A volta ao lar
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
A Clarinda
tinha saído com o filho, um rapazinho de dez anos para o denso cafeeiral que se
estendia à direita da habitação, ao longo do caminho, em um terreno barrancoso
e alto. Levava uma grande cuia na mão para apanhar os primeiros bagos maduros,
cobrindo aqui e ali de grossas pintas de sangue as hastes delgadas dos ramos,
vergados ao peso da frutificação. Com um lenço vermelho à cabeça, uma saia de
chita azul desbotada e um corpete de cassa branca, os braços claros e rosados
saindo, nus e roliços, dos regaços das mangas e ainda frescos e úmidos d'água
da fonte onde estivera lavando, caminhava com elegância matuta, balançando os
túrgidos quadris femininos pela fita serpenteante do atalho, parando às vezes
um instante, entre irritada e carinhosa, para chamar o pequeno que a seguia
vagaroso, jogando os seixos polidos do tento
que lhe rolavam de vez em quando dos dedos, perdendo-se entre os rinchões:
— Anda daí,
Manuel! Anda depressa, tanso!
Repetindo
amiudadamente estes chamados à criança recalcitrante, imergiu por fim sob as
umbrosas absides dos ramos dos cafeeiros amigos oferecendo-se-lhe, carregados
de grãos preciosos, em maré alta de abundância. No chão juncado de folhas
secas, estalando sob as pisadas de ambos, corria uma multidão de gemas rútilas
espalhadas pela luz escaldante através dos interstícios das frondes. Um sopro
vago de norte passava, tirando um som amoroso à verdura. Em torno, fora, na
mornidão plena de ar fulguroso, chiava um zumbir sonolento de vareja e besouro,
como um longínquo esfrolar de vagas na calmaria de um golfo.
Depois de
vacilar um momento entre os finos troncos erguidos, esgalhados e nodosos, a
passear os lindos olhos melancólicos pela imensa abóbada verde, de onde pendia
fulgindo o fruto do cafeeiro em pequeninos racimos rubros, entrou a fazer a
colheita pelas ramagens tufadas da extrema, no ângulo que beirava o caminho. Aí
o barranco alteava-se ainda mais que para os lados da casa, volteando num
boleio de colina e entestando com a vastidão de um milharal desdobrando-se em
esmeraldinas espadanas recurvas para oeste e para o fundo até os socalcos
erguidos de uma serra próxima, recortada sobre o Azul em píncaros de rochas
tristes. Pela renda da folhagem divisava-se o largo e branco pavimento da
estrada coleando na planura para as bandas do Inferninho. Em suas voltas bem
amplas, nessa parte do arraial, nem uma pessoa se via sob a alegria do sol
cobrindo tudo de brilhos. Apenas, de longe em longe, nos terreiros elevados,
uma ou outra casinha humilde pardejava pelas paredes barreadas ou branquejava
intensamente na sua caiação muito viva. Nem mesmo cavalos soltos, tão
frequentes em pastar com a soga de
rasto pelos gramados das cercas, cortava a faixa arenosa do alvacento caminho.
Nem um cão a latir em volta das hortas em perseguição das galinhas, ou atacando
os novilhos que saltam as sebes dos pastos para invadirem as roças de cana, de
mandioca, ou de milho. Nada! Apenas a solidão e o adormecimento geral de sesta
campestre em que o calor espasma a vida. Repousavam os roceiros e animais
amigos, à sombra de árvores ou colmos, ao zumbir vago dos insetos e ao siflar
leve do vento através das ramarias... Só ela e o filho — pobres deles! — eram
dos poucos em trabalho, àquela hora de cáustica, nesse arraial humilde.
Desviando os
olhos da estrada erma, a Clarinda suspirou, como num desalento e tristeza
infinita — pois assim vivia desde que o noivo partira e tivera aquele filho —
e, dando a cuia ao menino, ergueu os braços torneados e pôs-se a captar com
destreza as hastes finas dos ramos, despencando os bagos tintos. O rapazinho,
sempre buliçoso e absorvido por tudo que o cercava na jovial irrequietação das
crianças, não parava um só instante, ora a perseguir os insetos saltando nas
folhas, ora a brincar com os pauzinhos ou com as pedrinhas do tento, tombando não raro a vasilha e
derramando o café que se alastrava no solo sobre o húmus ressequido.
— Quieto aí,
Manuel! senão de repente te “assisto”! gritava então a Clarinda.
E voltando
logo à colheita, avolumando-se pouco a pouco na cuia, embalava as dores
íntimas, entoando com a sua voz fresca e moça, suavemente expressiva, uma
dessas adoráveis cantigas campestres que são tão comuns nos sítios. E assim,
seguidamente cantando, desenvolvia a tarefa. Às vezes porém suspendia-se para
repreender meigamente a criança, que se divertia agora a trincar os bagos
rubros sugando-lhes gulosamente o néctar. Mas isso era só um instante, porque o
canto voltava-lhe logo à garganta sonora em toadilhas seguidas. As quadras mais
amorosas e tristes, de uma vaga espiritualidade e paixão, as repetia ela num
ritmo desolado e dolente, tão humano e tão casado à sua mágoa que, em certos
momentos, se quedava sufocada, os olhos arrasados de pranto, comprimindo o colo
cheio para abafar os suspiros. Depois, mais aliviada, soltava de novo a
cantiga:
Eu tinha o teu nome escrito
Dentro do meu coração,
Mas tu feriste a minha alma
Com a mais negra ingratidão!
E continuava
a apanhar o café às mancheias, arremessando-o à cuia que o menino segurava nos bracinhos
tenros.
II
A Clarinda
vivia só com o filho havia dez anos porque os pais a tinham escorraçado
cruelmente do lar, apenas viera ao mundo esse fruto dos seus amores. Era pai do
menino um rapaz roceiro, noivo dela, o qual pela grande intimidade na casa
chegara àquela falta que pensava poder reparar antes de qualquer desfecho
desonroso, quando rebentou a guerra com o Paraguai. Veio então o recrutamento,
espalhando-se pelos sítios num alarma geral e levando toda a mocidade matuta
que não queria pegar em armas para a defesa da Pátria, a homiziar-se pelo
interior ou a emigrar furtivamente para o estrangeiro em navios do comércio. As
freguesias e arraiais eram percorridos inesperadamente por pelotões de
permanentes a cavalo, que arrebanhavam, a torto e a direito, os rapazes.
Talando os campos e culturas, guiados por delatores de toda a ordem, enxameando
ali como em toda a parte em tais ocasiões, os capitães recrutadores e seus
soldados faziam uma limpa na juventude dourada do Inferninho e localidades próximas.
Uma noite em que esse pega-pega selvagem atingira o extremo, o Luís Gandra —
tal era o nome do noivo da Clarinda — que ainda não pudera casar-se, fora
apanhado com um bando de camaradas no sertão das Tijuquinhas. Transportado com
os outros para o litoral e embarcado numa lancha para o Desterro, onde devia
jurar bandeira, ele, um nadador de força, planeara desde logo escapar-se a nado
para qualquer ponto livre da costa, ou para bordo de um dos navios estrangeiros
ancorados no porto. Efetivamente, pela madrugada, quando a embarcação largou
naquele rumo com todos os recrutados sob a guarda de uma escolta, ele, iludindo
a vigilância das praças, jogou-se de repente ao mar, na altura dos Ratones. A
lancha, muito velejada, não pôde voltar prontamente atrás, e quando o conseguiu
já não o encontrou, porque a densa escuridão da noite de inverno desde logo o
sumiu sobre as águas...
No outro dia
o rapaz era acolhido a bordo de um navio baleeiro que saía por aquela semana
para as Terras Antárticas. Na véspera da partida escrevera à Clarinda,
narrando-lhe tudo que se passara. Terminava a carta pedindo-lhe que tivesse fé
em Deus, e rezasse por ele, que em breve voltaria. A moça, ao ler a missiva,
ficou como louca e desandou a chorar, compreendendo bem toda a sua desgraça. E
no dia seguinte, um domingo, o navio ergueu
velas ao vento, e disse adeus à terra fazendo-se em rumo do mar... Tempos
depois a criança nascia e a pobre mãe, expulsa do lar paterno, começava com o
filho uma vida de amarguras. Conheceu então todos os abandonos do mundo,
faltando-lhe até inteiramente a própria compassividade — sempre em geral tão
viva, amparadora e solícita na vida campesina — do arraial onde nascera e onde
agora todos a condenavam. Desamparada e perdida, entrou a vagar de lar em lar, com
o filhinho quase a morrer de fome nos braços, a mendigar trabalho e abrigo. Por
fim, foi parar ao Alto Biguaçu, onde encontrou ocupação, e a ela se dedicou
noite e dia, mantendo-se, com a mais heroica honestidade, sempre na incessante
esperança de que o noivo volveria, mais tarde ou mais cedo, para a fazer feliz
e ao filho. Em Biguaçu, passados oito anos, conseguiu comprar, com escassas mas
abençoadas economias, uma casinha e umas terras... Mas o Luís não voltava e a
ausência a prolongar-se interminavelmente, sem uma só notícia, alegre ou
triste, que lhe alentasse a alma aflita! Ali, como no Inferninho e nas
Tijuquinhas, todo o mundo já o fazia morto, sepultado para sempre nas geleiras
austrais: e ela, por vezes, nos seus momentos de desânimo, o acreditava
igualmente... Mas isso era só por vezes, porque a Esperança, incomparável
consoladora que não abandona o peito dos simples senão à derradeira agonia,
afugentava-lhe para logo essa ideia sinistra, segredando-lhe ao espírito com
uma voz misteriosa e divina: “Não, Clarinda, ele há de voltar! Deus jamais
desamparou a virtude que sofre por injustiça dos homens...” Ela então, refeita
de ânimo novamente, e numa vaga alegria, abraçando e beijando o filho com
extremos, como se nele revisse o noivo adorado, com quem se parecia o menino,
esperava, muito crente, confiada no Destino...
III
Só em pleno
mar, quando a terra começou a esbater-se à popa, numa linha longínqua e
saudosa, é que o Luís Gandra entrou a experimentar as primeiras puadas da
nostalgia. Num recanto de proa, sob as velas claras de lona oscilando numa
cantilena rangida, os braços apoiados à borda, olhos banhados de pranto, não
cessava de fitar um instante a névoa azul do horizonte, onde se ocultava pouco
e pouco a sua ilha querida. Quedou-se aí longas horas, revendo pela imaginação,
em largos e abstratos quadros evocativos, toda a sua vida passada, desde as
descuidosas correrias da infância até as aventurosas andadas de amoroso
noctívago, através os caminhos e campos do seu arraial, atrás de um par de
olhos amados, encantadores, benditos. E eram esses olhos, magia de um rosto
inefável de moça, com uma luz que até os astros invejariam, o que mais o
flagelava, torturava e pungia na precipitação daquele triste apartamento e na
ânsia esmagadora de uma saudade infinita. Mas a noite caíra, negra e desolada,
cortada de um vento frio. Recolheu-se então ao rancho, onde por fim adormeceu,
em sonhos em que só via a Clarinda.
Uma semana
volvida, na aérea alacridade de uma bonançosa alvorada marítima, sorria já
resignado, meditando no futuro e na volta ao sítio natal, a cumprir a sua
promessa à Amada e construir o seu ninho. E, afazendo-se às manobras, começou a
distinguir-se entre toda a companha. O
capitão do baleeiro, um velho marinheiro yankee,
percebendo nele uma decidida vocação para o mar, chamou-o em breve para a
ré, iniciando-o na arte náutica e promovendo-o a praticante de piloto. Esta
simpatia do master subiu à verdadeira
dedicação e estima quando, já nos mares antárticos, o rapaz revelou
extraordinárias qualidades de intrepidez, sangue-frio e perícia na perseguição
e arpoagem dos grandes cetáceos e nas difíceis e trabalhosas manobras para
evitar as banquisas.
Onze anos
rolou nesses mares na veleira White Wings,
onde ocupava desde muito o posto de segundo oficial, quando a barca teve de
recolher aos Estados Unidos. Durante esse tempo, porém, nem um só dia esquecera
a Clarinda e, muitas vezes, nos longos invernos austrais, quando o navio se
fazia para o norte e vinha invernar junto às Shetlands ou nas costas das Malvinas, escrevia-lhe extensas cartas
saudosas, em que lhe narrava a sua vida e as economias que fazia para vir gozar
com ela no seu arraial querido. Mas essas cartas, que eram entregues aos
capitães ou pilotos dos palhabotes que iam àquelas paragens tomar o
carregamento da barca para o conduzir a Nova York, nunca as recebera a Clarinda
— ou porque desaparecessem na faina dessas longas viagens ou porque se extraviassem
pelos correios, na obscuridade ininteligível de sobrescritos traçados por
inábeis e toscas mãos de marujo, produtoras sempre, na escrita de uma
garranchosa caligrafia impossível. De sorte que, em todos esses largos anos de
pesca à baleia, o Luís, embora não recebesse notícias da noiva, andara
tranquilo e feliz, na suposição consoladora e ingênua de que a ela houvessem
chegado, uma a uma, todas as suas amorosas missivas.
Ao chegar
aos Estados Unidos com uma economia de mais de três mil libras, apenas a barca
ancorou, passou-se para um steamer
que partia, ao outro dia, para terras do Brasil. Três semanas depois saltava no
Rio de Janeiro, de onde logo seguiu, num iate, para o Inferninho. Aí, mal
pusera pé em terra, entrou a indagar da Clarinda. Os conhecidos, amigos e
parentes narraram-lhe então tudo que sucedera à pobre rapariga durante a
ausência dele, falaram-lhe do filho e informaram-lhe, por último, que a
Clarinda estava vivendo agora mais folgadamente lá para o Alto Biguaçu — onde
comprara uma casinha e um sítio. Ele, num profundo alvoroço de a ver, comprou
imediatamente um bom cavalo de sela, e jogou-se a galope para o local indicado,
que conhecia de menino como o próprio
arraial onde nascera. E assim, à mesma hora em que a noiva e o filho se dirigiam
tristemente para o cafeeiral, a fazer a sua pequena colheita, o Luís Gandra
corria, como um louco, por estradas e atalhos, em demanda da casinha querida
onde ambos moravam.
IV
A Clarinda,
muito longe de pensar na grande felicidade que ia em pouco experimentar,
apressava agora a tarefa, cantando ainda as suas mágoas:
Tão longe de ti distante
Minha alma vive a chorar,
Quanta dor, quanta tristeza
Eu sinto, só por te amar!
Nesse
instante, justamente, um cavaleiro que vinha dos lados do Inferninho, a galope,
estacou subitamente em frente ao barranco. Ela calou-se de repente e, curiosa,
pôs-se a espreitar por entre as ramagens. Mas estava um pouco afastada e o
rendado espesso das folhas não lhe deixava ver bem o recém-vindo. Abeirou-se
então alguns passos, parando em frente a uma aberta da extrema, e deparou com um rijo moço aloirado e de
barba inteira, trazendo botas e chapéu de abas largas, e que, esticado nos
arreios, à outra margem da Estrada, a fixava vivamente. Desconhecendo aquele
homem, ia já retirar-se, quando ele acercou-se em dois galões do animal e, de
rosto erguido e radiante, gritou
debaixo, numa alegria em que lhe arremessava a alma:
— Ó
Clarinda, ó querida, já me não conheces?... Não te lembras mais do Luís Gandra?...
Pois cá estou, felizmente, graças a Deus!... Saltei hoje no Inferninho, e mal soube que aqui estavas com o pequeno,
toquei-me por aí acima.
Reconheceu-o
então, apesar da barba toda e da pele cor de papoula que lhe dera o sol do mar.
E fundamente emocionada, quase a sufocar de alegria, murmurou a tremer, os
olhos rasos de lágrimas:
— Então, és
tu mesmo, ó Luís?!... Quem diria! Assim de repente! Isto até parece um sonho!...
Mas sobe depressa, querido... Olha, lá mais adiante, pela porteira do terreiro...
Ele picou o cavalo,
o rosto iluminado, de indizível prazer, enquanto ela, nervosamente arrebatada,
o coração quase a saltar-lhe do peito, corria ao seu encontro, com o rapazinho
pela mão, dizendo-lhe enternecida e tumultuosamente:
— Anda, meu
filho! Vamos ver teu pai! Nossa Senhora afinal nos ouviu, e foi ela quem fez
este milagre...
O Luiz
transpôs a porteira como um pensamento, vindo encontrar a Clarinda junto ao
jardim, à sombra olorosa de uma imensa roseira da Índia que se desfazia em
florescência, numa profusão infinita de corolas de ouro, estrelando
deliciosamente no alto, contra o céu azul, o guarda-chuva verde escuro de um
velho tamarindeiro.
E por
momentos estreitaram-se os dois, num largo amplexo emovente: e, os rostos
unidos com doçura, como os seus corações, choravam de enternecimento e prazer...
Depois, o Luís tomou ao colo o pequeno, que o fitava com um límpido sorriso
ingênuo, e pôs-se a beijá-lo nos cabelos e na testa, dizendo-lhe festivamente:
— Oh, meu
querido filhinho! Agora é que vamos viver para sempre unidos, para sempre
felizes!...
E todos
três, grazinando alegremente, encaminharam-se para a casa pelos fundos do
terreiro, onde, em meio à criação jubilosa, o orgulhoso sultão do galinheiro,
um grande galo escarlate, trepado no cercado da horta, batendo as asas ao sol e
erguendo o pescoço recurvo, soltava triunfantemente, como numa saudação de boa
acolhida, o seu vivo canto guerreiro.
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