Ayres e Vergueiro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Era muito alva, cheia de corpo, assaz bonita e elegante, a esposa de Luís Vergueiro. Chamava-se Carlota. Contava vinte e dois anos e parecia destinada a envelhecer muito tarde. Não sendo franzina, não tinha nenhuma ambição de parecer vaporosa, pelo que era dada à boa mesa, e detestava o princípio de que uma moça para parecer bonita deve comer pouco. Carlota comia sofrivelmente, mas em compensação só bebia água, uso que, na opinião do marido, era causa de se lhe não afoguearem as faces como convinha a uma beleza robusta.
Requestada por muitos rapazes no ano da
Maioridade, deu ela a preferência ao Sr. Luís Vergueiro que, posto não fosse
mais bonito que os outros, tinha qualidades que o punham muito acima de todos
os rivais. Destes se podia dizer que os movia a ambição; tinham geralmente
pouco mais de nada; Vergueiro não era assim. Iniciava um negociozinho de
fazendas que lhe ia dando esperanças de enriquecer, ao passo que a amável
Carlota apenas tinha aí uns dez contos, dote feito pelo padrinho.
Caiu a escolha em Vergueiro, e o casamento
foi celebrado com alguma pompa, sendo padrinhos um deputado maiorista e um
coronel do tempo da revolução de Campos.
Nunca houve casamento mais falado que aquele;
a beleza da noiva, a multiplicidade dos rivais, a pompa da cerimônia, tudo deu
que falar durante uns oito dias antes e depois, até que a vadiação do espírito
público achou novo alimento.
Vergueiro alugou a casa que ficava por cima
da sua loja, e para lá levou a mulher, satisfazendo assim as obrigações
públicas e privadas, consorciando facilmente a bolsa e o coração. A casa era na
Rua de São José. Daí a pouco tempo comprou a casa, e isto fez dizer que o
casamento, longe de lhe pôr um cravo na roda da fortuna, veio antes ajudá-lo.
Tinha Vergueiro uma irmã casada no interior.
Morre-lhe o marido, e a irmã veio para o Rio de janeiro onde foi recebida pelo
irmão com todas as demonstrações de afeto. As duas cunhadas simpatizaram logo
uma a outra, e esta presença de uma estranha (para recém-casados todos são
estranhos) não alterou a felicidade doméstica do casal Vergueiro.
Luísa Vergueiro não era bonita, mas tinha uma
graça especial, uns modos todos seus, uma coisa que se não explica, e esse
misterioso dom, essa qualidade indefinível encadeou para sempre o coração de
Pedro Ayres, rapaz de trinta anos perfeitos, morador na vizinhança.
Digam-lhe lá o que pode fazer uma pobre viúva
ainda moça, que apenas esteve casada dois anos. Luísa não era da massa das
Artemisas. Tinha chorado o esposo, e se tivesse talento, podia escrever uma
excelente biografia dele, honrosa para ambos. Mas isso era tudo que se podia
exigir dela; não possuía um túmulo no coração, possuía um ninho; e um ninho
deserto é a coisa mais triste deste mundo.
Não foi Luísa insensível aos olhares
requebrados de Pedro Ayres, e serei justo dizendo que ocultou quanto pôde a
impressão que o moço fazia nela. Ayres pertencia àquela raça de namoradores que
não abatem armas logo à primeira resistência. Insistiu nos olhares entremeados
com alguns sorrisos; chegou a interrogar miudamente um moleque da casa, cuja
discrição não pôde resistir a uma moeda de prata. O moleque foi além; aceitou
uma carta para a viuvinha.
A viuvinha respondeu.
Daqui em diante correram as coisas com aquela
celeridade natural entre dois corações que se querem, que são livres, que não
podem viver um sem o outro.
Carlota percebeu o namoro, mas respeitou a
discrição da cunhada, que nenhuma confissão lhe fez. Vergueiro estava no
extremo oposto da perspicácia humana; e além disso as suas ocupações não lhe
davam tempo para perceber os namoros da irmã.
Não obstante, sorriu complacentemente quando
Carlota lhe disse o que sabia.
— Pensas que eu ignoro isso? perguntou o
marido brincando com a corrente do relógio.
— Alguém to contou? perguntou a mulher.
— Ninguém me contou nada, mas para que tenho
eu olhos senão para ver o que se passa à roda de mim? Sei que esse rapaz anda
cá a namorar a Luísa, estou a ver em que param as coisas.
— É fácil de ver.
— Casamento, não?
— Que dúvida!
Vergueiro coçou a cabeça.
— Nesse caso, disse ele, acho bom indagar
alguma coisa da vida do pretendente; pode ser algum tratante...
— Eu já indaguei tudo.
— Tu?
Carlota passou-lhe os braços à roda do
pescoço.
— Eu, sim! As mulheres são curiosas; vi o
Tobias entregar uma cartinha à Luísa; interroguei o Tobias, e ele disse-me que
o rapaz é um moço sério e tem alguma coisa de seu.
— Tem, tem, disse Vergueiro. Que achas?
— Que os devemos casar.
— Entende-te tu com ela, e conta-me o que
souberes.
— Bem.
Carlota cumpriu fielmente a ordem do marido,
e Luísa nada lhe ocultou do que se passava em seu coração.
— Queres então casar com ele?
— Ele deseja isso mesmo.
— E estão calados! Parecem-me aprendizes.
Carlota era sincera no prazer que tinha em
ver casada a irmã do marido, sem se preocupar com o resultado disso, que era
tirar-lhe a companhia a que já se acostumara.
Vergueiro refletiu na inconveniência de
confiar nas informações de um moleque ignorante, que devia ter a respeito da
probidade e da distinção ideias sumamente vagas. Para suprir esta inconveniência,
lembrou-se de ir em pessoa falar com Pedro Ayres, e assentou que o faria no
domingo próximo. A mulher aprovou a resolução, mas o pretendente cortou-lhe as
vazas, indo ele mesmo no sábado à casa de Vergueiro, expor os seus desejos e
títulos.
Pedro Ayres era homem bem apessoado; tinha
grandes suíças e um pequeno bigode. Vestia com certa elegância, e tinha os
gestos desembaraçados. Algum severo juiz podia achar-lhe um inexplicável horror
à gramática; mas nem Vergueiro, nem Carlota, nem Luísa, estavam em melhores
relações com a mesma senhora, de maneira que este pequeno senão passou
completamente despercebido.
Ayres deixou a melhor impressão em toda a
família. Desde logo ficou assentado que se esperasse algum tempo, a fim de
completar o prazo do luto. Isso, porém, não embaraçou as vindas de Ayres à casa
da noiva; começou indo lá três vezes por semana, e acabou indo todos os dias.
Ao cabo de poucas semanas, já Vergueiro
dizia:
— Ó Ayres, queres mais açúcar?
E Ayres respondia:
— Dá cá mais um pouco, Vergueiro.
Estreitou-se a amizade entre ambos. Eram
necessários um para o outro.
Quando Ayres não ia à casa de Vergueiro, este
passava a noite mal. Ayres detestava o jogo; mas a amizade que tinha a
Vergueiro bastou para que depressa aprendesse e jogasse o gamão, a ponto que
chegou a vencer o mestre. Nos domingos, Ayres jantava com Vergueiro; e dividia
a tarde e a noite entre o gamão e Luísa.
As duas moças, longe de se zangarem com este
namoro dos dois, pareciam contentes e felizes. Viam nisso uma fiança de futura
concórdia.
Um dia entrou Ayres na loja de Vergueiro e
pediu-lhe uma conferência particular.
— Que temos? disse Vergueiro.
— Daqui a dois meses, respondeu Ayres, é o
meu casamento; vou ficar indissoluvelmente ligado à tua família. Tive uma ideia...
— Uma ideia tua deve ser excelente, observou
Vergueiro abaixando o colete que havia fugido insolentemente do seu lugar.
— Tenho uns contos de réis. Queres-me para
sócio? Ligaremos deste modo o sangue e a bolsa.
A resposta de Vergueiro foi menos
circunspecta do que convinha em casos tais. Levantou-se e caiu nos braços do
amigo, exatamente como faria um sujeito falido a quem lhe oferecessem uma tábua
de salvação. Mas nem Ayres teve semelhante suspeita, nem acertaria se a
tivesse. Vergueiro nutria pelo futuro cunhado um sentimento de entusiástica
amizade, e achou naquela ideia um documento da afeição do outro.
No dia seguinte deram os passos necessários
para organizar a sociedade, e dentro de pouco tempo foi chamado um pintor para
traçar nos portais da loja estes dois nomes, já agora indissoluvelmente
ligados: Ayres & Vergueiro.
Vergueiro insistiu em que o nome do amigo
estivesse antes do seu.
No dia desta pintura, houve jantar em casa, e
a ele assistiram algumas pessoas íntimas, todas as quais ficaram morrendo de
amores pelo sócio de Vergueiro.
Estou a ver o meu leitor aborrecido com esta
singela narração de ocorrências prosaicas e vulgares, sem nenhum interesse
romanesco, sem que apareça nem de longe a orelha de uma peripécia dramática.
Tenha paciência.
É verdade que, feita a sociedade, e casado o
novo sócio, a vida de toda esta gente não poderá oferecer interesse nenhum que
valha dois caracóis. Mas aqui intervém uma personagem nova, a qual vem destruir
tudo o que o leitor pode imaginar. Não é só uma personagem; são duas, irmãs
ambas, ambas poderosas: a Doença e a Morte.
A doença entrou por casa de nosso amigo
Vergueiro e prostrou na cama durante dois longos meses a viúva-noiva. Não se
descreve o desespero de Ayres vendo o estado grave daquela a quem ele amava
mais que tudo. Esta circunstância de ver o amigo desesperado aumentou a dor de
Vergueiro, que já devia sentir bastante com os padecimentos da irmã.
Do que era a moléstia, divergiram os médicos;
e todos eles com sólidas razões. O que não provocou nenhuma divergência da
parte dos médicos, nem das pessoas da casa, foi o passamento da moça que se
verificou às 4 horas da madrugada de um dia de setembro.
A dor de Ayres foi tremenda; atirou-se ao
caixão quando os convidados o vieram buscar para o coche, e não comeu um pedaço
de pão durante três dias.
Vergueiro e Carlota recearam pela saúde e até
pela vida do malfadado noivo, pelo que foi assentado que ele se mudaria para a
casa de Vergueiro, onde seria vigiado de mais perto.
Seguiu-se à expansão daquele imenso
infortúnio um abatimento prolongado; mas a alma readquiriu as forças perdidas,
e o corpo com ela se foi restabelecendo. No fim de um mês já o sócio de
Vergueiro assistia ao negócio e dirigia a escrituração.
Com verdade se diz que é nos grandes
infortúnios que se conhecem as verdadeiras amizades. Ayres encontrou da parte
do sócio e da mulher a mais sublime dedicação. Carlota foi para ele uma
verdadeira irmã; ninguém levou mais longe e mais alto a solicitude. Ayres comia
pouco; arranjou-lhe ela comidas próprias para lhe vencer o fastio. Conversava
com ele longas horas, ensinava-lhe alguns jogos, lia-lhe o Saint— Clair das Ilhas, aquela velha história de uns desterrados da
ilha da Barra. Pode-se afiançar que a dedicação de Carlota foi o principal
medicamento que restituiu à vida o nosso Pedro Ayres.
Vergueiro aplaudia in petto o procedimento de sua mulher. Quem meu filho beija, minha
boca adoça, diz um adágio; Vergueiro tinha para com o sócio extremos de pai;
tudo o que se fizesse ao Ayres, era agradecido por ele do fundo da sua grande
alma.
Nascida da simpatia, criada no infortúnio
comum, a amizade de Ayres e Vergueiro assumiu as proporções do ideal. Na
vizinhança, já ninguém recorria às expressões proverbiais para significar uma
amizade íntima; não se dizia de dois amigos: são unha e carne; dizia-se: Ayres
com Vergueiro. Diógenes teria achado ali um homem, e realmente ambos formavam
uma só criatura.
Nunca mais sucedeu andarem com roupa de cor,
fazenda ou feitio diferentes; vestiam-se igualmente, como se até nisso
quisessem mostrar a perpétua aliança de suas nobres almas. Faziam mais;
compravam chapéus e sapatos no mesmo dia, ainda que um deles os houvesse
estragado menos que o outro.
Jantar, baile ou passeio a que um fosse havia
de ir o outro por força, e ninguém se animava a convidá-los separadamente.
Não eram, pois, dois sócios simples que
procuravam dos seus esforços juntos obter cada qual a sua riqueza.
Não.
Eram dois amigos íntimos, dois corações
iguais, dois irmãos siameses, eternamente vinculados na terra, labutando para
alcançar os bens da sorte, mas sem nenhuma ideia de os separarem jamais.
E a fortuna os ajudou, por maneira que dentro
de dois anos já havia ideia de liquidar o negócio, e irem os dois e mais
Carlota viver tranquilamente em uma fazenda, comendo o ganhado na graça de Deus
e pleno esquecimento dos homens.
Que mau demônio, que ruim espírito veio
meter-se entre eles para lhes impedir esta excelente ideia?
A fortuna varia como a mulher; depois de os
haver favorecido, começou a desandar. Meteram-se eles em negócios arriscados e
perderam alguma coisa. Todavia ainda tinham um bom pecúlio.
— Vamos liquidar? perguntou um dia Ayres a
Vergueiro.
— Vamos.
Inventariaram as fazendas, cotejaram o seu
valor com a soma das dívidas, e repararam que, se pagassem integralmente aos
credores, ficariam com uma soma mesquinha para ambos.
— Continuemos o negócio, disse Ayres;
trabalharemos até resgatarmos a antiga posição.
— Justo... mas eu tenho uma ideia, disse
Vergueiro.
— E eu tenho outra, respondeu o sócio. Qual é
a tua?
— Dir-ta-ei domingo.
— E eu comunicarei nesse mesmo dia a minha ideia,
e veremos qual delas serve, ou se se combinam ambas.
Seria coisa extremamente nova, e até certo
ponto digna de pasmo, que aqueles modelos da verdadeira amizade tivessem ideias
divergentes. A ideia anunciada para o domingo seguinte era a mesmíssima ideia,
tanto no cérebro de Ayres, como no de Vergueiro.
Consistia em liquidar à sorrelfa: iriam
vendendo pouco a pouco as fazendas, e sairiam da Corte sem dizer adeus aos
credores.
A ideia não era original; bonita parece que
também não; mas era útil e praticável.
Ficou assentado que esta resolução não seria
comunicada à mulher de Vergueiro.
— Reconheço, dizia Ayres, que é uma senhora
de alta prudência e rara discrição...
— Não tem dúvida.
— Mas o espírito das senhoras é cheio de
alguns escrúpulos, e se ela nos fosse à mão, tudo ficaria perdido.
— Estava pensando a mesma coisa, observou
Vergueiro.
Concordes na promessa, não menos o foram na
infidelidade. No dia seguinte, Ayres ia comunicar confidencialmente o plano à
esposa de Vergueiro, e começou a dizer:
— Nós vamos liquidar aos poucos...
— Já sei, respondeu Carlota, ele já me disse
tudo.
Façamos justiça a esta distinta moça; depois
de tentar dissuadir o marido do projeto, tentou dissuadir o sócio, mas tanto um
como o outro ostentaram uma tenacidade de ferro em suas opiniões. Divergiam no
modo de encarar a questão. Vergueiro não contestava a imoralidade do ato, mas
achava que o benefício compensava a imoralidade; reduziu a dissertação a esta
expressão popular: ande eu quente e ria-se a gente.
Ayres não admitia que o projeto ofendesse as
leis da moral. Ele começava separando a moral e o dinheiro. O dinheiro é coisa
de si tão mesquinha, que não podia penetrar na região sublime da moral.
— Deus, observava ele, não quer saber quanto
pesam as algibeiras, quer saber quanto pesam as almas. Que importa que as
nossas algibeiras estejam pejadas de dinheiro, contanto que as nossas almas
estejam leves de pecados? Deus olha para as almas, não olha para as algibeiras.
Carlota alegou triunfalmente um dos dez
mandamentos da lei de Deus; mas o sócio de Vergueiro fez uma tão complicada
interpretação do texto bíblico, e falou com tanta convicção, que o espírito de
Carlota não achou resposta suficiente, e aqui parou a discussão.
A que se não acostuma o coração humano?
Lançada a má semente no coração da moça, depressa germinou, e o plano secreto
passou a ser assunto de conversa entre os três conjurados.
A execução do plano começou e prosseguiu com
espantosa felicidade. A firma Ayres & Vergueiro era tão honrada, que os
portadores de letras e outros títulos, e até os que não tinham títulos, foram
aceitando todas as delongas que os dois sócios lhes pediam.
As fazendas começaram a ser vendidas a resto
de barato, não por anúncio, o que seria dar na vista, mas por informação
particular que passava de boca em boca.
Nestas e noutras ocupações se abismava o
saudoso espírito de Pedro Ayres, já agora deslembrado da desditosa Luísa. Que
querem? Nada é eterno neste mundo.
Nada liga mais fortemente os homens que o
interesse; a cumplicidade dos dois sócios apertou os vínculos da sua proverbial
amizade. Era ver como eles delineavam entre si o plano da vida que os esperava
quando estivessem fora do Império. Protestavam gozar do dinheiro sem recorrer
às alternativas do comércio. Além dos prazeres comuns, Vergueiro possuía os do
coração.
— Tenho Carlota, dizia ele, que é um anjo. E
tu, meu Ayres? Por que te não casarás também?
Ayres desatou do peito um suspiro e disse com
voz trêmula:
— Casar? Que mulher há mais neste mundo que
possa fazer a minha felicidade?
Ditas estas palavras com outra sintaxe que eu
não reproduzo por vergonha, o desditoso Ayres sufocou dois ou três soluços e
fitou os olhos no ar; depois coçou o nariz e olhou para Vergueiro:
— Olha, eu não me considero solteiro; não
importa que tua irmã morresse; estou casado com ela; separa-nos apenas um
túmulo.
Vergueiro apertou com entusiasmo as mãos do
sócio e aprovou a nobreza daqueles sentimentos.
Quinze dias depois desta conversa, Vergueiro
chamou Ayres e disse que era necessário pôr termo ao plano.
— É verdade, disse Ayres, as fazendas estão
quase todas vendidas.
— Subamos.
Subiram e foram ter com Carlota.
— Vou para Buenos Aires, começou Vergueiro.
Carlota empalideceu.
— Para Buenos Aires? perguntou Ayres.
— Crianças! exclamou Vergueiro, deixem-me
acabar. Vou para Buenos Aires com o pretexto de negócios comerciais; vocês
demoram-se aqui um a dois meses; vendem o resto, põem o dinheiro a bom recado,
e partem para lá. Que lhes parece?
— A ideia não é má, observou Ayres, mas está
incompleta.
— Como?
— A nossa ida deve ser pública, explicou
Ayres; eu declararei a todos que tu estás doente em Buenos Aires e que mandas
buscar tua mulher. Como alguém há de acompanhá-la, irei eu, prometendo voltar
daí a um mês; a casa fica aí com o caixeiro, e... o resto... creio que não
preciso dizer o resto.
— Sublime! exclamou Vergueiro; isto é que se
chama estar adiante do século.
Assentado isto, anunciou aos amigos e
credores que uma operação comercial o levava ao Rio da Prata; e tomando
passagem no brigue Condor deixou para sempre as plagas da Guanabara.
Não direi aqui as saudades que sentiram
aqueles dois íntimos amigos, quando se separaram, nem as lágrimas que verteram,
lágrimas dignas de inspirar mais adestradas penas do que a minha. A amizade não
é um nome vão.
Carlota não menos sentiu aquela separação,
posto fosse de pequeno prazo. Os amigos da firma Ayres & Vergueiro viram
bem o que era um quadro de verdadeira afeição.
Ayres não era peco, apressou a venda das
fazendas, realizou em boa prata o dinheiro da caixa, e antes de seis semanas
recebeu de Buenos Aires uma carta em que Vergueiro dizia que estava de cama, e
pedia a presença de sua querida mulher.
A carta terminava assim: “Quem escreve esta é
o criado da hospedaria onde eu me acho; apenas tenho forças para deitar-lhe a
minha assinatura.”
O plano era excelente, e Vergueiro, lá em
Buenos Aires, esfregava as mãos de prazer saboreando os aplausos que receberia
do amigo e sócio pela ideia de disfarçar a letra.
Ayres aplaudiu efetivamente a ideia, e não
menos a aplaudiu a amável Carlota. Determinaram, entretanto, não sair com a
publicidade assentada no primeiro plano, em vista da qual o sagaz Vergueiro
escrevera a referida carta. Talvez mesmo já esse projeto fosse anterior.
O certo é que daí a dez dias, Ayres, Carlota
e o dinheiro saíram furtivamente... para a Europa.
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