11/04/2017

A volta ao lar (Conto), de Virgílio Várzea


A volta ao lar

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I 
A Clarinda tinha saído com o filho, um rapazinho de dez anos para o denso cafeeiral que se estendia à direita da habitação, ao longo do caminho, em um terreno barrancoso e alto. Levava uma grande cuia na mão para apanhar os primeiros bagos maduros, cobrindo aqui e ali de grossas pintas de sangue as hastes delgadas dos ramos, vergados ao peso da frutificação. Com um lenço vermelho à cabeça, uma saia de chita azul desbotada e um corpete de cassa branca, os braços claros e rosados saindo, nus e roliços, dos regaços das mangas e ainda frescos e úmidos d'água da fonte onde estivera lavando, caminhava com elegância matuta, balançando os túrgidos quadris femininos pela fita serpenteante do atalho, parando às vezes um instante, entre irritada e carinhosa, para chamar o pequeno que a seguia vagaroso, jogando os seixos polidos do tento que lhe rolavam de vez em quando dos dedos, perdendo-se entre os rinchões:

— Anda daí, Manuel! Anda depressa, tanso!

Repetindo amiudadamente estes chamados à criança recalcitrante, imergiu por fim sob as umbrosas absides dos ramos dos cafeeiros amigos oferecendo-se-lhe, carregados de grãos preciosos, em maré alta de abundância. No chão juncado de folhas secas, estalando sob as pisadas de ambos, corria uma multidão de gemas rútilas espalhadas pela luz escaldante através dos interstícios das frondes. Um sopro vago de norte passava, tirando um som amoroso à verdura. Em torno, fora, na mornidão plena de ar fulguroso, chiava um zumbir sonolento de vareja e besouro, como um longínquo esfrolar de vagas na calmaria de um golfo.

Depois de vacilar um momento entre os finos troncos erguidos, esgalhados e nodosos, a passear os lindos olhos melancólicos pela imensa abóbada verde, de onde pendia fulgindo o fruto do cafeeiro em pequeninos racimos rubros, entrou a fazer a colheita pelas ramagens tufadas da extrema, no ângulo que beirava o caminho. Aí o barranco alteava-se ainda mais que para os lados da casa, volteando num boleio de colina e entestando com a vastidão de um milharal desdobrando-se em esmeraldinas espadanas recurvas para oeste e para o fundo até os socalcos erguidos de uma serra próxima, recortada sobre o Azul em píncaros de rochas tristes. Pela renda da folhagem divisava-se o largo e branco pavimento da estrada coleando na planura para as bandas do Inferninho. Em suas voltas bem amplas, nessa parte do arraial, nem uma pessoa se via sob a alegria do sol cobrindo tudo de brilhos. Apenas, de longe em longe, nos terreiros elevados, uma ou outra casinha humilde pardejava pelas paredes barreadas ou branquejava intensamente na sua caiação muito viva. Nem mesmo cavalos soltos, tão frequentes em pastar com a soga de rasto pelos gramados das cercas, cortava a faixa arenosa do alvacento caminho. Nem um cão a latir em volta das hortas em perseguição das galinhas, ou atacando os novilhos que saltam as sebes dos pastos para invadirem as roças de cana, de mandioca, ou de milho. Nada! Apenas a solidão e o adormecimento geral de sesta campestre em que o calor espasma a vida. Repousavam os roceiros e animais amigos, à sombra de árvores ou colmos, ao zumbir vago dos insetos e ao siflar leve do vento através das ramarias... Só ela e o filho — pobres deles! — eram dos poucos em trabalho, àquela hora de cáustica, nesse arraial humilde.

Desviando os olhos da estrada erma, a Clarinda suspirou, como num desalento e tristeza infinita — pois assim vivia desde que o noivo partira e tivera aquele filho — e, dando a cuia ao menino, ergueu os braços torneados e pôs-se a captar com destreza as hastes finas dos ramos, despencando os bagos tintos. O rapazinho, sempre buliçoso e absorvido por tudo que o cercava na jovial irrequietação das crianças, não parava um só instante, ora a perseguir os insetos saltando nas folhas, ora a brincar com os pauzinhos ou com as pedrinhas do tento, tombando não raro a vasilha e derramando o café que se alastrava no solo sobre o húmus ressequido.

— Quieto aí, Manuel! senão de repente te “assisto”! gritava então a Clarinda.

E voltando logo à colheita, avolumando-se pouco a pouco na cuia, embalava as dores íntimas, entoando com a sua voz fresca e moça, suavemente expressiva, uma dessas adoráveis cantigas campestres que são tão comuns nos sítios. E assim, seguidamente cantando, desenvolvia a tarefa. Às vezes porém suspendia-se para repreender meigamente a criança, que se divertia agora a trincar os bagos rubros sugando-lhes gulosamente o néctar. Mas isso era só um instante, porque o canto voltava-lhe logo à garganta sonora em toadilhas seguidas. As quadras mais amorosas e tristes, de uma vaga espiritualidade e paixão, as repetia ela num ritmo desolado e dolente, tão humano e tão casado à sua mágoa que, em certos momentos, se quedava sufocada, os olhos arrasados de pranto, comprimindo o colo cheio para abafar os suspiros. Depois, mais aliviada, soltava de novo a cantiga:

Eu tinha o teu nome escrito
Dentro do meu coração,
Mas tu feriste a minha alma
Com a mais negra ingratidão!

E continuava a apanhar o café às mancheias, arremessando-o à cuia que o menino segurava nos bracinhos tenros.

II 
A Clarinda vivia só com o filho havia dez anos porque os pais a tinham escorraçado cruelmente do lar, apenas viera ao mundo esse fruto dos seus amores. Era pai do menino um rapaz roceiro, noivo dela, o qual pela grande intimidade na casa chegara àquela falta que pensava poder reparar antes de qualquer desfecho desonroso, quando rebentou a guerra com o Paraguai. Veio então o recrutamento, espalhando-se pelos sítios num alarma geral e levando toda a mocidade matuta que não queria pegar em armas para a defesa da Pátria, a homiziar-se pelo interior ou a emigrar furtivamente para o estrangeiro em navios do comércio. As freguesias e arraiais eram percorridos inesperadamente por pelotões de permanentes a cavalo, que arrebanhavam, a torto e a direito, os rapazes. Talando os campos e culturas, guiados por delatores de toda a ordem, enxameando ali como em toda a parte em tais ocasiões, os capitães recrutadores e seus soldados faziam uma limpa na juventude dourada do Inferninho e localidades próximas. Uma noite em que esse pega-pega selvagem atingira o extremo, o Luís Gandra — tal era o nome do noivo da Clarinda — que ainda não pudera casar-se, fora apanhado com um bando de camaradas no sertão das Tijuquinhas. Transportado com os outros para o litoral e embarcado numa lancha para o Desterro, onde devia jurar bandeira, ele, um nadador de força, planeara desde logo escapar-se a nado para qualquer ponto livre da costa, ou para bordo de um dos navios estrangeiros ancorados no porto. Efetivamente, pela madrugada, quando a embarcação largou naquele rumo com todos os recrutados sob a guarda de uma escolta, ele, iludindo a vigilância das praças, jogou-se de repente ao mar, na altura dos Ratones. A lancha, muito velejada, não pôde voltar prontamente atrás, e quando o conseguiu já não o encontrou, porque a densa escuridão da noite de inverno desde logo o sumiu sobre as águas...

No outro dia o rapaz era acolhido a bordo de um navio baleeiro que saía por aquela semana para as Terras Antárticas. Na véspera da partida escrevera à Clarinda, narrando-lhe tudo que se passara. Terminava a carta pedindo-lhe que tivesse fé em Deus, e rezasse por ele, que em breve voltaria. A moça, ao ler a missiva, ficou como louca e desandou a chorar, compreendendo bem toda a sua desgraça. E no dia seguinte, um domingo, o navio ergueu velas ao vento, e disse adeus à terra fazendo-se em rumo do mar... Tempos depois a criança nascia e a pobre mãe, expulsa do lar paterno, começava com o filho uma vida de amarguras. Conheceu então todos os abandonos do mundo, faltando-lhe até inteiramente a própria compassividade — sempre em geral tão viva, amparadora e solícita na vida campesina — do arraial onde nascera e onde agora todos a condenavam. Desamparada e perdida, entrou a vagar de lar em lar, com o filhinho quase a morrer de fome nos braços, a mendigar trabalho e abrigo. Por fim, foi parar ao Alto Biguaçu, onde encontrou ocupação, e a ela se dedicou noite e dia, mantendo-se, com a mais heroica honestidade, sempre na incessante esperança de que o noivo volveria, mais tarde ou mais cedo, para a fazer feliz e ao filho. Em Biguaçu, passados oito anos, conseguiu comprar, com escassas mas abençoadas economias, uma casinha e umas terras... Mas o Luís não voltava e a ausência a prolongar-se interminavelmente, sem uma só notícia, alegre ou triste, que lhe alentasse a alma aflita! Ali, como no Inferninho e nas Tijuquinhas, todo o mundo já o fazia morto, sepultado para sempre nas geleiras austrais: e ela, por vezes, nos seus momentos de desânimo, o acreditava igualmente... Mas isso era só por vezes, porque a Esperança, incomparável consoladora que não abandona o peito dos simples senão à derradeira agonia, afugentava-lhe para logo essa ideia sinistra, segredando-lhe ao espírito com uma voz misteriosa e divina: “Não, Clarinda, ele há de voltar! Deus jamais desamparou a virtude que sofre por injustiça dos homens...” Ela então, refeita de ânimo novamente, e numa vaga alegria, abraçando e beijando o filho com extremos, como se nele revisse o noivo adorado, com quem se parecia o menino, esperava, muito crente, confiada no Destino...

III 
Só em pleno mar, quando a terra começou a esbater-se à popa, numa linha longínqua e saudosa, é que o Luís Gandra entrou a experimentar as primeiras puadas da nostalgia. Num recanto de proa, sob as velas claras de lona oscilando numa cantilena rangida, os braços apoiados à borda, olhos banhados de pranto, não cessava de fitar um instante a névoa azul do horizonte, onde se ocultava pouco e pouco a sua ilha querida. Quedou-se aí longas horas, revendo pela imaginação, em largos e abstratos quadros evocativos, toda a sua vida passada, desde as descuidosas correrias da infância até as aventurosas andadas de amoroso noctívago, através os caminhos e campos do seu arraial, atrás de um par de olhos amados, encantadores, benditos. E eram esses olhos, magia de um rosto inefável de moça, com uma luz que até os astros invejariam, o que mais o flagelava, torturava e pungia na precipitação daquele triste apartamento e na ânsia esmagadora de uma saudade infinita. Mas a noite caíra, negra e desolada, cortada de um vento frio. Recolheu-se então ao rancho, onde por fim adormeceu, em sonhos em que só via a Clarinda.

Uma semana volvida, na aérea alacridade de uma bonançosa alvorada marítima, sorria já resignado, meditando no futuro e na volta ao sítio natal, a cumprir a sua promessa à Amada e construir o seu ninho. E, afazendo-se às manobras, começou a distinguir-se entre toda a companha. O capitão do baleeiro, um velho marinheiro yankee, percebendo nele uma decidida vocação para o mar, chamou-o em breve para a ré, iniciando-o na arte náutica e promovendo-o a praticante de piloto. Esta simpatia do master subiu à verdadeira dedicação e estima quando, já nos mares antárticos, o rapaz revelou extraordinárias qualidades de intrepidez, sangue-frio e perícia na perseguição e arpoagem dos grandes cetáceos e nas difíceis e trabalhosas manobras para evitar as banquisas.

Onze anos rolou nesses mares na veleira White Wings, onde ocupava desde muito o posto de segundo oficial, quando a barca teve de recolher aos Estados Unidos. Durante esse tempo, porém, nem um só dia esquecera a Clarinda e, muitas vezes, nos longos invernos austrais, quando o navio se fazia para o norte e vinha invernar junto às Shetlands ou nas costas das Malvinas, escrevia-lhe extensas cartas saudosas, em que lhe narrava a sua vida e as economias que fazia para vir gozar com ela no seu arraial querido. Mas essas cartas, que eram entregues aos capitães ou pilotos dos palhabotes que iam àquelas paragens tomar o carregamento da barca para o conduzir a Nova York, nunca as recebera a Clarinda — ou porque desaparecessem na faina dessas longas viagens ou porque se extraviassem pelos correios, na obscuridade ininteligível de sobrescritos traçados por inábeis e toscas mãos de marujo, produtoras sempre, na escrita de uma garranchosa caligrafia impossível. De sorte que, em todos esses largos anos de pesca à baleia, o Luís, embora não recebesse notícias da noiva, andara tranquilo e feliz, na suposição consoladora e ingênua de que a ela houvessem chegado, uma a uma, todas as suas amorosas missivas.

Ao chegar aos Estados Unidos com uma economia de mais de três mil libras, apenas a barca ancorou, passou-se para um steamer que partia, ao outro dia, para terras do Brasil. Três semanas depois saltava no Rio de Janeiro, de onde logo seguiu, num iate, para o Inferninho. Aí, mal pusera pé em terra, entrou a indagar da Clarinda. Os conhecidos, amigos e parentes narraram-lhe então tudo que sucedera à pobre rapariga durante a ausência dele, falaram-lhe do filho e informaram-lhe, por último, que a Clarinda estava vivendo agora mais folgadamente lá para o Alto Biguaçu — onde comprara uma casinha e um sítio. Ele, num profundo alvoroço de a ver, comprou imediatamente um bom cavalo de sela, e jogou-se a galope para o local indicado, que conhecia de menino como o próprio arraial onde nascera. E assim, à mesma hora em que a noiva e o filho se dirigiam tristemente para o cafeeiral, a fazer a sua pequena colheita, o Luís Gandra corria, como um louco, por estradas e atalhos, em demanda da casinha querida onde ambos moravam.

IV 
A Clarinda, muito longe de pensar na grande felicidade que ia em pouco experimentar, apressava agora a tarefa, cantando ainda as suas mágoas:

Tão longe de ti distante
Minha alma vive a chorar,
Quanta dor, quanta tristeza
Eu sinto, só por te amar!

Nesse instante, justamente, um cavaleiro que vinha dos lados do Inferninho, a galope, estacou subitamente em frente ao barranco. Ela calou-se de repente e, curiosa, pôs-se a espreitar por entre as ramagens. Mas estava um pouco afastada e o rendado espesso das folhas não lhe deixava ver bem o recém-vindo. Abeirou-se então alguns passos, parando em frente a uma aberta da extrema, e deparou com um rijo moço aloirado e de barba inteira, trazendo botas e chapéu de abas largas, e que, esticado nos arreios, à outra margem da Estrada, a fixava vivamente. Desconhecendo aquele homem, ia já retirar-se, quando ele acercou-se em dois galões do animal e, de rosto erguido e radiante, gritou debaixo, numa alegria em que lhe arremessava a alma:

— Ó Clarinda, ó querida, já me não conheces?... Não te lembras mais do Luís Gandra?... Pois cá estou, felizmente, graças a Deus!... Saltei hoje no Inferninho, e mal soube que aqui estavas com o pequeno, toquei-me por aí acima.

Reconheceu-o então, apesar da barba toda e da pele cor de papoula que lhe dera o sol do mar. E fundamente emocionada, quase a sufocar de alegria, murmurou a tremer, os olhos rasos de lágrimas:

— Então, és tu mesmo, ó Luís?!... Quem diria! Assim de repente! Isto até parece um sonho!... Mas sobe depressa, querido... Olha, lá mais adiante, pela porteira do terreiro...

Ele picou o cavalo, o rosto iluminado, de indizível prazer, enquanto ela, nervosamente arrebatada, o coração quase a saltar-lhe do peito, corria ao seu encontro, com o rapazinho pela mão, dizendo-lhe enternecida e tumultuosamente:

— Anda, meu filho! Vamos ver teu pai! Nossa Senhora afinal nos ouviu, e foi ela quem fez este milagre...

O Luiz transpôs a porteira como um pensamento, vindo encontrar a Clarinda junto ao jardim, à sombra olorosa de uma imensa roseira da Índia que se desfazia em florescência, numa profusão infinita de corolas de ouro, estrelando deliciosamente no alto, contra o céu azul, o guarda-chuva verde escuro de um velho tamarindeiro.

E por momentos estreitaram-se os dois, num largo amplexo emovente: e, os rostos unidos com doçura, como os seus corações, choravam de enternecimento e prazer... Depois, o Luís tomou ao colo o pequeno, que o fitava com um límpido sorriso ingênuo, e pôs-se a beijá-lo nos cabelos e na testa, dizendo-lhe festivamente:

— Oh, meu querido filhinho! Agora é que vamos viver para sempre unidos, para sempre felizes!...

E todos três, grazinando alegremente, encaminharam-se para a casa pelos fundos do terreiro, onde, em meio à criação jubilosa, o orgulhoso sultão do galinheiro, um grande galo escarlate, trepado no cercado da horta, batendo as asas ao sol e erguendo o pescoço recurvo, soltava triunfantemente, como numa saudação de boa acolhida, o seu vivo canto guerreiro.

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