondeu D. Teresa — desejo a felicidade e
venturas de Rosinha, ainda que me há de custar muito a separar-me dela: porém,
se for sua vontade, não me oponho, porque julgo lhe procurais a sua felicidade;
mas ponho por condição, que lhe não proibireis vir algumas vezes visitar-me.
— Isso, senhora, é um dever sagrado, que Rosa tem a cumprir. Vamos porém
interrogá-la, porque ela nada sabe do que acabamos de falar.
D. Teresa chamou a pequena, que veio correndo, e disse-lhe:
— Rosinha, queres ir viver com esta senhora e a sua filha?
— Pois vós, senhora — respondeu Rosa tremula e tímida — quereis
mandar-me embora?
— Não. Pergunto somente se me queres deixar, para te tornares uma menina
da cidade, instruída e de maneiras polidas?
— Não, minha senhora. Nunca — disse Rosa chorando, lançando-se nos
braços da sua benfeitora — nunca vos deixarei. Tenho muitos e muitos desejos de
me instruir e de aprender, mas, se para isso é necessário o deixar-vos, antes
quero ficar ignorante toda a minha vida. Recolheste-nos, senhora, quando eu e a
minha querida avozinha, estávamos quase a morrer de fome, e havia de ser tão
ingrata, que, quando princípio a servir de alguma utilidade, vos abandonasse?
Não, senhora, nunca, nunca vos deixarei.
— Ouviste-la, minhas senhoras — disse D. Teresa enxugando os olhos,
rasos de lágrimas.
— Pelo que vejo, Rosa, estás bem decidida a não vir conosco? — disse-lhe
a Viscondessa.
— Seria feliz e muito feliz, minha senhora, se pudesse ir viver na sua
companhia, e da sua estimável filha; mas antes de vós, está a Sra. D. Teresa,
que salvou a minha pobre avozinha de estender a mão à caridade pública e que sempre tão minha amiga tem sido. Perdoai-me, senhora, se assim
falo...
— Dá-me um abraço, minha menina — disse-lhe a Viscondessa
interrompendo-a — dá-me um abraço, porque te mostraste tal, como eu desejava,
boa, humilde e reconhecida aos benefícios, que te fazem.
Não tenhas receio, que te separemos da Sra. D. Teresa. Pediremos somente
à tua benfeitora, que nos deixe entrar com metade nos benefícios, que te
prodigaliza.
— E eu, Rosa — acrescentou D. Júlia — quero ser a tua preceptora. Quando
o tempo estiver bom, dar-te-ei as lições na serra, à sombra de um sobreiro, ou
de um pinheiro, ou à borda de um regato; e quando estiver mau, dar-tas-ei na
minha casa, porque ouso esperar, que a Sra. D. Teresa me não negará este favor,
e prazer.
— Oh não, minha senhora, esteja certa disso. Logo que termine o seu
serviço dos cestinhos fica livre para vos ir procurar.
— É objeto convencionado — disse a Viscondessa — por isso a Sra. D.
Teresa há de me permitir licença de oferecer a Rosa, para si e a sua avó, o que
contém esta pequena bolsa. É para comprar no nosso nome um vestido novo.
E como D. Teresa, Rosa e a avó lhe fizessem muitos agradecimentos, a
Viscondessa impôs-lhes com brandura silêncio, e retirou-se, prometendo voltar
muito breve à quinta.
D. Júlia abraçou a sua pequena discípula, e retirou-se dizendo-lhe “até
amanhã”.
Nas proximidades de casa a Viscondessa e a sua filha encontraram D.
Berta, que estava esperando pelas meninas Meireles.
— Meu Deus, como estou aborrecida — lhes disse ela.
— Pois eu, minha irmã — respondeu D. Júlia — venho muito alegre; o
espetáculo, que acabo de gozar, dar-me-á felicidade não só para hoje, mas
também para muito tempo, porque será contado no número das minhas mais gratas e
queridas recordações.
CAPÍTULO 8
D. Júlia, na forma convencionada, começou no seguinte dia o curso, que
queria fazer seguir a Rosa. Tomou com ardor a obrigação, que se tinha imposto
desempenhar, mas o seu zelo não excedia, o que mostrava a sua aluna.
Inteligente, e ansiosa por aprender, Rosa era incansável, e muitas vezes foi
preciso que D. Júlia moderasse a sua aplicação; as lições tinham lugar umas
vezes na serra, outras vezes em casa da Viscondessa.
Decorreram assim três meses. No fim deste tempo, os progressos, que Rosa
tinha feito, eram espantosos, e como tanto a professora, como a discípula não
afrouxavam no seu zelo, era de esperar que, no fim dos dois meses que D. Júlia
ainda tinha a passar no campo, Rosa estivesse bastante desenvolvida para
continuar, sem nada esquecer, a estudar sozinha, durante o inverno.
Mas, quando menos se esperava, a terrível moléstia, que parecia ter
deixado D. Júlia, reapareceu com uma intensidade violenta.
A pobre menina não teve forças para resistir a este ataque, e não podia
sair do quarto.
Rosa, que no auge da sua desesperação, com risco da própria vida,
quereria dar algumas forças à amiga do seu coração, podia a custo conter as
lágrimas, contemplando-a, pálida e cadavérica, recostada numa cadeira de
braços, forcejando por se levantar sem auxílio, para não aterrar a sua querida mãe e a sua discípula predileta.
Neste momento Rosa tinha um único pensamento; o de sacrificar-se por
aquela, que tanto a amava e lhe queria. Os mais pequenos desejos, e os mais
vagos caprichos eram adivinhados de Rosa, e executados antes mesmo que D. Júlia
os tivesse enunciado. Se queria descer ao jardim, o braço de Rosa é que a amparava;
se queria ouvir alguma passagem dos seus livros favoritos, Rosa lia-lha
imediatamente.
D. Júlia, muito sensibilizada por tanta dedicação, afligia-se com a
lembrança, de que o progresso da sua discípula estava parado. D. Berta podia
substituí-la, mas essa nunca consentiria em ser a preceptora de uma lavradeira.
A Viscondessa resolveu-se a dar as lições a Rosa, para sossegar a inquietação
de D. Júlia.
Havia já três semanas que D. Júlia estava doente, e cada dia ia a pior;
a sua mãe já não tinha esperanças algumas. Três médicos, que do Porto tinham
sido chamados, não deram esperanças da doente melhorar.
A Viscondessa, porém, não podendo convencer-se de que a sua filha estava
irremediavelmente perdida, cria que os médicos se tinham enganado, e resolveu
recolher ao Porto, para lhe fazer uma nova junta.
D. Berta, contristada ao princípio com a moléstia da sua irmã,
consolava-se com a ideia de voltar ao seio da sociedade, que ela tanto amava.
Só à força de muitas instâncias e esforços é que D. Júlia consentiu em
deixar o campo; mas, ainda assim, com a expressa condição de para lá voltar se
piorasse.
Quando Rosa soube que a Viscondessa se ia retirar do campo, não pôde
conter a sua desesperação. Queria acompanhar D. Júlia, e não a desamparar um só
instante. D. Júlia procurava sossegá-la, mas tudo era baldado, porque Rosa
estava inconsolável.
Na véspera da partida Rosa veio despedir-se de D. Júlia; lançou-se-lhe
aos pés, chorando, e pediu-lhe que lhe escrevesse muitas e muitas vezes. A
doente assim lho prometeu, e, tirando debaixo do travesseiro uma bolsinha de
seda, apresentou-a a Rosa.
— Aceita, minha menina — disse-lhe ela — esta bolsa; contém cem mil
reis, que são as minhas economias do verão; põe a juros este dinheiro, para que
se aumente este capitalzinho.
É um presente muito pequeno; mas se nos não tornarmos a ver, minha boa
mãe, dar-te-á, no meu nome, mais alguma coisa.
Rosa beijou as mãos de D. Júlia, e queria recusar a bolsa.
— Não recuses, Rosa — disse D. Júlia — senão for para ti, é para a tua
avó. Sabes lá o que tem para vos acontecer, e se esta pequena soma ainda vos
será útil? Adeus, Rosinha; ama-me sempre muito, e reza muito ao Senhor, para
que me dê saúde.
Rosa quis responder, mas as lágrimas e soluços embargaram-lhe a voz. A
Viscondessa, testemunha desta cena tão tocante, temendo as funestas
consequências, que a sua filha sofreria com tão grande comoção, levantou Rosa,
e pediu-lhe com instância e por favor que se retirasse. A pobre menina cedeu a
custo, mas antes de se retirar ainda pôde ver D. Júlia, que, com um olhar
maternal, a abençoava.
CAPÍTULO 9
Já tinha decorrido mais de um mês, desde que D. Júlia recolhera ao
Porto, e Rosa ainda não tinha recebido carta da sua amiga. A pobre criança
afligia-se, julgando, que este silêncio, para com ela, não tinha outra causa,
senão o estado cada vez mais perigoso de D. Júlia. D. Teresa, que partilhava do
pesar da sua filha adotiva, procurava por todos os meios consolá-la, e
fazer-lhe conceber esperanças. Uma carta de D. Júlia veio confirmar as prevenções
de D. Teresa.
D. Júlia, com mão trêmula, escreveu à sua querida discípula.
Participava-lhe que a sua doença parecia estar um pouco mais debelada, e que os
médicos davam algumas esperanças da poder subjugar, e embargar-lhe o seu
progresso.
Terminava a carta aconselhando Rosa a que não descurasse os seus
estudos, e pedindo-lhe que lhe escrevesse.
Rosa cobriu de mil beijos esta carta, e no mesmo dia respondeu a D.
Júlia, assegurando-lhe que não desprezaria os seus conselhos, e que tinha
esperanças, de, para a primavera, renovar as suas lições sob as árvores da
serra; que nas suas orações rogava todos os dias a Deus, com fervor, que lhe
restituísse a saúde, e que esperava as suas súplicas fossem atendidas.
Rosa, cumprido este dever sagrado, lançou mão do seu trabalho com mais
vigor.
Estava próximo o dia natalício de D. Teresa. Rosa preparava em segredo
um lindo presente para oferecer naquele dia à sua benfeitora, e para isso tinha
reunido todo o dinheiro, que lhe tinham dado de mimo, e julgava-se bastante
rica para poder apresentar a D. Teresa um brinde, de que ela admirasse o valor
e o gosto.
Faltavam só quatro dias para que, esse dia tão ansiosamente esperado,
chegasse, e Rosa ainda queria poder suprimir o tempo, tão longo lhe parecia.
Na véspera de manhã D. Teresa queixou-se de uma dor de cabeça, mas
julgou que um passeio lha dissiparia. Saiu pois; mas passado uma hora voltou
ainda mais indisposta, do que tinha saído.
Desprezando o seu estado, ainda presidiu, na forma costumada, ao jantar
dos criados da quinta; mas, no meio dele, caiu sem sentidos.
Os criados, assustados, cercaram D. Teresa. Recolheram-na à cama, e
partiu imediatamente um criado a chamar, a toda a pressa, um cirurgião.
Chegou este, e, mal viu a doente, não deu esperanças da salvar.
— Foi uma apoplexia fulminante — disse ele — é já tarde para se lhe dar
remédio.
O desespero e a consternação espalharam-se na quinta.
Os criados em geral estimavam muito D. Teresa, porque, apesar de ser
muito vigilante, era boa e justa.
Os menores movimentos do cirurgião eram seguidos com ansiedade por todos
os criados, mas entre eles tornava-se saliente Rosa pelo zelo e atividade, que
desenvolvia em executar as prescrições do cirurgião, ainda bem não estavam
dadas.
Rosa não podia crer que Deus lhe quisesse roubar a sua benfeitora, e
esperava ainda que uma crise feliz a restituiria à vida.
A avó de Rosa estava consternadíssima, e o seu maior pesar consistia em
não poder fazer coisa alguma.
De joelhos; junto do leito de D. Teresa, rezava com fervor e devoção.
Entre as alternativas da esperança e desconforto se passou o dia. À
noite o cirurgião declarou que já lhe não restava esperança alguma; que D.
Teresa ainda podia viver mais um dia ou dois, mas que não proferiria mais uma
palavra, nem faria um único movimento.
Descrever a aflição de Rosa e de a sua avó é-me impossível; bastará
dizer que a dor as tinha quase enlouquecido.
D. Teresa não tinha filhos, por isso foram avisar do sucedido a D. Eusébia,
sua irmã, rica proprietária em Rio Tinto.
D. Eusébia, por causa do seu gênio forte, e caráter duro, não estava em
intimas relações com D. Teresa. Assim que teve notícia da doença da sua irmã pôs-se logo a caminho, não por amizade que
tivesse à moribunda, mas sim para vigiar que lhe não roubassem a mais pequena
parte da sua herança.
Logo que D. Eusébia chegou a São Cosme, tomou o governo da casa, e deu
ordens como se já estivesse senhora da herança. Rosa e a sua avó inspiraram-lhe
antipatia, e não podia compreender como sua irmã voluntariamente tinha tomado
ao seu cuidado aquelas duas pessoas.
D. Teresa ainda viveu dois dias, conforme o cirurgião dissera, mas sem
fala, e sem movimento, porque a apoplexia tinha-lhe paralisado todas as
faculdades. Só os olhos é que conservavam ainda alguns sinais de vida e inteligência,
os quais fixava sobre Rosa, fazendo esforços para falar, naturalmente para
fazer o seu testamento; mas este último consolo dos moribundos não lhe foi
permitido.
O Abade da freguesia, que veio administrar os últimos sacramentos à
moribunda, tentou mitigar a dor de Rosa, mas a jovem menina estava muito
consternada para poder ser consolada. Recusou obstinadamente retirar-se de
junto do leito, em que jazia D. Teresa, conservando-lhe a mão gelada apertada
nas suas.
— O meu lugar é este, — dizia ela entre soluços, — só deixarei a minha
segunda mãe no túmulo.
Finalmente chegou o terrível momento da morte. Uma convulsão, alguns
murmúrios sufocados... e D. Teresa tinha deixado de existir entre os vivos, e a
sua alma, desprendendo-se das ligações terrenas, voara ao céu a receber da mão
de Deus o prêmio das suas virtudes.
Ao princípio não se ouviam mais que os choros de todos os criados da
quinta, mas em seguida uma voz forte e imperiosa se fez escutar. Era a de D. Eusébia.
Colocou uma pessoa junto do cadáver da sua irmã, deu as ordens para os
funerais, e passou a inspecionar as caixas e cômodas, que fechava com cuidado,
guardando as chaves.
CAPÍTULO 10
Apenas D. Eusébia fechou as cômodas e caixas, compareceu o juiz eleito
da freguesia para selar e tomar conta de tudo o que pertencia a D. Teresa.
— Aqui estão as chaves, senhor juiz eleito — disse D. Eusébia, — mas é
inútil esse trabalho, porque eu sou a única herdeira da minha irmã, e ela não
podia deserdar-me.
— É verdade, minha senhora, — respondeu o juiz — mas cumpro o meu dever,
porque a lei protege os direitos de todos.
— Só eu é que tenho direito à fortuna da minha irmã, pois ela não tem
filhos.
— Sim, minha senhora, mas esta orfãzinha, a quem ela deu asilo?
— Minha irmã — replicou com cólera D. Eusébia — seria porventura capaz
de me deserdar, testando os seus bens a favor destas duas mendigas, que ela
teve a fantasia de recolher na sua casa?
— Não o afirmo, minha senhora — respondeu com brandura o juiz; — mas sua
irmã pode ter feito testamento, no qual deixe a Rosa alguma prova da sua estima
e amizade.
— Não julgaria suficiente o sustentá-la e mais à avó, — disse D. Eusébia
com voz forte — ainda lhe havia de deixar algum legado? Ah! minhas velhacas,
viríeis vós roubar o que de direito me pertence? Sr. juiz eleito, queira também
selar a porta do quarto dela, pois quem sabe lá, o que ela tem roubado. A minha
irmã era tão pouco cautelosa...
— Oh! senhora — respondeu Rosa com muita tristeza a esta suposição
ofensiva — acreditais que pagasse com o roubo os benefícios, que eu e a minha
avó recebemos da Sra. D. Teresa?
O juiz eleito ordenou com brandura a Rosa que se calasse, para que D. Eusébia
não continuasse, diante de um leito de morte, com uma discussão tão vergonhosa,
e feia.
Logo que o juiz se retirou, Rosa viu-se de novo a braços com as
suspeitas da ambiciosa herdeira. Chegaram a tal ponto as coisas, que Rosa não
pôde refrear a sua indignação.
— Não me injurieis, senhora, — disse Rosa com energia e dignidade — não
me injurieis diante do corpo da vossa irmã, de quem só a vista bastaria para me
proteger. Dizei-me, senhora, sai eu porventura um só instante de junto da cama
da minha benfeitora, desde que ela foi atacada pela apoplexia?
Não, senhora. Então como podia eu subtrair coisa alguma? Examinai, e
examinai bem, senhora, que achareis tudo intato, porque eu e a minha avó
preferíamos antes morrer de fome, do que tocar na coisa mais insignificante,
que nos não pertencesse. Louvado seja o Senhor, sou forte; posso e quero
trabalhar, por isso não serei pesada a ninguém. Deixai-nos, senhora, chorar em
paz a perda da nossa benfeitora, que, logo que o seu corpo saia desta casa, não
vos pediremos asilo.
Esta linguagem, firme e digna, impôs silêncio a D. Eusébia, que ficou
corrida de vergonha.
Rosa esperou com sossego o dia seguinte, em que se devia fazer o enterro
a D. Teresa.
A pobre criança, com a avó pelo braço, seguiu chorando o préstito.
Depois de terminado o ofício, Rosa e a sua avó, ajoelharam-se junto da campa, em que D. Teresa foi
sepultada: era já noite cerrada, e ainda as duas desgraçadas não pensavam em se
retirar.
O frio, que fez dar um gemido à avó, advertiu Rosa de que se devia
recolher; só então é que pensou para onde havia de ir.
— Vamos, minha avozinha — disse Rosa — a casa da Sra. Maria da Gandra,
que estou certa, sendo tão nossa amiga, nos não há de deixar na estrada.
A Sra. Maria da Gandra era uma boa e caridosa mulher, que, como todos os
moradores de São Cosme, e os seus arredores, estimava muito a protegida de D.
Teresa, e censurara o procedimento de D. Eusébia.
— Oh! Rosinha, foi Deus que te dirigiu para minha casa — disse-lhe ela
logo que a avistou. — Que prazer me não causa teres procurado a minha casa para
te recolheres. Tinham-me dito, que ias para casa da Joana da Quintela, por isso
é que te não ofereci para vires para aqui com a tua avó.
— Agradeço-vos, senhora — disse Rosa — a vossa bondade, e a caridade com
que vos ofereceis para nos recolherdes; mas não venho pedir-vos casa e sustento
de graça, porque tenho duas inscrições de cem mil reis cada uma; o que vos rogo
é que me aboneis tudo o que eu precisar e a minha avó, que vos satisfarei logo
que termine a liquidação da herança da Sra. D. Teresa, e receba as minhas
inscrições.
— Sim, sim, minha menina, — lhe respondeu a Sra. Maria da Gandra — Não
preciso do teu dinheiro para te sustentar e a tua avó. Mas diz-me, como
obtiveste essas inscrições?
— A Sra. D. Júlia, antes de partir para o Porto, deu-me cem mil reis,
com os quais a Sra. D. Teresa, em cumprimento do seu desejo, comprou duas
inscrições no meu nome.
— Foste feliz, Rosinha, em que fossem compradas no teu nome, porque de
outra maneira D. Eusébia tomaria posse delas. Tem resignação, assim como vós,
minha boa velhinha; vinde cear, que eu depois vou-vos conduzir ao vosso quarto.
Rosa e a sua avó ficaram portanto habitando na Gandra.
A pequena não estava ociosa, antes pelo contrário era tão zelosa e
trabalhadeira, que a Sra. Maria, muito satisfeita, propôs-lhe que ela e a avó,
ficassem para sempre na sua casa. Rosa aceitou prontamente, e com
reconhecimento, pois naquela ocasião era a maior felicidade, que lhe podia
aparecer.
No dia em que se deviam tirar os selos em casa da defunta D. Teresa,
Rosa ali compareceu por convite do juiz eleito.
Quando Rosa atravessou, como estranha, a soleira da porta da casa, que
tinha sido para ela tão hospitaleira, o coração comprimiu-se-lhe e não pôde
reter as lágrimas.
Tudo se passou sem novidade; só de vez em quando D. Eusébia mostrava por
gestos e exclamações o seu desapontamento por encontrar menos dinheiro, do que
imaginava.
Quando se abriu a caixa, que pertencia a Rosa, não foi uma exclamação de
surpresa, que D. Eusébia soltou, mas sim de raiva, na qual se divisava um
acento de triunfo.
— Bem certa estava eu, — disse ela — que esta velhaca havia de ter empalmado alguma coisa. Ah! se eu não
viesse logo... o que teria acontecido. Examinai, senhor escrivão, o que é que
aí existe.
O escrivão tirou da caixa um magnífico vestido, que, a julgar pelo
tamanho, não pertencia decerto a Rosa.
— Dize velhaca, — disse D. Eusébia — como é que este vestido veio aqui
parar? — Não preciso perguntá-lo, porque a culpada está-se denunciando pelo
rubor, que lhe cobre as faces.
— Senhora D. Eusébia — disse o juiz — o seu proceder para com esta
criança é digno de censura. Ainda, até agora, não encontramos coisa alguma, que
fizesse, nem ao menos, suspeitar da sua probidade. Deixai-a portanto dar-me as
explicações, que tiver a fazer.
Responde Rosinha, — disse o juiz com modo afável — como é que este
vestido se acha na tua caixa?
Rosa fez-se muito corada e respondeu:
— Este vestido, senhor, foi comprado com as minhas economias.
— Que é; que é? — interrompeu D. Eusébia.
— Senhora — disse severamente o juiz — ordeno que vos caleis.
— É bem público e sabido, que
eu, durante o verão, fazia cestinhos de flores, que ia vender às casas
abastadas dos arredores.
Quase sempre me davam, como presente, mais do que o custo dos cestos:
entregava-me a Sra. D. Teresa, para guardar no meu mealheiro, estas pequenas
quantias, que reservei com muito cuidado para poder brindar a Sra. D. Teresa no
seu dia natalício.
Estava muito indecisa, por não saber o que lhe devia oferecer, e foi a
minha avó, que me sugeriu a ideia de lhe comprar um vestido. Para levar a
efeito este meu desejo combinei em segredo, com a costureira da Sra. D. Teresa,
para o fazer, e estou muito certa de que a minha benfeitora não desprezaria a
minha oferta, se tivesse a felicidade de lha apresentar.
Esta explicação, simples e clara, que demonstrava um coração sincero e
grato, fez borbulhar as lágrimas nos olhos de todos os circunstantes. Devemos
contudo excluir deste número D. Eusébia, que persistia em negar a verdade.
Quando se encontraram as duas inscrições, D. Eusébia chegou ao auge do
desespero e da cólera, e de boa vontade as inutilizaria, se lhe fosse possível
obtê-las à mão; mas, felizmente para Rosinha, não pôde consegui-lo.
Finalmente, pelos cuidados e proteção do juiz eleito, Rosa e a sua avó,
apesar de todos os obstáculos e vontade de D. Eusébia, receberam tudo o que
lhes pertencia, e deixaram sem maior desgosto a casa, de que a mais cruel e
mais requintada avareza as expulsava.
CAPÍTULO 11
Estamos no ano seguinte.
Rosa escreveu à Viscondessa do Candal e a sua filha uma carta tão
afetuosa e consoladora, que fez despertar em D. Júlia um veemente desejo de
tornar a ver a sua querida discípula e protegida.
Os dias, que faltavam para Rosa poder abraçar a sua amiga, pareciam-lhe
séculos. Esperava com uma impaciência impossível de descrever, a chegada da primavera,
porque então é que devia, e podia estreitar ao coração a sua querida amiga e
preceptora.
Raiou finalmente o dia tão ansiosamente almejado. A primeira pessoa que
D. Júlia avistou foi Rosa, que, louca de alegria, viera esperar a sua amiga
querida, para lhe apresentar um cestinho, igual ao que tinha estabelecido e
sido causa das relações e íntima
união, que existia entre elas.
D. Júlia ao vê-la deu um grito, e quis imediatamente descer do coupé; mas não pôde fazê-lo, porque
estava tão magra, fraca e desfigurada que, quem a via, só a um milagre podia
atribuir a sua existência. Era na verdade um milagre, devido ao amor maternal,
e contínuos cuidados e desvelos, de que a cercava a Viscondessa.
Rosa passou todo o dia na companhia da sua querida amiga e protetora. D.
Júlia tinha muito que lhe perguntar, porque queria saber minuciosamente tudo o
que tinha acontecido, desde que ela se tinha retirado para o Porto.
Apenas teve conhecimento da morte de D. Teresa, D. Júlia pediu
imediatamente a sua mãe, que recebesse na sua casa Rosa e a sua avó.
A Viscondessa, que desejava e queria satisfazer o mais pequeno desejo,
ou pedido da sua filha predileta, acedeu sem demora.
Rosa e a sua avó vieram portanto morar para casa da Viscondessa do
Candal, que foi pessoalmente dar parte desta sua resolução à Sra. Maria da
Gandra.
— Estou satisfeitíssima, minha senhora — disse a Sra. Maria da Gandra —
pela felicidade de Rosa; mas ao mesmo tempo sinto um grande pesar, e é com
dificuldade que me separo dela. Nunca mais encontrarei uma pequena, que seja
tão humilde e trabalhadeira.
A Viscondessa em seguida quis satisfazer à Sra. Maria da Gandra toda a
despesa, que Rosa e a sua avó tinham feito na sua casa; mas a honrada e digna
aldeã não quis aceitar a mais pequena e insignificante recompensa, e respondeu
— Que Rosa havia ganho o que ela e a sua avó tinham despendido.
A despedida de Rosa e da Sra. Maria da Gandra foi patética, e só a muito
custo se desprenderam, chorando, dos braços uma da outra, prometendo Rosa vir
visitá-la a miúdo, porque o carinho, com que a Sra. Maria a tinha tratado havia
sido tal, que seria uma ingrata se lhe não tributasse um profundo
reconhecimento.
A alegria, que se apoderou da pobre cega, quando disse-lhe que ia viver
em casa da Viscondessa do Candal, foi tal, que só acreditou depois de muito lho
asseverarem, porque lhe parecia impossível que semelhante ventura lhe
sucedesse.
— Que a minha Rosinha — disse ela — algum dia se havia de tornar senhora
da cidade, sempre eu o julguei, porque era muito gentil e linda para ser
camponesa; mas que eu partilhasse tal ventura, nunca o imaginei.
Rosa e a sua avó foram alojadas, em casa da Viscondessa, em dois
quartos, muito perto daquele em que habitava D. Júlia; que assim o tinha
exigido para ter a sua protegida junto dela, o que se executou com muita
censura e reparo de D. Berta.
— Era só o que faltava — dizia um dia, a orgulhosa D. Berta, a D.
Francisca de Meireles, sua amiga — trazer para nossa casa estas duas mendigas.
Podes tu, minha querida, explicar-me como é que Júlia pôde afeiçoar-se tanto a
estas duas criaturas?
— Tua irmã, Berta, tem o coração muito sensível; basta que lhe façam uma
choradeira, ou que lhe contem uma história triste para acreditar em tudo, e
logo se afeiçoar a qualquer, e lhe dedicar carinho é proteção.
— Mas na verdade, esta sociedade não é tão agradável e atraente? — disse
D. Berta com um sorriso irônico. — Se a cega e a neta contam comigo para lhes
fazer companhia, afirmo-te que lhes hei de deixar muito tempo para se
aborrecerem.
Conforme com estas belas resoluções D. Berta evitava o mais possível
dirigir a palavra a Rosa e a sua avó, e, quando por necessidade o fazia, era
com um modo tão sobranceiro, imperial e chocarreiro, que as duas infelizes
ficavam confusas e envergonhadas.
D. Júlia tentou por diversas vezes fazer nascer no coração de D. Berta
sentimentos mais nobres e mais cristãos, mas infrutuosamente, porque, procurar
comover e sensibilizar o coração empedernido e orgulhoso de D. Berta, era um
trabalho ímprobo e estéril.
D. Júlia, feliz por ter na sua companhia a querida do seu coração, a sua
discípula, recuperou algum vigor, e ainda pôde recomeçar as lições. A fadiga,
que deste trabalho lhe podia provir, era atenuada pela atenção e estudo, que
Rosa prestava às preleções.
D. Júlia ainda quis ensinar desenho a Rosa.
— Queres dar a Rosa — disse uma ocasião a Viscondessa a sua filha — uma
educação e instrução superiores à sua posição na sociedade, e não receias que
isso para o futuro lhe cause embaraços e dissabores?
— Como resposta a essa pergunta tenha, minha querida mãe, a bondade de
ouvir o que a minha protegida me dizia outro dia:
“O meu maior desejo, minha boa amiga e mestra, é alcançar bastante
instrução e saber, para um dia ser professora. Como me julgaria feliz podendo
dizer às minhas discípulas: era uma aldeã muito ignorante e rústica; uma boa
menina, a Sra. D. Júlia, filha da Sra. Viscondessa do Candal, teve a bondade de
me tomar sob a sua proteção e de me ensinar. É a ela, meninas, a quem devo o
que sei e o que vos ensino. Se me amais, deveis igualmente amar a Sra. D.
Júlia, minha benfeitora; e então elas vos renderão graças, assim como eu vo-las
rendo agora.”
— Não te torno a dizer mais nada — disse a Viscondessa — Continua, minha
filha, pois Rosa é digna dos teus cuidados e desvelos, e para que eles se
tornem mais profícuos ajudar-te-ei a lecioná-la.
A Viscondessa cumpriu a sua promessa e, alternadamente com D. Júlia,
dava as lições a Rosa.
Estes estudos não fizeram pôr de parte a preparação de Rosa para receber
dignamente a primeira comunhão. Foi com uma piedade exemplar que ela cumpriu
este solene ato, e o futuro provou não ter sido estéril para o seu coração.
D. Júlia passou o verão entre as alternativas de melhoras e recaídas nos
seus padecimentos, que tinham uma sucessão quase regular e periódica. Umas
vezes nem levantar-se da cama, ou de uma cadeira de braços, para onde a
levavam, lhe era possível; outras vezes chegava a poder dar uns pequenos
passeios pelos campos das vizinhanças. Aos próprios médicos custava a
compreender como ela vivia.
D. Júlia, porém, não se iludia sobre o seu estado de saúde. Quando a sua
mãe a entretinha fazendo projetos, ou, como ordinariamente se diz, castelos no ar, para o futuro, ela
sorria-se e respondia: que ainda faltava muito tempo para a sua realização, e
que não chegava a vê-los confirmar.
A sós com Rosa D. Júlia falava livremente sobre a próxima terminação da
sua existência, e então ela suplicava-lhe com instância, que repelisse da sua
imaginação tão sinistras ideias.
— Não posso crer, — dizia ela — que Deus nosso Senhor me queira tirar
deste mundo todos os meus protetores: não sei que crime tenha cometido, que
mereça semelhante castigo.
— Resta-te ainda a minha mãe, minha Rosinha — respondia D. Júlia — que
estou certa nunca te há de desamparar.
Rosa terminava esta penosa conversação abraçando D. Júlia e procurando
distraí-la por todos os meios possíveis.
O que a dedicação mais sincera e real pode sugerir de mais belo, tudo
Rosa executava, recebendo, por galardão, ou recompensa a mais grata, um terno
sorriso de D. Júlia, ou um agradecimento da Viscondessa, e para os merecer
faria o impossível se necessário fosse.
CAPÍTULO 12
D. Júlia aparentava exteriormente um sossego de espírito, que
interiormente não sentia, porque receava muito a chegada do outono, época, que
os médicos tinham marcado, a mais longa a que poderia chegar. A ansiedade,
pois, que todos sofriam pela aproximação desse termo fatal, era geral.
Chegou o outono. Por um destes fenômenos, que a tísica muitas vezes apresenta,
a moléstia não ofereceu nesta estação alteração alguma.
A esperança, de que D. Júlia ainda poderia vencer a fatal doença,
começou a penetrar em todos os corações, e até no da própria enferma. Rosa
chegou a dizer à Viscondessa, que tinha uma convicção firme de que D. Júlia não
morreria, porque Deus Nosso Senhor era bom e não a havia de privar da sua
protetora.
A Viscondessa, que até aí estava convencidíssima, de que a sua filha não
passaria além do termo marcado pelos médicos, vendo-o passar sem que a sua
fatal predição se realizasse, começou a crer que se tinham enganado, e que D.
Júlia ainda lograria saúde.
Houve portanto grande alegria em casa da Viscondessa. Todos os criados,
que não amavam só, mas que veneravam D. Júlia, porque era sempre boa e afetuosa
para eles, crendo que a sua jovem ama, não tendo morrido na época marcada,
estava salva, pediram unanimemente para a felicitarem; tal foi a alegria e
contentamento, de que se apoderaram com esta esperança e crença.
Estas demonstrações respeitosas de simpatia e amizade, que os criados
lhe deram, penhoraram e comoveram muito D. Júlia. A todos agradeceu com
reconhecimento esta nova prova de afeto.
Porém, de todas as felicitações, a da sua discípula e da sua avó, foi a
que mais a impressionou.
Quando Rosa, conduzindo a sua cega avó, se ajoelhou com ela junto da
cama de D. Júlia, e lhe exprimiu, com candura e ingenuidade, a alegria e
prazer, que sentiam pelas suas melhoras, e os votos, que faziam a Deus, para
que o seu restabelecimento fosse real e breve, não pôde sofrear a sua comoção,
e as lágrimas correram-lhe em fio pelas faces, agradecendo a Deus o prazer que
tinha gozado com a felicitação que acabava de lhe ser dirigida.
Passou-se o inverno, sem que o estado de saúde de D. Júlia sofresse
alteração sensível.
Com a chegada da primavera D. Júlia recomeçou os seus passeios pelos
campos e pinheirais vizinhos, na companhia da sua inseparável Rosa, a que
algumas vezes se agregava também a Viscondessa.
Na quaresma seguinte Rosa recebeu pela segunda vez o sacramento da
comunhão, e pouco tempo depois, D. Júlia, querendo que a sua protegida
progredisse nos seus estudos, pediu a sua mãe que lhe escolhesse uma
professora.
A Viscondessa anuiu imediatamente ao pedido da sua filha.
Pouco tempo depois entrou para casa da Viscondessa, sob recomendação e
abono do Abade de São Cosme, uma jovem senhora, a quem há pouco acabava de ser
concedido o título de capacidade.
Rosa esforçava-se por todos os meios possíveis para corresponder
dignamente aos benefícios, que, D. Júlia e a sua mãe, lhe estavam
constantemente prodigalizando; procurando sempre não dar o mais leve desgosto
às suas protetoras; contudo, é preciso dizer que Rosa não era perfeita. A sua
vivacidade natural levava-a muitas vezes a impacientar-se, e o seu ainda pouco
peso ou juízo a cometer algumas faltas nos seus deveres; mas reconhecia com
tanta facilidade os seus erros, e mostrava-se tão arrependida e desejosa de os
emendar, com tanto afinco e perseverança, que era impossível tratá-la com rigor
por muito tempo.
Rosa dava as suas lições, umas vezes no quarto de D. Júlia, quando o seu
estado de saúde o permitia; outras vezes no da Viscondessa, que sentia um
verdadeiro e sincero prazer em observar os progressos da predileta e querida da
sua filha.
D. Maria de Almeida, assim se chamava a professora, correspondeu
dignamente à confiança, que a Viscondessa nela tinha depositado, confiando-lhe
a instrução da sua pupila.
O progresso e desenvolvimento, que Rosa sob a sua direção experimentou,
foi grande, dando já sinais de que em breve a discípula se tornaria uma
excelente professora.
Rosa, assim que as suas obrigações e deveres estavam terminados,
dedicava-se exclusivamente a D. Júlia, e a sua avó. Esta, desde que viera viver
para casa da Viscondessa do Candal, andava alegre e folgazã, e ainda julgava
estar sonhando, tal era a placidez e amenidade do seu viver.
Tinha já decorrido parte do ano; o outono estava quase findo, e o estado
de saúde de D. Júlia não denunciava sinal algum de pioramento; a moléstia, porém,
que até então estivera encubada, reapareceu com grande violência, e em oito
dias as crises sucederam-se tão próximas umas das outras, que puseram a enferma
em estado de se não conceber esperança alguma da salvar.
A ilusão, que até aí existira em todos, desapareceu completamente: já
não esperavam senão o golpe final... Rosa, nem um só momento desamparava a sua
querida protetora, e juntamente com a Viscondessa, cuidava e tratava de D.
Júlia; não consentiam que mais ninguém lhe prestasse o mais insignificante
serviço, chegando até a ter zelos uma da outra.
Tanta dedicação e amizade teriam feito com que Deus revogasse a fatal
sentença dada a D. Júlia, se o Criador, na sua alta sabedoria, não tivesse
resolvido chamar à sua presença, a receber o prêmio das suas virtudes, aquele
anjo de bondade e resignação.
D. Júlia, já moribunda e quase expirante, pediu a sua mãe, como última
graça que lhe fazia, que não abandonasse Rosinha, a sua querida discípula e
amiga; que se não afligisse, nem desanimasse, porque em Rosa lhe deixava,
estava certa disso, uma filha obediente e dedicada, que havia de substituir no
seu coração o lugar que ela deixava vazio, e a Rosa recomendou-lhe que amasse
sempre muito a sua mãe, porque nela encontraria um sincero apoio, e uma terna e
carinhosa amiga.
Apenas D. Júlia proferiu estas palavras, a hora fatal tinha soado;
abraçou a sua mãe, e Rosinha e, pronunciando os nomes de Rosa... e a minha
mãe... expirou, voando a sua cândida alma à presença de Deus a receber a
glorificação das suas virtudes.
Assim terminou D. Júlia a sua existência, que, se tinha sido breve para
o mundo, fora longa pelas boas obras, que sempre praticara, e pela pureza em
que sempre vivera.
CAPÍTULO 13
Já decorreram seis anos depois das cenas descritas no capítulo
antecedente.
Não deixaremos, porém, a nossa muito conhecida casa, perto de São Cosme,
pertencente à Viscondessa do Candal, porque é no caminho, que a ela conduz, que
tem lugar o que passamos a contar.
Uma senhora ainda jovem, e outra já de mais idade caminham em silêncio,
e comovidas.
A mais idosa é a nossa muito conhecida Viscondessa do Candal.
O pesar da morte da sua querida filha Júlia desfigurou-a muito. O rosto
tem-no emagrecido, e sulcado de profundas rugas, e os cabelos embranquecidos
antes do tempo.
A sua companheira é uma jovem que figura ter dezessete para dezoito
anos, de aparência ingênua e modesta; é a nossa Rosa, a pequena dos ramos e
cestinhos.
A Viscondessa caminha apoiada no braço da sua companheira. Depois de
alguma hesitação Rosa decidiu-se a dirigir-lhe a palavra.
— Receio, minha querida senhora — disse Rosa respeitosamente — que esta
visita vos cause uma grande comoção e vos prejudique a saúde, por que a não
deixais para quando estiverdes mais restabelecida?
— Não, Rosa, não. Há oito dias, que não vim visitar a campa onde jaz a
minha Júlia, e oito dias já é um espaço muito longo. Sinto-me hoje melhor, não
desprezarei portanto esta ocasião que se me oferece, porque, quem sabe se
recairei?
— Não penseis em tal, senhora Viscondessa. Creio que ainda haveis de ter
muitos anos de vida; tenho fé, que Deus vos não roubará à minha ternura e
reconhecimento.
— Se as orações de um anjo, Rosa, pudessem deter a morte, conheço que as
tuas me preservariam dela. Mas, ai de mim, a morte da minha sempre lembrada
Júlia despedaçou-me o coração. Não estou eu só neste mundo? Berta não me
abandonou logo que casou? Que faço então aqui neste ermo, a que chamam mundo?
— Ah! senhora, esqueceis então a pobre Rosa, que vos estima e ama, e que
vos é tão dedicada como se fora vossa filha?
Estas palavras, pronunciadas com um acento de submissão, penetraram até
o imo do coração da Viscondessa: sensibilizaram-na tanto, que abrindo os braços
recebeu neles Rosa banhada em lágrimas.
— Sou uma ingrata, Rosa, bem o reconheço, — disse a Viscondessa cingindo
Rosa ao coração. Recebo com indiferentismo os teus cuidados e carinhos, e a tua
inexcedível dedicação. Perdoa-me, minha filha, minha querida filha. Conheceste
Júlia, e melhor que outra qualquer sabes quanto era merecedora da minha ternura
e amizade, e quanto é digna de ser chorada. Mas
Júlia, antes de morrer, deixou-te na minha companhia, para me servires
de consolação e alívio na minha dor. Abraça-me Rosa, minha filha querida.
Rosa, por única resposta, abraçou com ternura a sua benfeitora.
As lágrimas, que lhe cobriam as faces, diziam bem alto e eloquentemente,
o que a comoção lhe embargava nos lábios.
Ainda caminharam por mais algum tempo e chegaram ao cemitério.
A Viscondessa do Candal, como tributo à memória da sua filha,
mandara-lhe levantar um lindo e rico mausoléu de mármore branco, no qual ela
também queria ser encerrada à sua morte. Em volta das grades viam-se alegretes
em que tinham violetas, gerânios e rosas amarelas, que Rosa cultivava e cuidava
com muito esmero, como recordação das flores com que enfeitara o cestinho, que
fora causa da íntima união, que se
estabelecera entre ela e D. Júlia.
A Viscondessa e a sua filha adotiva oraram por muito tempo sobre a campa
daquela, que tanto tinham estremecido em vida, e que tanto choravam na morte.
Rosa, depois de ter examinado e regado todos os alegretes e pés de
flores, um por um, para que os insetos, ou a secura os não estiolassem,
dirigiu-se à Viscondessa.
— Deixo-vos, senhora — disse-lhe ela — por um instante. Vou rezar junto
da campa da minha avó.
— Também quero acompanhar-te — replicou a Viscondessa.
Não muito distante do mausoléu de D. Júlia se elevava uma cruz simples.
Era aí que jazia, havia dois anos, a pobre cega. Terminara os seus dias
sossegadamente, bem-dizendo a ternura da sua neta, e a caridade afetuosa da sua
benfeitora.
Devido ainda ao zelo de Rosa a campa da pobre cega, adornada com
diversas flores, semelhava um jardinzinho.
Rosa ajoelhou-se, e depois de ter rezado com fervor e devoção por algum
tempo, levantou-se, e dando o braço à Viscondessa retiraram-se, fazendo ainda
uma última visita ao túmulo de D. Júlia.
Quando se recolheram, Rosa encontrou uma carta da sua antiga professora
D. Maria de Almeida, na qual lhe participava, que daí por dois meses se havia
de proceder aos exames de habilitação para os títulos de capacidade, por isso,
se ainda estava decidida a propor-se a exame, que enviasse os documentos
necessários ao comissário dos estudos.
Rosa apresentou esta carta à Viscondessa.
— Sempre estás decidida a propor-te a exame? — disse-lhe ela.
— Sim, minha senhora. É o meu mais fervente e afanoso desejo. Quero,
senhora, que a instrução e saber, que vos devo, e a vossa querida e chorada
filha, aproveite às crianças, que a pobreza retém na ignorância e na rudeza. Se
eu poder ser útil, ainda que seja a uma só dentre elas, como, senhora, me
reputarei feliz e bem paga do meu trabalho!
— Tinha a esperança de te conservar sempre na minha companhia — replicou
a Viscondessa. — Ocuparias para sempre o lugar do anjo, que Deus me levou, da
minha Júlia. Não queres, Rosa, ser minha filha?
— Ah! senhora, quero sim, ser vossa filha; isso ainda vai além da minha
ambição. Mas recordo-me que era uma pobre rústica, e que só aos vossos
benefícios devo a minha instrução, e a cultura da minha inteligência. Quero,
senhora, dar de barato, e ter a vanglória de dizer que os vossos cuidados não foram perdidos, mas com isso não me
devo tornar vaidosa, porque faltaria assim aos meus deveres. Serei sempre para
vós uma filha adotiva, carinhosa, humilde e terna, e que achareis sempre ao
vosso lado, esforçando-se por pagar a sua dívida de gratidão e reconhecimento:
Recebendo e aceitando a vossa afeição e amizade, para mim preciosa e
apreciável, não me devo esquecer da classe onde nasci. O meu lugar é mais
humilde; mas como ele parece belo e grandioso ao meu coração, quando me recordo
do bem, que posso fazer a essas infelizes crianças, que vivem na bruteza,
ensinando-lhe o que sei e que é obra vossa! Há muito que concebi este meu projeto,
e que o declarei a vossa filha: “Às pobres rapariguinhas das aldeias —
disse-lhe eu — farei o mesmo que a Sra. D. Júlia me fez. Ensinar-lhes-ei a
serem felizes com a sorte, que Deus lhes destinou neste mundo; cultivarei o seu
coração e o seu espírito, e por única recompensa não quererei mais do que
ouvi-las bem dizer os nomes da excelentíssima Viscondessa do Candal e da sua
filha.”
— Rosa, minha querida Rosa — disse a Viscondessa abraçando-a, e com os
olhos rasos de lágrimas, — que Deus te pague a felicidade, e prazer, que me
fazes nascer no coração com as tuas palavras.
Dois meses depois, a nossa, hoje, D. Rosa de Jesus e Sousa comparecia
perante o júri nomeado para proceder ao exame das concorrentes ao professorado.
O título de capacidade, em grau superior, foi-lhe concedido por unanimidade e
com distinção.
CAPÍTULO 14
Dois anos se passaram já, depois que foi conferido a D. Rosa de Jesus e
Sousa o seu título de capacidade.
Estamos em fins de outubro, numa casa caiada de branco, que se encontra
ao entrar na freguesia de São Cosme, do lado de São Pedro da Cova. Na frente há
um pátio largo e espaçoso. Sobre o muro pendem os ramos verdejantes de dois
chorões. Nas traseiras da casa há um pequeno jardim, muito bem tratado, com as
ruas areadas com saibro, e que termina por um caramanchãozinho, que, pelo bem
cerrado que está, indica que no verão deve ali haver uma frescura agradável,
auxiliada pela corrente de uma levada, que corre próximo. Na sala que fica ao
nível do jardim ouve-se um murmúrio confuso. Entremos, para examinar a que ele
é devido. Que vemos? Grupos de lavradeirinhas, ao todo umas trinta, pouco mais
ou menos, vestidas de branco, e tendo todas na mão um raminho de flores do
campo, com um laço de fita. Ao fundo da sala vê-se uma rica imagem da nossa Senhora
da Conceição, colocada sobre um altar, bem adornado com castiçais de prata,
velas de cera e jarras com flores.
Num dos lados da sala há quatro cadeiras de braços; numa delas está
sentada a Viscondessa do Candal, a quem D. Rosa, de pé, junto dela, está
dizendo os nomes das suas discípulas.
A Viscondessa passeia a vista por todas elas, e conhece-se-lhe na
expressão do rosto, que aquele espetáculo a regozija e encanta.
O modo, porque todas dirigem as vistas para a porta e pelas janelas,
indica que se espera alguém.
O Abade da freguesia e o administrador do concelho entram neste momento
pelo portão.
Um sorriso alegre se vê deslizar em todos os rostos. Eram as pessoas por
quem se esperava.
A Viscondessa e a sua pupila vieram recebê-los à porta, e conduziram-nos
às cadeiras que lhe estavam destinadas.
As crianças tomaram os seus lugares, e restabelecido o silêncio, o Abade
da freguesia tomou a palavra, e fez o seguinte discurso:
“Sinto, minhas meninas, um prazer imenso por vos ver aqui reunidas para
a celebração do primeiro aniversário da instalação desta escola, devida à muita
filantropia e caridade cristã da excelentíssima Viscondessa do Candal, e à
dedicação exemplar da vossa digna professora a Sra. D. Rosa de Jesus e Sousa.
Julgo desnecessário o rememorar-vos, que um tal sacrifício merece um eterno
reconhecimento, porque entendo que entre vós, minhas filhas, não há ingratas.
Vós respeitais e venerais a excelentíssima Viscondessa, e amais com um
verdadeiro amor a vossa professora, não é assim? É, assim o creio. Mas há ainda
uma pessoa, para quem deveis ter uma saudosa recordação, e que também deveis
encomendar a Deus nas vossas orações. Prestai-me atenção, que vos vou dizer
quem é essa pessoa, cuja recordação vos deve ser grata. Há pouco mais ou menos
doze anos, que uma pobre lavradeirinha ganhava a sua vida fazendo cestinhos de
juncos, e ramos de flores silvestres. Uma jovem e nobre senhora, que reconheceu
nela amabilidade, modéstia e humildade, simpatizou com ela, e encarregou-se da
educar e instruir. Como a sua benfeitora a achou sempre digna dos seus
benefícios, encarregou-se também da sua posição futura. Essa jovem senhora, de
que vos falo, é a excelentíssima Sra. D. Júlia, filha da excelentíssima
Viscondessa do Candal, e essa lavradeirinha, a quem ela dispensou os seus
carinhos e a sua afeição, é a vossa douta professora. Há já alguns anos, que a
alma da excelentíssima Sra. D. Júlia voou à presença do Deus eterno a receber o
prêmio das suas virtudes e das boas obras, que praticara neste mundo; uma das
quais ainda existe, que foi o deixar-vos a vossa professora e amiga.
“Mostrai-vos, meninas, sempre merecedoras dos benefícios, que vos fazem,
porque isso é o único desejo das vossas benfeitoras e a única recompensa, que
recebem da sua dedicação, que estou muito convencido sempre fareis por merecer.
Não quero, porém, retardar por mais tempo o momento de receberem o
prêmio e galardão, que merecem pela sua aplicação ao estudo e amor ao trabalho,
àquelas que disso se tornaram dignas; e às que desta vez não são galardoadas
resta-lhes a esperança e o meio de, pela imitação das suas condiscípulas, se
tornarem dignas do merecerem para o ano futuro.
Vamos por tanto proceder à distribuição dos prêmios.”
Um sussurro de alegria acolheu as últimas palavras do digno sacerdote.
A conferência dos prêmios foi esplêndida.
Os prêmios consistiam em livros religiosos e de instrução, que tinham
sido cuidadosamente escolhidos pela Viscondessa, e a sua filha adotiva, todos
ricamente encadernados. Era interessante e belo ver a alegria, que se deslizava
no rosto das que tinham sido contempladas na distribuição.
Terminada a conferência dos prêmios teve lugar debaixo do caramanchão um
bem servido lunch.
— Como é magnífico o espetáculo, que apresentam estas crianças, alegres
e satisfeitas — disse a Viscondessa — Recordar-me-ei sempre deste dia, como o
mais grato e feliz da minha vida. Tu, minha querida Rosa, atrais as bênçãos do
céu sobre nós, e sobre a memória da minha querida, e chorada Júlia.
— Ah! senhora, — disse Rosa com os olhos rasos de lágrimas — que a vossa
profecia se realize, e a minha mais cara aspiração ficará satisfeita.
O desejo de Rosa realizou-se. A escola está cada vez mais florescente, e
a freguesia ufana-se pela possuir. Todos os moradores do lugar ainda hoje bem dizem
os nomes da Viscondessa do Candal, da sua filha e de D. Rosa, modelo raro de um
coração verdadeiramente grato e reconhecido aos benefícios que recebera.
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