11/03/2017

A noiva do Paladino (Conto), de Virgílio Várzea


A noiva do Paladino
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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CAPÍTULO 1

Só e triste, a alta janela ogival de um torreão do Castelo, Virgínia de Montauban olhava incessantemente a estrada de Vezère que vem desde Civrai e Brantôme, por Segur e Salignac, até às planícies verdes de Sarlat e Ceré, descendo depois para o sul, a se perder nas Cevenes, em demanda de Avignon. Estava ali havia horas à espera da coluna de cavaleiros cruzados, a cuja frente vinha Roberto de Clermont, o paladino adorado, que seguia para Roma e de lá para o Oriente a juntar-se às forças de Godofredo na conquista do Sepulcro Santo. Mas a coluna tardava, pois devia entrar em terras do Castelo por aquela manhã. E o sol ia já descendo lentamente para os lados do Mar Cantabrio, nas montanhas de Saintonge. Uma ideia inquietante tomava o espírito da castelã, que temia a caravana romeira houvesse voltado a oeste, em Montignac, enveredando pelos caminhos difíceis, mas incomparavelmente mais breves, de Noaialles, do Aurillac e de Randon. E, por instantes, sob a pressão deste cismar, seu coração palpitava mais forte e seus olhos se inundavam de pranto... Logo porém serenava, lembrando-se da promessa que lhe fizera Roberto, dizendo-lhe na última entrevista que “esperava vê-la à janela do Castelo na sua marcha para a Palestina”. Então, cheia de esperança, esquadrinhava sem cessar a estrada, onde lhe parecia ia surgir a cruzada rumorosa e o glorioso paladino amante.

Dentro em pouco, com efeito, ao norte, numa volta longínqua da estrada, fechada por uma linha ondulosa de pequenas colinas, em cujas árvores cerradas ardiam palidamente os derradeiros brilhos do sol no poente, um som rouco de buzinas guerreiras estalou de chofre, de envolta com o tropel dos ginetes, ao mesmo tempo que se destacavam já vagamente as armaduras dos primeiros cavaleiros e a facha movediça das lanças, que se perdiam ao longe, eriçando o ar ameaçadoramente, sob o véu denso de poeira levantada do chão, à guarda, pelo passo vigoroso e de ferro do pelotão dos guias.

Mas as trombetas para logo cessaram e os sons tristes e doces dos salmos sagrados ergueram-se, num coral sonoroso, subindo na serenidade azulada da tarde, como um grito de guerra e dor. E o préstito aproximava-se, no tumultuar gigantesco e crescente da cavalaria, das falanges de infantes a pé e das aclamações ao Senhor. Então as forças luzidas do velho Barão feudatário, Henrique de Montauban, correram aos bastiões e ameiascom as lanças agudas e longas, as curtas adagas em cruz e as grossas e fortes zangras...

A moça castelã, ao avistar os pelotões e ao ouvir as trombetas e cânticos, sorriu levemente, e, com uma ardente oração nos seus lábios de virgem, abeirou-se um pouco mais da janela ogival, no alto do torreão. Agora descortinava melhor o caminho, que as carvalheiras seculares, coalhando a planura em frente, cercavam de um mar de frondes; agora descobria mais vastamente também todo o terreno adjacente às muralhas e o leito arenoso e amplo, por onde ia deslizar a cruzada, nessa via de Vezère que vai até ao Levante. E fitando o espaço e a terra, onde os seus olhos erravam com piedade e unção, tão azuis e transparentes como aquele céu da Guienne, pedia à milagrosa padroeira do Castelo, à Santa Agueda bemdita, sua madrinha e sua mãe (porque esta lhe morrera em criança), velasse do Trono de Deus, com todo o seu poder e bondade, pelo seu noivo querido e pelos nobres guerreiros cristãos, que ali seguiam heroicamente como ele, para resgatar a cidade divina, a sacrossanta Jerusalém, das garras dos Muçulmanos...

Nesse instante, nos parapeitos recortados de pedra, as luzianas soaram estridentemente, numa saudação marcial à divisão romeira, cuja fila robusta dos guias enfrentava já a ponte levadiça e o grande portão de aço e bronze do Castelo, erguendo alto as suas lanças e os escudos reluzentes. Em uma das torres em coroa que flanqueavam o portão, nas muralhas, flutuou então, ao vento, a bandeira branca com a larga cruz vermelha: e a guarnição de Montauban, ao mesmo tempo que os soldados cruzados, prorrompeu em fortes gritos guerreiros:

— A Jerusalém! a Jerusalém! Deus o quer!... Cristo vive, Cristo reina, Cristo manda!...

E, à proporção que os pelotões chegavam, faziam alto, metendo em linha na estrada em continência a cidadela do Feudo. Logo após os guias vinha o corpo dos cavaleiros, barões e fidalgos, tendo por chefe supremo a Roberto de Clermont, que, grande e belo no seu corcel de batalha, o arnez de aço faiscante, a coroa de ouro ducal à cabeça, tinha à direita Lonon de Nantaigu e Gerard de Chevisy, à esquerda Reinaldo de Toul e Garnier, conde de Gray. Em seguida os outros nobres, viscondes e bailios, entre os quais alguns Abades, monges e eremitas, trocadas as vestes eclesiásticas, pelas seculares, ou pelas couraças de guerra. Depois viam-se os sargentos e soldados, todos em geral burgueses e plebeus dos grandes feudos rurais, que haviam engrossado a cruzada. Depois ainda eram os peregrinos, vestindo samarra cinzenta de burel, colada em pregas ao corpo por um largo cinto de couro, de onde pendia o largo rosário de camândulas, com um crucifixo de metal. No ombro esquerdo, e descendo até ao peito sobre o coração, traziam todos uma pequena cruz, cor de sangue. A mão direita, cada um empunhava o cajado, rematando no alto por um castão recurvo que passava dois palmos acima da cabeça, fazendo como uma linha de estranhas interrogações, ao longo de cada fila. A meio dos cajados balouçavam, presas em atilhos de couro as cabacinhas d’água. E como a cruzada ia a Roma, ostentavam nos roquetes cheios de dobras as duas chaves simbólicas. Alguns dos peregrinos, em vez do cajado, traziam um bordão de cana, irado como uma flauta: e para suavizar a agrura das marchas, tocavam neles as árias saudosas da terra natal. Cobriam-se com um chapéu de aba larga levantada na frente, onde às vezes brilhava uma concha, como nos romeiros de Compostela, de belos olhos peninsulares. Num momento, no perímetro amplo da estrada ladeando o fundo fosso junto aos muros, todo o exército adensou em dez fileiras imponentes de dois mil homens cada uma, pois a divisão cruzada compunha-se de vinte mil...

Virgínia de Montauban, num relance, correu com os seus olhos límpidos a imensa soldadesca, infantes e cavaleiros, empoeirados e tostados pelo, sol das grandes marchas, começadas havia uma semana e que iam durar meses e meses, talvez, até à longínqua Jerusalém. Examinara rapidamente aquelas armas terríveis, que iam derramar o sangue infiel nas areias da Palestina, em desafronta à Religião e ao Céu; e, invocando as graças do Altíssimo, lançara uma bênção e uma prece ao solene e majestoso estandarte da falange, que era uma grande bandeira branca de seda com uma larga cruz de púrpura ao centro, presa ao alto de uma haste dourada que um grupo de cavaleiros guardava, cercando poderosamente o guerreiro que a empunhava, um jovem fidalgo ainda imberbe, de olhar resoluto e tez de dama, cujo rosto fascinava, róseo e fino, pela aberta do capuz de malha d'aço retrançado, descendo-lhe sobre a armadura e cobrindo-lhe magnificamente as espáduas, o pescoço e a cabeça. Mas imediatamente volveu a fixar Roberto, com um olhar de tão viva ternura que o chefe cruzado, num embevecimento e num extasis, mantinha o rosto erguido para ela, e isto sem mesmo escutar o Pajem delegado de Henrique, que, nesse instante, duma das torres grandes da muralha, arengava uma saudação e uma desculpa, em nome de seu amo, o qual não vinha em pessoa saudar os Cavaleiros, por estar ainda no leito, prostrado pelas feridas do encontro de Chalus. E assim, em meio ao cerimonial da continência, certamente despercebidos de todos, cujo único pensamento era o desbarato do Turco e a reconquista do Túmulo de Deus — dama e cavaleiro enamorados, repetiam mutuamente, em silêncio, trocando a alma nos olhares (pela vez derradeira, quem sabe!) os votos de eterna dedicação e amor que já longamente haviam feito sob a nave das Abadias, em as noturnas entrevistas furtivas, ou no fervor dos torneios...

O Pajem, no entanto, cessara, sob um estridular de buzinas soando dentre as ameias. Já o sol desaparecera também, caindo no mar Cantabrico. Uma sombra delicada, de uma cor de violeta, entrara a rolar docemente pelo azul do firmamento, ao mesmo tempo que no interior das muralhas, o sino de Santa Agueda, a pequena igreja do Feudo, soltava no ar o seu Angelus, em sons de imensa plangência. Em todo o exército os infantes ajoelharam, num vasto ruído de escudos e lanças, que tiniam em gritos de aço, como num começo de ação. O chefe e os cavaleiros curvaram-se igualmente nas celas, o rosto em recolhimento, sob as badaladas solenes ecoando pelo campo. E logo o murmúrio de uma Ave-Maria se elevou, profundo, e dolente, saindo de vinte mil bocas, debaixo de aquele céu medieval, que a noite lentamente avassalava com seus presságios e assombros...

No alto do torreão, Virgínia de Montanban, caíra também genuflexa, agarrada ao seu rosário de pérolas, num sussurro de orações. Mas através dos rendilhados da janela ogival, fitava sempre o paladino querido, recurvado humildemente sob as plangências do Angelus. E ambos entreolhavam-se ainda, com infinita ternura, como magnetizados e perdidos na comunhão das mesmas crenças e da mesma paixão...

A noite cerrara, por fim, cobrindo de treva a planura, as muralhas e todos os torreões do Castelo até aos mais escusos recantos. Para o oriente alastrava o céu uma prodigiosa florescência de estrelas. Para o ocidente, porém, na linha curva do horizonte sobre as colinas tufadas de carvalheiros, uma leve barra de ouro saudosa — derradeiro adeus do sol à Guienne, naquele dia pomposo —perdurava luminosamente, no alto, resistindo à sombra que desse lado não pudera ainda vencê-la. Como a paisagem inteira, o exército cruzado fora pouco a pouco se abismando na treva, de onde começava a surgir agora à luz vermelha dos archotes, que aqui e ali se acendiam, em cabeleiras de chamas desgrenhadas pelo vento. E, num instante, aquela imensa multidão de guerreiros se destacou de novo, iluminada como por uma só claridade, na fusão geral dos milhares de focos comburentes.

A jovem castelã, um momento só, não deixara a janela ogival, onde, enrolada agora num manto de seda branca, que lhe trouxera uma das serviçais de câmara, semelhava idealmente uma Veleda gaulesa, aparecendo, por uma invocação de iluminados, nalgum retiro de montanhas desertas, num desses sítios pressagos em que a gente medieva turbada pelos segredos da morte e as alucinações da Ultra— Vida misteriosa, ia ouviras vozes dos sortilégios e dos supremos encantos. Embaixo, soberbo na sua couraça faiscante e sobre o seu ginete de guerra, em meio ao estado-maior de fidalgos e condes, destacando-a com luz fantástica dos archotes acesos, Roberto de Clermont, a loura barba levantada, os olhos presos à janela rendilhada, embevecia-se ainda na profunda adoração da Amada, que ele gozava espiritualmente, como si a tivesse entre os braços ou sobre o coração. Ela, arrebatada também, bebia-lhe mudamente os olhares, alheiada e suspensa nos páramos luminosos de uma idealidade ou de um sonho...

Mas já as trompas soavam e os romeiros entoavam um cântico. Toda a imensa mole cruzada agitou-se, fazendo tinir os escudos e lanças. O chefe estendeu então o braço para a frente, na direção do levante. Os outros cavaleiros imitaram‑no, colhendo o freio aos corcéis e sacudindo-lhes às garupas os mantos. E erguendo com a destra o montante, com a outra fazendo um gesto que apertava o coração, o paladino amoroso fitou pela última vez a Castelã, lá acima na, janela ogival, cerrou as esporas de ouro ao montario e atirou-se num tranco, gritando com voz profética:

— Cristãos, a Jerusalém! Deus o quer! Jesus vive, Jesus reina, Jesus manda!...

O grito ecoou poderosamente na noite radiante. Um tropel rumoroso e terrível, que abalava todo o chão, como um terremoto ao longe, envolveu o Castelo e o campo. E a numerosa falange romeira entrou a rolar para além, pesadamente, cortando a escuridão da planura como uma gigantesca serpente de fogo...

Virgínia de Montauban ficou a olhar da janela ogival, lívida e soluçante, quase já a desmaiar contra as colunas de pedra, como si a houvessem ferido de repente em pleno: coração. E toda a noite até à madrugada acompanhou saudosamente a falange, que, muito avançada na planície, dir-se-ia agora uma longa linha enigmática de movediças reticências flamantes...


 CAPÍTULO 2

 As primeiras semanas a moça castelã passou-as encerrada em sua câmara, isolada de tudo e de todos, a chorar a partida do paladino, revolvendo continuamente entre as mãos, e cobrindo-o de lágrimas e beijos, o penhor que ele lhe dera, uma noite, num dos pavilhões torreados do velho parque do Castelo, sobre as ribas do Dordogne. Era esse penhor um fino anel de aro de ouro onde se encravava uma linda ametista, simbolizando a pureza e tendo gravados a buril dois pequeninos corações ligados por um grilhão. Dera-lho ele havia um ano, ao comunicar-lhe naquela entrevista a sua jornada a Jerusalém, à frente da cruzada dos francos. Desde esse dia trouxera-o sempre no dedo onde Roberto o colocara, selando-o com uma lágrima de amor e o seu primeiro beijo. Mas na febre da paixão, e para o sentir melhor junto às palpitações da sua alma, ela o retirara daí nessa noite dolorosa da despedida suprema, quando a cruzada desaparecera na estrada em demanda de Roma, e, fechando-o num invólucrozinho de seda, trazia-o agora no seio, de onde o tirava nos grandes momentos de aflição e saudade, para longamente contemplá-lo e cobri-lo de beijos, como se fosse a imagem querida do cavaleiro...

Cessadas porém essas crises de dor, surgiram os lentos cismares melancólicos, tão fundamente evocadores das coisas vividas, e que marcam luminosamente para sempre, no alheiamento sonâmbulo de toda a materialidade do mundo, a existência resignada e nostálgica dos exilados da Paixão e do Sonho. A langue castelã sofredora, na sua sentimentalidade dolente, atraída pela suavidade das coisas, começou a amar o torreão e sobretudo aquele recanto da janela ogival, de onde, na tarde triste da passagem da cruzada, pudera ver como nunca, cheia de emoção e ventura, a Roberto de Clermont. Esse recesso tranquilo da vasta cidadela tornava-se agora o seu mundo, a sua cela dourada de monja do amor. Só então compreendia como tudo ali tinha uma alma, uma história, um pensamento palpitante na insensibilidade aparente de seu rude arcabouço...

E no entanto semelhante impressão de vida espiritual na materialidade dos objetos ou na das formas brutas, só conseguira, despertar-lhe a atenção quando o sofrimento terrível caia sobre ela com as suas prezas de lobo. Ah! é que o próprio granito parece experimentar um sentimento, si se mistura um dia com e despenhar das existências humanas! Todo esse torreão isolado com as suas vastas salas atulhadas d'armas, de broqueis e armaduras; com os amplos tetos vigorosos de carvalho esculpido de onde pendiam grossos artesãos de prata faiscante; com as paredes alastradas por fofos de seda, telas, brocados da Ásia, tapetes surpreendentes; e com as altas janelas em ogivas, sustendo no ar os panos altos e transparentes dos vitrais riquíssimos, cortados bizarramente por desenhos de batalhas ou legiões deliciosas de Querubins e Princesas em atitudes: imponentes e brilhos paradisíacos, — despertara-lhe então incomparáveis encantos, no silêncio que o povoava, aquela ala inacessível do Castelo, onde, sem que ninguém mais a visse passou, a viver unicamente para o seu Deus e o seu paladino, que dentro em breve voltaria, pensava, abençoado do Céu e dos Homens, das terras da Palestina...

Agora levava os dias ali, junto à vidraçaria multicor, pensativa e melancólica, reclinada em uma vasta poltrona artística toda de couro negro repregado a taxas de ouro, com paisagens em relevo representando caçadas em bosques, onde se embrenhavam amazonas de saias ao vento, cavaleiros de trombetas à boca e galopadas de matilhas perseguindo veados ligeiros ou javalis indômitos... E, desde as orações da manhã até às preces das Ave-Marias, rezadas aos pés do altar suntuoso e recoberto de imagens de Santos da sua câmara de dormir, fechada no torreão, naquela postura langorosa, dava larga às suas cismas, desfiando uma a uma as recordações mais queridas. Obcecavam-lhe sobretudo o espírito as cenas em que entrava Roberto com o seu esplendor de guerreiro. Deliciava-se em repassai-as na memória horas e horas, encantando-a mais que todas a do grande torneio em que o moço se tornara seu noivo, vindo abater a seus pés, com submissão e galhardia, a alta lança triunfal com que vencera na liça a todos os cavaleiros.

Esse torneio extraordinário dera brado em toda a França; e era ainda cantado entusiasticamente, nas festas de corte plenária, pelos Bardos da Provença. Ainda na véspera à noite, por entre os vitrais fechados da torre, comovida até às lágrimas, ela o ouvira longamente, repetido num rimance saudoso pela voz de um trovador de Sarlat, que descia em cavalgada para os lados de Ceré... E, derreada na poltrona, como sempre, naquela manhã clara da Guienne em que o sol batia jubiloso a vidraçaria policroma da janela ogival, agora cerrada dia e noite, tomada de profunda ternura, esmiuçava intimamente, no espírito, o quadro nunca mais esquecido e soberbo do certame glorioso.

Lembrava-se perfeitamente. Fora pela festa de Pentecoste, que era quando se celebravam os grandes atos solenes. Tinha-se ajustado o tratado de paz com a Lorena. E para se o assinalar condignamente seu pai marcava um torneio para o Campo de Monclar, a duas léguas do Castelo Um ano antes os arautos com um pelotão de garridos donzéis tinham saído a percorrer a França, tocando de castelo em castelo onde deixavam uma carta e um cartel de desafio aos cavaleiros que se quisessem apresentar na liça. Pelo caminho iam lançando igualmente os convites e guantes de luta aos escudeiros e fidalgos que por acaso encontravam. Dentro em pouco a notícia do torneio em Montaubán corria todos os Feudos. Quando os arautos recolheram à Guienne, já encontraram no alto pórtico do Castelo um escudo palpitando ao veto. Esta bela peça da armadura era talhada em forma de coração e apresentava na face convexa três largas fachas transversais pintadas de azul, branco e vermelho. Bem ao centro da facha branca se destacava o emblema — um monte correndo ao fundo de uma planície que um rio claro sulcava num veio de prata límpida; sobre o alto do monte surgia o sol, e, mais embaixo, no campo branco, pousava uma cigarra verde, de olhos fulvos e azas de gaze rutila, envolvida numa fita escarlate onde letras de ouro bordadas estendiam esta divisa: SILET, DUM NON ARDET — Silenciosa enquanto não arde! Do lado côncavo do escudo e presa à larga braçadeira de couro pendia de um nastro de seda uma nesga de pergaminho com esta assinatura a vermelho traçada sobre una cruz — Roberto de Clermont. E à proporção que os dias passavam, novos escudos iam aparecendo à entrada de outros castelos e pelos claustros dos mosteiros. Nas proximidades da fera, quer de dia quer à noite, cavaleiros batiam ao Castelo, sob o estridor das buzinas, e falando aos arautos eram conduzidos para uma sala d'armas, onde, cada um de per si, diante da efígie de Henrique, erguia as viseiras douradas, dizia baixo o seu nome, mostrando suas divisas e seus títulos de nobreza. Já per esse tempo, no Campo de Monclar, à criadagem e os peões de Montauban, como os de todos os fidalgos que concorriam ao torneio, trabalhavam ativamente na arena e na construção dos palanques, das torres e pavilhões, de onde as damas e donzelas, os velhos condes e barões, bem como os burgueses e o povo teriam de assistir ao combate dos campeões. Numa dessas tardes regressava ela de uma excursão a cavalo às montanhas de Ceré, quando, em frente ao pórtico, deparou com o escudo de Roberto de Clermont. Contemplou-o por instantes, e logo a divisa amorosa a impressionou fundamente. E enquanto a ponte levadiça descia para lhe dar passagem e à luzida comitiva, lia e relia mentalmente o belo mote do brasão: SILET DUM NUN ARDETsilenciosa enquanto não arde! Lembrava-se de ter visto já aquelas palavras num escudo semelhante. Mas onde fora?... E vencendo a ponte num salto, seguida dos serviçais e dos pajens, por entre as trombetas saudando-a, revolvia no cérebro as mais íntimas recordações... Nervosa, porém, como estava, esforçava-se em balde, porque à memória perturbada nem uma ideia acudia. E só momentos depois, na sua câmara, despindo a montaria e o manto, foi que lhe ocorreu ao espírito a história do brasão. Vira-o no braço de de um cavaleiro auvergnez, uma manhã de Natal, na estrada de Lion. Ia para Poitiers, em companhia do pai, numa jornada piedosa ao mosteiro de Blois, onde tinha um tio monge, o velho conde d'Auraí. A comitiva auvergneza parara um instante para lhes dar passagem e saúda-los, e ela pudera olhar de relance o moço paladino, quando este, dando uma volta ao ginete, se colocara diante deles, erguendo o escudo e suspendendo a viseira, onde o seu rosto se mostrou, cheio de máscula beleza e em perfeita harmonia com seu porte donairoso, sob o arnez refulgente. E o seu escudo era aquele, com a mesma pintura simbólica e a mesma divisa amorosa: SILET DUM NON ARDETDe aí lhe nascera a primeira impressão afetiva, tão forte que muitas vezes a figura garbosa do cavaleiro lhe vinha dourar os devaneios e, sonhos... Mas dois anos se passaram sem que se encontrassem de novo... E agora ali estava o seu escudo como uma doce esperança. Ia vê-lo pois na liça, valente e destro no seu montario de guerra, derribando talvez os rivais, alcançando o prêmio de honra, sob as aclamações do torneio... E, emocionada e nervosa, fora encostar-se à janela larga da câmara, de onde se avistava o alto pórtico de pedra entre as torres das ameias. Crepusculava a essa hora. Tudo em torno adormecia na sombra. Algumas estrelas rareadas reluziam já a leste. Mais em baixa, por traz das colunas fronteiras, subia um clarão argênteo. E dentro em pouco o luar apareceu, iluminando com um polvilho de neve as estradas e os campos. Um maior enternecimento tomou-a então, e, suspirosa e dolente, pensando no cavaleiro, ali ficou longas horas sob a lua nevoenta...

Viera, por fim, o dia do torneio. Ao romper da manhã — manhã radiosa de sol — preparada a grande cavalgata do Castelo, com os pajens, os peões e os palafreneiros. Ela e o pai, montados em fogosos corcéis magnificamente ajaezados, partiram em direção, à Monclar, precedidos dos arautos e de uma banda de trombetas, que vibravam alegremente pela estrada real de Ferère e as colunas de Ceré. Pelos atalhos e trilhos da planície em redor e pelas constantes encruzilhadas que faziam por toda a parte os caminhos, grupos de plebeus, burgueses, menestréis e cavaleiros, uns a pé, outros cavalgando esplêndidos animais arreados com um luxo surpreendente, cantando e parlando num vozear festivo, acudiam também ao lugar do torneio. Sempre à frente da cavalgata, a moça castelã ia olhando atentamente os grupos dos cavaleiros destacando aqui e além pelo brilho dos arnezes, e pensava encontrar de repente com Roberto de Clermont, que devia vir entre eles... Mas o cortejo de Henrique deixava todos para trás numa galopada infrene; e, em pouco, de uma volta elevada da estrada, se avistou, lá embaixo, a planura de Monclar, rasa e vasta na sua amplidão de esmeralda. Num largo espaço ao centro, e traçadas em um círculo, apareceram então as construções do teatro da liça — palanques, pavilhões e tendas, todas irriçadas por uma multidão extraordinária de hastes esguias, que sustentavam no ar uma profusão multicor de colchas de seda, galhardetes e bandeiras... Com, mais uma, galopada a grande comitiva do Feudo entrou a linha de arcos e festões que delimitava por fora o perímetro monstruoso da arena. A enorme multidão que já aí se agitava prorrompeu de súbito numa saudação rumorosa ao séquito principesco. Entrando o âmbito dos pavilhões e palanques, todos recobertos de damascos, flores e tapeçarias, a moça e o pai foram apear à porta de uma torre que era mais alta que as outras e cujas fachadas em ornato se recortavam artisticamente numa frisa saliente de bastiões e ameias, à maneira de um pequeno castelo guerreiro. No primeiro andar desta torre, para onde se subia por larga escada revestida de brocado e lantejoulas e espelhos, havia um enorme balcão do qual pendiam, como de todo o frontão em colunatas, escudos de aço reluzentes sobre largos fofos de estofo riquíssimo e telas de ouro do Oriente... O balcão abria diretamente para o grande espaço circular em frente, ocupado pela arena. A um e outro flanco da torre estendia-se a linha dos pavilhões e palanques, bem como na ala fronteiras em tudo igual à primeira, menos na construção suntuosa do torreão de Henrique, que era único no seu gênero. Nesta ala, como na outra, viam-se já aos balcões e sacadas enxamearem as damas, as donzelas, os fidalgos das mais nobres linhagens, os menestréis, os jograis, os burgueses e plebeus. Em dois pavilhões à parte, para o fundo da arena, estadeavam-se em altas poltronas taxiadas, com armaduras ou togas de púrpura, os juízes e os marechais do torneio, que tinham de julgar do valor dos golpes e da vitória dos campeões combatentes...

Virgínia de Montauban, apenas se sentara ao balcão, entrou a examinar a arena, que era fechada circularmente por duas trincheiras de madeira a igual distância uma da outra, e em redor das quais se abriam grandes espaços de terreno, que alguns cavaleiros percorriam já, altivos nos seus montarios inquietos e sob as couraças reluzentes, cujos elmos arvoravam fitas e plumas coloridas, as viseiras levantadas exibindo fisionomias rosadas e límpidas, de vigorosa saúde, a que uma barba negra ou loura dava um belo ar viril. Cada um ostentava variadas armas taxiadas de ouro e cravadas de pedraria nos copos e cabos, como espadas, machadas e adagas, e a longa lança de haste de pinheiro segura sob o braço e apoiada ao forte riste da sela, com uma flâmula tremulando à ponta, junto à lâmina de aço fino. Todos traziam nos escudos as divisas amorosas e as insígnias de nobreza, no peito uma larga faixa com as cores da sua dama. Para os lados, ao longo do gradil dos palanques, onde se agitava o populacho, a criadagem dos nobres, com gibões de veludilho e vestes de longas caudas bordadas a fio de ouro, gorros de altas plumas variegadas sobre as longas cabeleiras soltas ou sobre rabichos ornados de laços de fita — rondavam, policialmente, impondo silêncio e ordem aos pequenos tumultos que por acaso surgiam. A peonagem cruzava, em magotes, a pé, entre os cavaleiros, trazendo catanas à cinta e à destra, com as açoiteiras enroladas, os longos rebenques de posta ou de montaria... Seguindo os grupos de cavaleiros, Virgínia, procurava ansiosamente entre eles o broquel de Roberto, mas em vão, porque o paladino auvergnês guardara-se para o último momento. Enquanto ele não chegava percorria com a vista os suntuosos pavilhões das grandes damas presentes, e, como pela primeira vez assistia àquela festa — pois nenhuma mais se celebrara em Montauban depois que a mãe falecera admirava-se da estranha magnificência das vestes e da quantidade extraordinária de joias que cada uma ostentava ao colo, ao pescoço, às orelhas e à cabeça. E pasmava de surpresa ao ver em algumas torres donzelas fidalgas trazerem os seus cavaleiros acorrentados por uma delgada cadeia de prata que se lhes prendia do cinto, como simbolizando o Valor suplantado pela Beleza... Absorvia-se ingenuamente nessa contemplação, quando de repente, trombetas soaram estridulosamente e seis arautos do Castelo vestidos de gibão escarlate, e longos mantos verdes, com um gorro de plumas brancas que tremiam ao vento, irrompera pelos lados da arena, com o espadim alçado e gritando:

— “Cavaleiros está aberto o torneio... Vinde provar a vossa bravura e a vossa nobreza!”

Imediatamente então os paladinos se gruparam, tinindo as armas nos galões dos corcéis, e um bando de vinte outros campeões, arrastando mantos preciosos de púrpura por sobre os faiscantes arneses, assomou lá embaixo, à porta principal da liça, galopando em negros ginetes da Arábia, na direção da arena. À frente deles, Virgínia deparara logo com Roberto de Clermont, que, de longe, fixava-a já risonhamente, pela aberta da viseira. Estes cavaleiros vieram estacar um momento diante do torreão de Henrique, e, feita a devida continência, atiraram-se, por uma das largas portas das trincheiras, para âmbito descoberto onde ia começar o combate e onde os arautos procediam já ao reconhecimento dos cavaleiros. Realizada a “verificação de nobreza”, os arautos, voltados para os pavilhões dos juízes, anunciaram acharem-se presentes sessenta campeões. De aí partiu, então, um sinal de trombeta.

A arena esvaziou-se, ficando apenas dois cavaleiros, um dos quais, dando uma volta ao corcel, foi colocar-se na segunda trincheira, enquanto o outro ocupava a primeira. Os dois guerreiros, guiados pelos arautos, tomaram logo posição de saída, em sentidos opostos, tendo de permeio a primeira trincheira. E cada um no seu posto, os arautos gritaram, primeiro, os seus nomes — Roberto de Clermont, Josselin de Cortenay, depois enumeraram as prescrições do combate, recomendando, por último, aos contendores que os golpes não deviam atingir o corcel, mas o peito e o rosto do cavaleiro. Era uma justa que ia começar. Virgínia, contemplando Roberto, palpitava numa emoção que não podia conter...

Apenas os campeões ficaram a sós, aguardando o “sinal” dos juízes, os espectadores a uma, nobres e plebeus, prorromperam em brados entusiásticos:

— “Glória à flor dos cavaleiros! Glória à flor dos cavaleiros!”

Mas fez-se logo um silêncio, porque os juízes se ergueram, estendendo o braço para a arena, sob o vibrar sonoroso das tubas, que deram três toques seguidos. Ao terceiro os campeões largaram rédeas, em desfilada, viseiras descidas e lanças enristadas, cujas pontas inclinadas para o chão faiscavam, procurando-se sobre a linha da trincheira, em contínuos choques de aço. A moça castelã no alto do torreão, junto ao pai, olhos nos dois guerreiros, mal podia respirar, com o sangue todo no coração, a face pálida de cera... À sexta volta violenta, Roberto de Clermont com a ponta da sua lança jogou o adversário por terra, e de tal forma, que o seu belo corcel árabe vergou-se todo nos jarretes. Os arautos correram a acudir o vencido, enquanto no ar cheio de sol, iluminando toda a liça, estouravam as aclamações em delírio:

— “Salve, honra dos valentes! Salve, honra dos valentes!”

Agora Virgínia de Montauban sorria triunfalmente, fitando orgulhosa a Roberto, que passeava na arena, a viseira descida, os olhos fitos sobre ela, vitorioso feliz no seu arnês reluzente... Mas outras justas e passes singulares de armas seguiram-se, incessantemente, cabendo sempre a vitória ao cavaleiro auvergnês... Pela tarde foi anunciada com estrídulo a luta da lança das damas, que punha fim aos torneios, os sessenta cavaleiros presentes atiraram-se à liça por entre tilintar tumultuoso das armaduras e freios. A cena tornou-se então imponente pela multidão de couraças, escudos e lanças que faiscavam em torvelinho no perímetro das trincheiras. E a lança das damas (uma grande haste de ferro dourado fincada ao centro da arena), em cujo extremo reluzia uma grinalda de prendas — braceletes, anéis, colares e broches de um sem número de pedrarias, colocadas ali pelas mais ricas castelãs presentes, incitava os campeões, que lutavam loucamente, em assaltos extraordinários de lança, para colher lá no alto aquela coroa de joias que oferecia a vitória suprema. Deram-se vinte assaltos em vão, no último dos quais rolaram por terra trinta e seis cavaleiros, que, conforme a regra, ficaram logo fora de combate embora alguns houvessem caído casualmente. No vigésimo primeiro combate, ainda mais quinze campeões rolaram ao chão, dos ginetes. E a última arremetida fora apenas de nove cavaleiros. Parara-se extraordinário esse assalto, pela grande fúria que os guerreiros desenvolviam na conquista do molho de prendas. E a luta prolongava-se, no meio de “passes” terríveis, quando a lança de Roberto, pegando um dos braceletes, arrancou, de golpe a grinalda inteira, das joias, que imediatamente passeou por diante das damas, em profunda continência. Então, juízes e nobres, senhoras e guerreiros como toda multidão, de pé, nas suas frisas, o braço levantado, apontando o vencedor, romperam em aplausos frementes:

— “Honra ao valente, honra ao filho do valente! é o amor das damas e o terror dos cavaleiros!...”

Em seguida, Roberto de Clermont, cercado de damas, juízes, fidalgos e cavaleiros vencidos, no meio da massa popular que o aclamava continuamente, dirigiu-se para o torreão de Henrique, onde, todo curvado e sorrindo, depôs aos pés de Virgínia a lança vitoriosa e a grinalda de prendas. A moça, pálida ainda de emoção, arrancou do seio uma grande palma de ouro e diamantes, que trazia, e que era o prêmio do torneio, e atou-a graciosamente ao escudo de Clermont, ao mesmo tempo que lhe depunha um beijo na fronte, pela aberta da viseira... Após esta cerimônia Roberto de Clermont e todos os cavaleiros e damas seguiram na comitiva de Henrique para o grande banquete que os esperava no Castelo...

Opressa por estas recordações, Virgínia de Montauban deixara a poltrona um instante e entrara a passear pela sala, murmurando intimamente:

— Ah! quanto fora então venturosa! Nessa noite Roberto pedira ao pai a sua mão...

Tinha havido brindes de amizade e de paz entre todos os senhores, cavaleiros e condes presentes... Os emissários da Lorena, depois de assinado o tratado, haviam partilhado com todos dos jogos e danças... Parecia que de ali por diante nenhuma guerra viria mais perturbar os Castelos... Mas logo depois rebentaram as dissensões e discórdias, e o norte se revolvia de novo em sangrentas campanhas... Fora preciso que os Muçulmanos tomassem o Sepulcro de Cristo para que viessem a cessar essas rivalidades terríveis de Reis e Barões... Mas seu pai ali estava agora a morrer, vítima das feridas dos últimos recontros, enquanto por outro lado o seu noivo adorado lá andava na guerra da Terra Santa...

E, pensando sempre em Roberto, soluçava e chorava, no contraste brutal das alegrias passadas com a desolação do presente, que a trazia em amargura e em profundo isolamento.

Mas a luz de ouro da tarde deixava já os vitrais coloridos, enchendo de sombra os campos. Era a hora de ir reiterar aos serviçais e aos pajens que inquirissem os peregrinos e guerreiros que por acaso batessem à noite ao Castelo, se vinham das terras do sul pela estrada de Marselha ou de Roma, e se por aí corria já alguma nova da cruzada de Bouillon. Ansiosa por notícias de Roberto, não se esquecia nunca destas recomendações. Fora por esse meio que viera a saber da estada da cruzada em Roma, três meses depois da partida de Guienne; e assim igualmente soubera da sua passagem na Dalmácia, onde fizera junção com a gente de Godofredo e de Balduíno de Flandres. De aí por diante só havia notícias vagas e incertas da cruzada que, segundo voz geral, andava errante pela Grécia, onde o Imperador Aleixo, mentindo ao compromisso que tomara anteriormente para com os chefes cristãos, não só negava-lhes, agora os menores recursos como atacava muitas de suas colunas, uma das quais — a de Hugo, conde de Vermandois — chegara a ser derrotada e seu general prisioneiro. As outras forças viam-se a braços com a fome e assolavam por isso com saques contínuos as populações gregas... Todas estas notícias prostravam-na em maiores dolorimentos. Mas tinha fé no Céu, que tudo isso passaria e que os guerreiros católicos chegariam por fim a Jerusalém...

Apenas dera aquelas ordens, fechara-se na sua câmara, e, genuflexa diante do altar cheio de imagens, alumiado pela fraca claridade da lâmpada, rezava a Deus com fervor, pedindo pelo seu paladino que, nesse instante, talvez, triste sob a noite da Hélade, pensava nela e orava à porta da sua tenda...


CAPÍTULO 3

Quatro anos decorreram sem que Virgínia tivesse uma notícia mais de Clermont, mas a sua paixão não esmorecia um momento, na esperança íntima que tinha de tornar a vê-lo e beijai-o como no dia feliz do torneio. E, fechada no torreão, como sempre, só entregue às suas cismas, deixava os dias passarem, certa de que a sua felicidade estava nas mãos de Deus, que a recompensaria de todos os sofrimentos, unindo-a um dia a Roberto, o paladino adorado, que lá andava a defender o seu Túmulo, pelas terras do Oriente.

Por esse tempo, no entanto, Guilherme de Carbonel, senhor de Canizi — um dos cavaleiros vencidos no torneio de Monclar — entrara a frequentar o Castelo, onde aparecia todas as semanas, a visitar Henrique, que, inutilizado de todo pelos ferimentos sofridos na batalha de Chalus, vivia agora enclausurado — em sua câmara, onde recebia os cavaleiros mais íntimos. A moça castelã, que andava alheada de tudo e só votada ao seu amor, ignorava semelhantes visitas, e, uma manhã em que voltava da missa na capela de Santa Agueda, ficara bastante surpresa de encontrar o fidalgo, que, guiado por um dos pajens, subia a escada dos aposentos do pai. O conde Guilherme, apenas a vira, curvara-se em profunda saudação, lançando-lhe um vago sorriso. Impressionada com a presença do fidalgo no Castelo, mal ele se retirara correu à câmara de Henrique, a indagar do que havia. O pai, abraçando-a e beijando-a, pediu-lhe que se sentasse a seu lado, e falando-lhe de Canizi disse-lhe que sossegasse, porque o conde era um leal cavaleiro e o melhor dos seus amigos. Havia já três meses que frequentava o Castelo, interessando-se pelo seu estado e honrando-o com suas visitas. Era tão nobre e tão digno que, naquela manhã justamente, apenas recebera a notícia da tomada de Jerusalém, lha viera transmitir...

Ao ouvir o nome de Jerusalém, Virgínia empalideceu, e, sem saber porque, começou a sentir uma tristeza envolver-lhe coração. E, ansiosa e palpitante, ouvia sôfrega as palavras do pai que, repetindo o que lhe narrara Guilherme, contava-lhe assalto à cidade divina.

As forças cruzadas, depois de errarem dispersas quatro anos pela Ásia Menor, onde tinham tomado cidades e reinos, à custa de sacrifícios e lutas tremendas, sempre a braços com os numerosos exércitos muçulmanos e o cólera, que dizimava os cristãos às centenas — puseram por fim cerco à Antioquia, e tomada a capital da Síria, entraram a refazer-se de provisões e recursos para a jornada de Jerusalém. O príncipe Bohemundo, porém, aclamado soberano do reino, levado pelas fraquezas e gozos em que se absorvera, abandonou a expedição e começou a desgostar os cruzados que se dispersaram logo em várias direções recolhendo-se aos pequenos principados vizinhos, onde se haviam entronado igualmente, mentindo a seus juramentos, muitos outros cavaleiros, como Balduíno de Flandres, Hainaut, Vermandois e Conde de Gray. Mas Tancredo, Raymundo de Tolosa e Roberto de Normandia, fiéis à sua missão, saíram em pouco a reunir os companheiros, e, juntando-se à gente de Godofredo, partiram por Beritho, Tiro e Sidon em demanda de Jerusalém. Em caminho tiveram de sustentar combates terríveis contra os Turcos, além da luta contínua com a peste, que os não deixava um momento; de sorte que, ao chegarem às colinas de Emaús, de onde se avistava Sião, as falanges que tinham sido organizadas com duzentos e cinquenta mil homens estavam reduzidas à quinta parte apenas. Os valentes guerreiros não desanimavam, no entanto, e descendo logo para o vale tomaram Belém, à mesma hora em que Cristo ali nascia, havia mil e noventa e nove anos! Isto os entusiasmou e animou de tal modo que, ao outro dia, foram plantar suas tendas em torno a Jerusalém. E, imediatamente, meteram mãos às grandes obras do cerco, pois era impossível tomar de pronto a cidade, que o emir Ifticar defendia, em nome do califa fatimista do Egito, com sessenta mil guerreiros. Levaram-se então dois meses na construção de trincheiras e minas, findas as quais determinou-se o assalto geral às muralhas. No dia marcado para a ação todos os chefes com as respectivas falanges organizaram uma procissão que, ao primeiro clarão da alvorada, rompeu em marcha dando volta a Sião, ao som de hinos e cânticos. Nessa desfilada piedosa as forças visitaram todos os lugares memoráveis e sagrados, situados ao pé da Cidade Santa, como o Jardim das Oliveiras, o Túmulo da Virgem e o Horto de Gethesemani... Depois as hostes foram colocadas, por corpos, à frente de cada porta e ao sopé de cada torre, enquanto grupos compactos de besteiros e outros, do alto das grossas trincheiras, preparavam-se para arremessar sobre as ameias abertas as suas setas e dardos. Já a esse tempo também, em toda a linha das muralhas, lá em cima, o inimigo esfervilhava, numa floresta de arcos e lanças, sobre as quais reluzia o Crescente. A luta ia começar, formidanda... De repente as trombetas soaram, nas fileiras cruzadas, dando o sinal rude do assalto. E logo todos se arremessaram às muralhas, numa tilintada fina de aço e num tropel estuante... Roberto de Clermont, que atacara a Porta de Jaffá defendida por um alto torreão ocupando a área da antiga torre Hípica, fora o primeiro a escalar as ameias, plantando nelas, antes de todos os outros, o estandarte de Cristo. Mas, ao chegar com a coluna vitoriosa à passagem dos muros de Acra, envolveram-no totalmente os pelotões de Ifticar, que aí acudia em pessoa; e, só e único com os seus bravos no fervor do torvelinho — porque os demais chefes cristãos não tinham ainda penetrado à cidade para o socorrerem de pronto — caiu por terra sem vida, varado por muitas lanças... E tudo estaria perdido para a Cristandade, se Tancredo, Godofredo e Raimundo, aproveitando-se da ausência do emir nos outros pontos dos muros, não houvessem penetrado por eles ao som dos vivas triunfais das falanges:

— “Cristo vive, Cristo reina, Cristo manda!...”

Ao ouvir a narração da morte do noivo, Virgínia começara a tremer como invadida de convulsões tetânicas, e, os lábios desbotados, a face lívida de cera, abraçou-se com o pai, sem poder murmurar palavra, na mudez de uma angústia sem nome. E só instantes depois desatou a chorar soluçantemente, como uma criança.

Henrique de Montauban procurava consolá-la carinhosamente, afagando-a nos seus braços, como tantas vezes o fizera outrora, em longínquas noites volvidas de isolamento e saudade, quando a tomava no berço para acalentá-la ao som de berceuses suaves, berceuses que cantava sufocado, por vê-la apenas nascida e já órfã, pois a mãe morrera ao dar-lhe a luz, por uma madrugada de angústias... E, vendo-a agora tão prostrada, sentia um verdadeiro embaraço para lhe comunicar sem abalo as intenções de Guilherme, que nessa mesma manhã lhe pedira a sua mão...

O seu amor paternal, no receio de agravar-lhe o sentimento pela morte de Roberto, obrigava-o a suspender-se quando ia dizer-lhe tudo, porque a sua dor de donzela amantíssima explodira de tal modo sob a terrível notícia, que ele mesmo, que era forte, tivera uma comoção. Desejava poder poupar-lhe outras lágrimas. Mas estava velho e doente, com a morte a rondar-lhe à cabeça, e não queria fechar os olhos à vida, deixando-a em nova orfandade, mas amparada docemente por afetos e carinhos. Depois aquele “pedido” não feria a memória do herói, porque o “compromisso” estava findo com o seu desaparecimento do mundo. E não julgava houvesse nisso “rompimento à fé jurada”, pois o Altíssimo bem sabia quais os motivos legítimos que o levavam a acolher sorridente o Conde de Canizi. E, animado por estas sugestões sutilíssimas, pôs-se a falar a Virgínia, que se acalmara um pouco mais, mas que pranteava ainda:

— É doloroso para nós este golpe, minha filha. Mas sossegai... Quero-vos dizer agora uma coisa que se prende a vossa vida... Guilherme de Carbonel, meu amigo, vos adora desde muito e quer casar-se convosco para vos fazer feliz... Roberto, a quem fostes prometida e jurastes vosso amor, lá morreu na Palestina, e eu me sinto extinguir dia a dia... Uma nova orfandade ameaça-vos ainda... Fazei, portanto, um sacrifício ao futuro e aceitai por esposo a Guilherme... Eu não quero morrer, minha filha, sem vos ver para sempre amparada... Dizei-me pois que aceitais... dizei-me, querida filha!

A moça castelã, outra vez pálida como a morte, abraçou-se ao pescoço do pai, tomada de um pranto tão fundo que parecia não dever mais cessar. Por fim, e sob as meiguices continuas do velho, que também agora chorava, murmurou debilmente: — Não, santo pai, por quem sois!... Roberto de Clermont não morreu, pois que nenhum cavaleiro ou peregrino cruzado bateu ainda ao Castelo a narrar essa desgraça... Deus e a Virgem são por nós, porque muito os adoramos, e não hão de permitir que recaia sobre nossas cabeças de servos fiéis tamanha fatalidade... Eu creio que esta notícia misteriosa há de se iluminar dentro em breve à luz da Providência Divina... Em tudo isto, meu pai, há talvez a perversão de algum gênio maligno...

Exaltou-se de repente, soltando-se dos braços de Henrique, e, de pé diante dele, as mãos erguidas para o teto onde seus olhos fixavam num reluzir desvairado, como se parassem no céu, entrou a falar loucamente:

— Roberto, morto?... Não, não era possível!... Deus velava pela vida dele e por ela...

Sua mãe, que lá estava no Paraíso ao lado de Maria, a santa mãe de Cristo, não podia permitir aquele mal... O conde Guilherme era um perjuro, e um falso... Sim! um perjuro e um falso, porque, vencido por Clermont no torneio e em diversos encontros, traía-o agora na ausência... covarde!... Ser esposa desse conde, um vilão!... Nunca!... Mil vezes a morte!... Mil vezes a morte, a maldição, a tortura!...

E caiu sem sentidos, e como morta, sobre o vasto assoalho envernizado da câmara ducal...

Henrique de Montauban, que não se podia mover, na alta poltrona de couro lavrado, onde a paralisia das pernas o mantinha desde muito pregado, lançara a mão à sineta, chamando as serviçais de Virgínia, que acudiram logo a correr, assustadas. E todas, com dedicação e cuidado, levaram a moça para os seus aposentos, onde, momentos depois, entrava o velho cirurgião do Castelo, a ministrar cordiais. Algumas horas passadas, Virgínia, voltava a si, e, muito fraca e abatida, rompia a chorar mansamente, só entregue à sua dor, num alheamento completo a tudo quanto a cercava. E assim permaneceu uma semana, finda a qual deixou o leito, levando os dias e as noites, ora a passear longamente pela carreara, tendo entre as mãos o atinei de ametista que lhe dera Roberto, e que continuamente beijava e beijava; ora, de joelhos e em rezas, aos pés do grande oratório dourado, sobre cujo altar ardiam velas, iluminando perenemente as Imagens... Nunca mais dera uma palavra às criadas, nem nunca mais se deitara, devotada estranhamente àquelas preocupações subjetivas — o belo rosto muito lívido e os olhos cheios sempre de uma luz desvairada...

Uma noite, porém, de lua plena, já à horas avançadas, um vago clangor de buzinas guerreiras rebentou nostalgicamente na estrada, para os lados de Ceré. Era o resto da coluna do Auvergne, que recolhia da cruzada. Dos vinte mil homens que levara, volviam apenas dois mil, numa marcha desolada em busca dos campos natais. No seu estandarte alvejante coberto do pó das batalhas, a grande cruz escarlate sumia-se, desbotada pelo tempo e oculta por um negro véu de crepe, pendendo da longa haste. Era o sinal lutuoso da morte do Chefe querido, que lá ficara para sempre nas muralhas de Sião... A força caminhava abatida, ao vibrar triste das trompas e à luz fumarenta e lúgubre dos archotes flamejantes...

Numa volta da estrada, entrando as muralhas do Feudo, as tubas soaram mais alto, tão alto que a moça castelã as ouvia da sua câmara, e, com um fulgor assombrado no olhar, atirou-se para o torreão, atravessando, num voo, os corredores e salas. Ao chegar à janela ogival abriu-a de um ímpeto, e de parando com a coluna que subia, começou a sorrir docemente os olhos muito abertos e fixos nos cavaleiros da frente, entre os quais julgava já descobrir Roberto no seu corcel de batalha... Mas a marcha avançava, avançava, e o perfil de cada guerreiro surgia nitidamente a seus olhos, ao clarão rubro dos fachos...

E Clermont?... Procurava-o ansiosamente nas linhas, o peito, tremendo já num ensoluçamento de lágrimas... De repente... bem defronte à janela ogival, a alta bandeira apareceu, no seu crepe funerário... Fixou-a, estarrecida, e, apunhalada agora em pleno coração pela certeza iniludível da morte do noivo, jogou-se, aos gritos pelas salas, numa rajada de loucura e de dor, como uma Visão sofredora de lenda...

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