11/28/2017

A primeira formiga (Conto), de Wenceslau de Moraes


A primeira formiga
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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À parte esta dedicatória especial, é às formigas e aos sábios — Deus não permita que elas, ou que eles, tomem a mal o paralelo — que eu ofereço as revelações que vão seguir-se, nas quais se explica, após longos preâmbulos, como é que a primeira formiga veio ao mundo.
Quando na China, pela era do imperador Tai-Sun, as terras andavam divididas pelas mãos de muitos monarcas irrequietos, envolvidos em contínuas batalhas e baralhas, deu-se um caso no céu, digno de particular ensinamento. Acontecia que uma certa deusa do Olimpo — Lei-San era o seu nome — nunca ia dar o seu (passeio pelas nuvens, imagino) sem se esmerar em demorados arrebiques, em meticulosas pinturas de cútis, das sobrancelhas e dos lábios. Pieguices do sexo, desculpáveis, e até de certo modo meritórias; mas o caso motivou, certo dia, um risinho malicioso da sua serva mais querida, e ainda por cima este comento pouco respeitoso: — “A deusa tem pelos modos algum defeito no seu rosto, e cuida de escondê-lo à força de cosméticos...” — Vão lá chasquear impunemente dos encantos duma dama! e quando ela for divina... É certo que tão cheia de cólera ficou a divindade, que vestiu a delinquente duma pele diabo que encontrou a jeito, pele horrível, cara azul, ruiva a guedelha, dois dentes curvos surdindo da boca para fora, e mãos e pés disformes; e assim, nesse bonito estado, a escorraçou do céu, aos beliscões, e a enviou ao mundo em expiação. Chamava-se Tchong-Mou-In, a penitente.
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Tai-Sun, empenhado em pelejas, e mortificado por inúmeras derrotas, teve uma noite um sonho radioso, difícil de explicar. Consultado sobre o caso um letrado favorito, anão por sinal e muito feio, mas um poço de ciência, ele disse ao soberano, após magnos processos de magia, que o sonho revelava que os deuses lhe haviam destinado certa dama por esposa, forte de gênio e habilíssima na guerra, a quem mais tarde se deveria a salvação do estado.
O anão dispunha-se a prosseguir, depois de curta pausa; mas não quis mais ouvir o imperador; e ei-lo cavalgando o ginete dos cortejos, em pompas de comitiva festival, dirigindo-se para onde vivia a sua bela, conforme as indicações do anãozinho. Atravessa povoados, galga montanhas, desce vales; voa, não corre, sua majestade; voa nas asas da esperança, pula-lhe o coração em mil anelos; e assim foi dar com Tchong-Mou-In.
Imagina-se a cena. Não há palavras que descrevam o desapontamento do monarca. Trêmulo de indignação, rompeu logo em iras e em blasfêmias; pela mente, passaram-lhe de súbito processos de torturas a exercer; e dum gesto esporeou a alimária, no intuito de regressar ao seu palácio. Ah! mas o soberano não contava que a dama, que a princípio o recebera com doces humildades de etiqueta, que a dama, expulsa embora do céu e do convívio dos seus deuses, ainda deles auferia benevolentes proteções. A dama, num esgar provocante da sua face azul, arreganhando os dentes e estendendo solene a mão papuda, conteve dum aceno sugestivo a fúria do cavalo, e vomitou ao cavalheiro, severos vaticínios. Gritou-lhe que havia de casar com ela, se não quisesse ali ficar eternamente quedo; gritou-lhe que havia de recebê-la como imperatriz, e que ao seu braço de mulher, astuto e vigoroso todavia, teria de confiar altas empresas. Enfim, para encurtar razões, e apressar o fim da história, direi que o imperador desfez-se em cortesias e desculpas, venceu-lhe o asco e o medo, e tudo prometeu. Não tardou que aquele monstro feminino lhe entrasse pela casa, rude e plebeu, endiabrado, dispensando cerimônias, transportando ela própria às costas o enxoval — dois cabazes, uma tesoira, um espelho, um pente, uma vassoura, uma bacia de lavar o rosto, — utensílios que, desde então até hoje, como que ficaram consagrados, simbolizando do lar doméstico o núcleo indispensável.
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Três meses, consta, esteve o imperador alheio à convivência da esposa, prolongando-lhe por esta forma uma castidade fastidiosa, com que ela provavelmente, não contava. Paciência. Por vezes, na fria intimidade dos salões, procurou desprestigiá-la aos olhos dos vassalos. Diz-se que um dia, reunidas a esposa e a concubina favorita, uma aposta se fez, sobre qual das duas, em escrita, mais hábil se mostrava; e para isto se combinou contar quantos caracteres eram elas capazes de escrever no tempo necessário para arder de um pivete perfumado, que alguém foi colocar sobre uma urna próxima. Do lado da favorita, cuja cultura literária é primorosa, estão o imperador (o basbaque!) e dois validos; do lado da soberana, apostam três letrados, e um deles é o anão. Ei-la, a amante, interessada vivamente no certame, toda olhos, toda atenção, toda adoráveis frenesis dos seus belos dedinhos cor de leite, que empunham o fino pincel, e correm febrilmente sobre o papel que lhe trouxeram. A soberana, o mostrengo (perdoe-se-me o qualificativo que me ocorre), face azul pousada nas manápulas, dedos disformes enfiando pela trunfa ruiva, olho impassível e matreiro, relanceia, aparvalhada e imóvel, a cena, e os espectadores. Sobressaltam-se os letrados, que adivinham, numa eminente surriada, o desprestígio próprio no conceito do monarca. — “Senhora, segredam, por piedade, decida-se a escrever...” — A bruta não os escuta. Repetem-se, multiplicam-se as instâncias; até que finalmente, atendendo a tantas súplicas, diz ela: — “Vão buscar aos meus aposentos um pincel.” — Voam escudeiros, volvem breve: — “Não se encontra, Senhora!” — Ela indica que está junto dum armário. Os vassalos replicam: — “Perdão, não está; o que está é uma vassoura...” — Então berra a soberana: — “Pois é isso mesmo, seus patetas!” — E tomando da vassoura, e ensopando-a numa mixórdia de tinta, de que mandou encher a bacia que trouxera no enxoval, isto quando o pivete ia chegando já ao termo, com a vassoura lambuzou um enorme papel, dum gesto apenas; e por milagre, — que só assim se explica tal portento — apareceram nítidos, sublimes, mil e mil caracteres da mais adorável forma caligráfica.
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Na guerra, dirigindo ela mesma, em pessoa, a turba dos guerreiros, foi colhendo vitórias e engrandecendo os seus domínios. Nos ardis, um primor.
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Uma vez, convidados, imperatriz e imperador, para um banquete de monarcas, com os quais andavam de guerreia porfiosa, um dos nobres apresentou aos convivas um enorme macaco que possuía, mono astuto nos seus modos de selvagem, e exímio num jogo então em moda, semelhante ao gamão dos nossos tempos. — “Senhora, ides jogar três partidas com este mono; se a última ganhardes, são vossas, nossas terras; se a perderdes... percebeis-me?” — Trava-se o jogo em que a imperatriz não era forte, pouco afeita a prendas de salão, e sendo notório que nos céus, onde passara a juventude, o jogo é proibido. Coragem!... Primeira partida: ganha o mono. Segunda partida: ganha o mono. Tchong Mou-In desfalece em íntimas angústias, julga-se perdida, quando então se lembra de invocar os deuses. A sua divina ama, que nunca a abandonara, despede do céu um aviso visível só para ela: — Toma este fruto; esconde-o na manga da cabaia, de modo que apenas o macaco dê fé dele, e joga resoluta. — Terceira partida: o mono dando vista do acepipe, banana ou coisa parecida, estremece de desejos; o traseiro, onde parece residir a alma dos macacos, pula-lhe em sobressaltos, em anelos, sobre o assento da cadeira; e com a dentuça arreganhada, o olho em brasa, em arco as espessas sobrancelhas, o bestunto por certo desvairado, balbucia gritinhos repetidos — eh, eh! eh, eh! — que irritam os convivas. A mãozita felpuda ainda vai mexendo as pedras, por hábito, por dever, mas sem arte, sem intuito; e a razão foge-lhe, abandona-o — tão imperativa é a lambarice nestes figurões da fauna cômica! — E perde a partida decisiva!
Um parêntesis na história. Dizia-me há dias um companheiro de desterro, dos raros com quem logro palestrar: — Ora veja você quantos macacos há por este mundo, de gravata, e casaca, e rosa na carcela, quando não é uma comenda, astutos no gamão e noutras prendas várias, quase atingindo as alturas da audácia e do triunfo; num momento fatal, uma banana qualquer, mostrada a jeito, desnorteai-os, alucina-os, aniquila-os... E que, por mais que façam, são macacos, embora a cauda se não veja, decerto oculta nas ceroulas, e ninguém há que possa purgá-los, expurgá-los, do sangue dos avós...
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Continuo.
Uma das mais belas façanhas que ilustram a gloriosa mulher, se mulher é, de quem me ocupo, é a seguinte. Travava-se então renhida a luta pelas armas, entre vários soberanos, já com enfado de vencedores e de vencidos. Tai-Sun ia levando a melhor nas investidas. Eis que os reis desbaratados, unidos em conluio, julgam ir pôr termo a tão irritante situação, e muito em seu proveito, propondo ao imperador um curioso problema. — Não nos façais a guerra. Aqui tendes uma pérola, arrancada dum anel; notai que tem dois furos esta pérola, comunicando entre si interiormente por um labirinto de nove canaizinhos; se conseguis apresentá-la enfiada numa linha, juramos-vos a paz e a entrega por inteiro de tudo que hoje é nosso.
Irra! Em que apuros se viu o bom soberano em caso tão difícil!... Os conselheiros ficaram-se calados, macambúzios, e nada aconselharam. Foi então impingindo esta questão à esposa, ele, que a não beijava, nem lhe queria, mas que em assuntos escabrosos só nela tinha fé. Tchong-Mou-In recolhe-se, implora aos deuses. A sua divina ama envia-lhe então do céu uma formiga, a primeira formiga que veio a este mundo; e manda a verdade que se diga que essa formiga pré-histórica era um nadinha diferente das formigas contemporâneas, menos esbelta nas formas, mais bojuda. Tchong-Mou-In compreende o precioso auxílio: ata uma linha a meio corpo do bichinho, leva-o assim junto da pérola, junto dum dos seus furos, por onde se vê forçado a enfiar, não tardando que surda pelo outro, arrastando a competente linha atrás de si. É a glória!...
E não reparam hoje na delicadeza da formiga, leve a cintura, como a cintura duma dama espartilhada? Dantes não era assim. Consigna-se o fato como indicando ainda às gerações presentes uma maravilhosa herança atávica, a impressão do nó com que a linha se prendia e apertava a primeira formiga, a formiga lendária, a mãe de todas as formigas que hoje passeiam sobre a terra.
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Nada mais sobre o inseto. Poucas palavras apenas pelo que respeita à soberana. Lei-San, a sua divina protetora, perdoou-lhe finalmente o passado sorriso de motejo, que valia uma injúria; despiu-a da pele monstruosa que lhe dera, por expiação do seu pecado, restituiu-lhe a peregrina beleza que lhe era própria... O imperador, antes que a consorte volvesse aos seus labores divinos, pode vê-la, e por longos anos, no completo esplendor dos seus enlevos. O imperador, que já lhe tributava incondicional veneração, graças aos seus prodígios, que tanta ventura lhe trouxeram, e prosperidade ao império, pode então também amá-la, amá-la apaixonadamente, embevecido em tanta graça, em tanta formosura. Imagine quem quiser como àqueles amorosos as horas iriam correndo encantadoras, na serenidade misteriosa do palácio, cingido por muralhas de mármore, e rodeado de jardins, e no afã de festejarem aquela lua-de-mel, tardia embora, que lhes aparecia no horizonte!...

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