
O
Caminho de Damasco
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1: TRÊS AMIGOS
Eram duas horas da tarde de um dia de junho,
dia de magnífico inverno, nem frio, nem chuva, nem sol. Nem sol, é maneira de
dizer; o astro-rei dominava o céu com todo o esplendor dos seus raios; mas os
raios eram temperados e brandos. Não era certamente um sol para aquecer
lagartixas, mas não o podia haver melhor para quem atravessasse pedestremente o
Campo da Aclamação.
A Rua do Ouvidor tinha então o movimento do
costume. Gente parada em frente ou sentada dentro das lojas, gente que descia,
que subia, homens, senhoras, de quando em quando uma vitória ou um tílburi, tudo
isso dava à principal rua do Rio de janeiro um aspecto animado e luzido.
Viam-se aqui e ali alguns deputados, trocando notícias políticas ou admirando
as senhoras que passavam, coisa muito mais deliciosa que uma discussão a
respeito do orçamento da guerra, assunto em que, nesse momento, estava falando
o respectivo Ministro na Câmara. Também ali estava uma grande parte da áurea
juventude, — la jeunesse dorée, —
comentando o acontecimento do dia ou encarecendo a beleza da moda. Estranharia
aquela designação quem reparasse que entre os rapazes havia também algumas
suíças grisalhas e outras totalmente brancas. Mas essas suíças podiam
responder-lhe que a mocidade não é um aspecto, mas um fato interior, e que o
gelo pode cobrir a cumeada da serra sem descer à planície. Planície, neste
caso, é sinônimo de coração.
Perto da Rua da Quitanda, entre a livraria
Garnier e o escritório do Jornal do
Comércio, três moços elegantemente vestidos trocavam algumas últimas
palavras. Um deles tinha de seguir para baixo, outro para cima, e o terceiro ia
entrar num tílburi, que o estava esperando. O primeiro usava suíças pretas; o
segundo a barba toda; o terceiro apenas tinha um bigode castanho esmeradamente
encaracolado.
— Está assentado, disse o das suíças, às dez
horas à porta do Alcazar.
— Quem chegar primeiro, espera, observou o da
barba toda.
— Sim, tornou o primeiro, mas não é bom que,
fiado nisso, algum de vocês se demore muito.
O do bigode aprovou esta emenda, mas
acrescentou que pedia alguma exceção para si.
— É-me necessário ter cuidado com a velha,
disse ele.
O das suíças abanou a cabeça com impaciência.
— Realmente, Aguiar, não sei o que quer dizer
essa tua obediência passiva. És um homem feito, e vives como uma freira!
O da barba toda, que conhecia bem o profundo
abismo que mediava entre o amigo e uma freira, não pôde deixar de sorrir a este
reparo do rapaz das suíças, aliás tão informado como ele das façanhas de
Aguiar.
Aguiar explicou como pôde a situação em que
se achava para com a velha, e de novo prometeram todos se acharem à porta do
Alcazar, às 10 horas da noite.
Justamente no momento em que ia despedir-se,
entrou na Rua do Ouvidor, vindo da Rua da Quitanda, uma vitória puxada por um
cavalo castanho e governada por cocheiro ainda rapaz, bianco vestito. O desdém com que este indivíduo ia olhando para os
peões poderia fazer crer que levava no carro a rainha Cleópatra, pelo menos, ou
o filho de Peleu; tal ilusão, porém, não podia durar desde que se lançasse um
olhar para dentro do carro e se visse molemente recostada uma mocinha loura e
magra, cujas feições pareciam vir do céu, mas cujo exterior e aparato estavam
delatando o mais delicioso purgatório.
Naturalmente, as lágrimas dos pecadores eram
ali cristalizadas, porque a dama trazia nas orelhas, no colo e nos dedos umas
fulgentíssimas pedras com que ia mui galante e concertada. Olhava
preguiçosamente para as pessoas que passavam à esquerda do carro, mas sem mover
a cabeça, e com um ar tão friamente aristocrático, que justificava bem a
arrogância do cocheiro e a curiosidade dos passantes.
Quando ela viu os três amigos de que há pouco
falamos, sorriu e inclinou levemente a cabeça, enquanto o das suíças pretas
parecia fazer um sinal convencionado. A dama respondeu com um gesto; tudo isto
sem que o carro parasse.
— Bem; a Candinha está avisada, disse o das
suíças; é inútil mandar lá.
E depois de uma nova promessa, cada um dos
amigos tomou a direção em que ia.
Dos três, é Aguiar o que mais nos interessa
acompanhar. Vai de tílburi, mas não importa; chegaremos a tempo de entrar com
ele em casa.
CAPÍTULO 2: O PONTO NEGRO
Jorge Aguiar, no tempo em que se passa esta
narrativa, contava os seus vinte e três anos de idade. No ano anterior, voltara
de São Paulo com um diploma de bacharel na algibeira e uns amores no coração.
Poderia dizer que trazia também alguma ciência jurídica na cabeça, se o meu
intento não fosse uma escrupulosa fidelidade histórica. Aguiar aprendeu apenas
o necessário para de todo em todo não atar as mãos aos lentes; mas o pouco que
aprendeu ficou na serra de Cubatão, sem lhe deixar saudades. Os amores ainda os
trouxe até à barra do Rio de Janeiro, mas com certeza não desembarcou com eles.
Também, não valiam a pena; eram amores bem pouco sérios para virem acolher-se à
sombra da família.
Bem desventurado seria ele se tivesse de
ganhar o pão com o que aprendera na academia. Mas a fortuna, que uns dizem ser
cega, naquele caso teve uma vista de lince, adivinhando que era necessário
afiançar a vida a quem não era capaz de ganhá-la. A família de Jorge tinha de
sobra com que lhe manter a existência e satisfazer os caprichos. Desta maneira
podia ele dormir tranquilamente e acordar em paz.
Nem tudo, porém, eram rosas na existência de
Aguiar. Havia um ponto negro na limpidez do céu azul. Não era o pai. O pai de
Jorge tinha-lhe aquele amor cego que não vê senões no objeto querido e era a
seu respeito um tanto doutor Pangloss: achava uma tal ou qual necessidade nos
desvarios do rapaz. Além disso, acariciava o sonho, aliás plausível, de o ver
Ministro de Estado. Para isso, disse ele, era necessário dar alguns meses à
vida livre; depois do que, chamá-lo-ia à razão e buscaria encartá-lo na
primeira Assembleia Provincial que lhe ficasse a jeito.
Tais eram os planos e sentimentos do velho
Silvestre Aguiar, cuja mocidade parecia não ter sido inteiramente capuchinha.
O ponto negro era a mãe de Jorge. D. Joaquina
era uma senhora austera e respeitável, mas impertinente, rusguenta e despótica,
além de ser dotada de uma energia que não dizia muito com os seus cinquenta e
dois anos. Não havia memória em casa de Aguiar de que a senhora D. Joaquina
estivesse algum dia calada durante uma hora inteira. Calava-se quando dormia,
mas como dormia pouco, e acordava às cinco horas da manhã, dava apenas uma
escassa trégua à família.
Não se precisava ter olhos muito perspicazes
para conhecer que a senhora Dona Joaquina era o verdadeiro dono da casa.
Silvestre pertencia àquela raça de homens pacatos para quem este mundo é uma antessala
do céu. Não se irritava nunca, não conhecia o que fosse impaciência ou tédio.
Amou a muitas mulheres, rezavam as crônicas, mas nenhuma lhe captou tanto afeto
como “a sua gorda Pachorra”.
— A natureza, dizia ele, tem rios impetuosos
e plácidos ribeiros. Se todos fôssemos rios, não havia ribeiros na espécie
humana. É bom que haja uma e outra coisa. A Providência quis que, ao pé de uma
cachoeira despenhada como a Joaquina, houvesse um regato manso como eu. Nisto é
que está a harmonia.
Devo dizer que Silvestre, quando casou com D.
Joaquina, não lhe conhecia a facúndia, nem a impetuosidade. E é possível que
ainda nesse tempo a boa senhora não tivesse desenvolvida a vocação. Foi um
namoro começado por ocasião das festas da coroação. Um parente de Silvestre deu
um jantar, onde se encontraram as duas famílias, a dele e a de Joaquina. Era
fama que esta moça não casaria nunca, porque andavam já por cinco ou seis os
pretendentes que ela despedira com uma rispidez anunciadora dos seus hábitos
futuros. Grande foi, pois, a admiração dos pais, quando três meses depois, indo
Silvestre pedir-lhes a mão de D. Joaquina, receberam dela uma resposta
afirmativa.
— Hão de ser felizes, dizia a mãe; ela que
até agora recusou todos os casamentos, é porque Deus lhe guardava este.
Efetivamente foram felizes. Silvestre dava-se
perfeitamente com o gênio da mulher. D. Joaquina irritava-se, às vezes, com a
impassibilidade do marido, e soltava contra ele os seus discursos; mas, como
Silvestre não articulava sequer uma queixa ou censura, a senhora D. Joaquina
acabava, como ele mesmo dizia consigo, por “meter a viola no saco”.
Esta D. Joaquina, pois, era o ponto negro da
vida de Jorge. Às dez horas, quando muito, devia o rapaz recolher-se a casa.
Silvestre advogava a causa do filho. Observava que o rapaz não podia ter uma
vida de freira; mas a palavra freira, tão indiferente na boca de outra pessoa,
na de D. Joaquina dava um discurso de dez páginas in-fólio. O marido calava-se e a ordem da senhora D. Joaquina
prevalecia.
Jorge obedeceu durante muito tempo às ordens
da mãe, mas os conselhos dos amigos foram pervertendo o seu espírito reto e
casto. Jorge entrou um dia às 11 horas da noite; a mãe, que até então se não
deitara, veio em pessoa abrir-lhe a porta.
— Oh! mamã! exclamou ele, espantado.
D. Joaquina não disse palavra, fechou a porta
e subiu silenciosamente adiante dele. Foi o único lance em que deixou de falar,
e realmente nunca fora mais sublime em sua vida.
Daí em diante, não ousou Jorge transgredir as
ordens da mãe; mas como os passeios, teatros e festas não se podiam combinar com
esta obediência, o jovem bacharel arranjou uma chave sua, e por meio dela,
batia a linda plumagem.
Além disso, alcançava facilmente convite para
saraus e bailes, objeto em que a boa velha consentia na ausência do filho.
Com esses e outros pretextos, que em
circunstâncias especiais lhe ocorriam, conseguira o nosso Jorge Aguiar iludir a
vigilância e as ordens da velha. Quem se não enganava era o pai, que o via sair
muitas vezes, e enxergava a verdadeira razão dos seus numerosos convites; mas o
bom Silvestre aplaudia os escrúpulos do filho e tirava deles um bom agouro para
a vida política do rapaz.
CAPÍTULO 3: CLARINHA
Quando Jorge Aguiar chegou a casa, D.
Joaquina dava as suas últimas ordens para uma grande porção de doce de coco, e
tomava conhecimento da tarefa que dera de manhã a duas crias empregadas em
costurar. Silvestre jogava o gamão com o padre Barroso, enquanto Clarinha
tocava ao piano umas variações alemãs.
Esta Clarinha, que entra em cena sem se fazer
anunciar, era uma sobrinha de D. Joaquina, e portanto prima de Jorge. Era ainda
criança quando perdera a mãe; e o pai, que dois anos antes se apaixonara por
uma italiana que viera ao Rio de Janeiro, com o infundado pretexto de que era
cantora, acompanhou a dama dos seus pensamentos, e andava agora pela Itália em
sua companhia. Tanto valia estar morto para a pobre órfã. D. Joaquina recebeu
em casa a sobrinha e tratava-a como se fora filha sua.
Tinha esta moça uma não vulgar formosura, a
que dava realce um ar de profunda melancolia. A melancolia era natural; nascida
para viver em tal ou qual abastança, vira o pai esbanjar os cabedais herdados,
e perdera a mãe na idade em que mais precisava dela. Depois, foi estouvadamente
abandonada pelo pai e obrigada a receber os favores dos tios. Isto, reunido à
índole da moça, fazia com que raras vezes lhe assomasse aos lábios um riso
prazenteiro.
Clarinha vingara-se dos golpes que lhe dava o
seu mau destino, instruindo-se e aprendendo a trabalhar com uma docilidade que
encantava a senhora D. Joaquina. Esta boa senhora dizia que a sobrinha havia de
ser a herdeira da sua competência na arte de governar a casa. Efetivamente, era
difícil achar em tão verdes anos, — 18 contava ela, — tanta seriedade,
prudência, atividade e ordem. Os momentos vagos, dava-os a moça ao estudo da
música e da língua francesa, porque o seu fim era poder lecionar algum dia, e
achar nessa profissão os meios de subsistência de que viesse a carecer.
D. Joaquina aprovava esta previsão da
sobrinha, mas procurava dissipar-lhe tais receios, dizendo que enquanto ela
vivesse, e ainda depois que se finasse, a sobrinha não precisaria de nada. Além
disso, estava moça, e um casamento viria pô-la ao abrigo de toda a necessidade.
— Um casamento? dizia Clarinha, com ar
triste; isso não é para mim.
— Por quê?
— Quem quererá casar comigo?
— Quem não for tolo, dizia a boa velha. Vejam
lá se é fácil achar uma esposa como tu hás de ser!
Clarinha abanava a cabeça e ficava pensativa.
O procedimento da moça confirmava as suas
disposições celibatárias. Parecia indiferente a todos os homens, não se
enfeitava para ir aos bailes, quando ia a eles não dançava, raras vezes chegava
à janela, e era de todo surda aos louvores que a sua beleza lhe granjeava.
Usava ordinariamente roupas escuras por lhe parecerem cores tristes; os modos
eram modestos e acanhados; falava pouco, e, como disse, raras vezes ria.
Estava ela a tocar piano na sala, a pedido do
padre Barroso, que era doido por música, e dizia com aquele ar que a natureza
só concede aos gamonistas intrépidos, que era bom suavizar musicalmente as
derrotas do Comendador Aguiar. O certo é que o dono da casa ganhava poucas
partidas ao padre.
— Dois e ás, disse o Comendador, lançando os
dados e batendo numa das tábulas do padre.
— Tire o cavalo da chuva! respondeu o padre,
chocalhando os dados no copo. Agora é que vai ver o que são elas. Preciso de
umas quadras.
— Homem, jogue e deixe-se de conversa.
O padre lançou os dados.
— Quadras! disse ele.
Silvestre Aguiar coçou o nariz, enquanto o
implacável padre, depois de lhe bater em duas tábulas, empalmava o lenço
encarnado na mão, e assoava-se com estrépito.
— Isto sem rapé não vai, observou ele.
— O moleque ainda não viria? disse Aguiar.
Não sei que descuido foi este meu de não ter comprado ontem.
Clarinha cessou de tocar; ia a levantar-se
para saber se efetivamente o moleque não tinha voltado, mas o tio disse-lhe que
não era preciso.
Nesse momento, entrou Jorge na sala; beijou a
mão ao pai, apertou a do padre Barroso, e foi cumprimentar a prima.
— Então? disse o padre a Silvestre em voz
baixa; por que não casam estes dois?
— Se eles quiserem, não lhes ponho dúvidas,
respondeu Silvestre; mas são coisas que se não obrigam. Creio que não se
namoram. Demais, o rapaz anda a desasnar-se.
— Há de me perdoar, disse o padre, cuido que
anda a perder-se. Olhe, que estes hábitos de mocidade rara vez se perdem. Coíba
os desvarios de Jorge; não lhe hão de dar bom proveito.
— Eu fui o que ele vai sendo, respondeu
Silvestre, e todavia ninguém me vence em bom comportamento. Deixe estar, padre,
que ele há de seguir os exemplos do pai.
Jorge trocou algumas palavras com a prima, e
retirou-se para o seu aposento, enquanto a moça continuava a tocar e os dois
velhos decidiam a partida.
Entrou, então, na sala um novo personagem: o Dr.
Marques, homem de seus quarenta e quatro anos, corado, vigoroso, um tanto
grisalho de barba e dos cabelos. Era o médico da família; conhecia o Comendador
quase desde a infância, e entretinha laços de nunca desmentida amizade. Ele e o
padre eram os dois mais íntimos da casa.
— Chega a propósito, disse o padre. Traz a
caixa?
— Pois não, disse o recém-chegado depois de
ir apertar a mão a Clarinha.
— Graças a Deus; venha de lá uma pitada.
— Duas, duas! emendou Silvestre; há de sofrer
dois ataques, um por bombordo e outro por estibordo.
Ambos os gamonistas esfregaram os dedos no
lenço, e sacaram da boceta do Dr. Marques duas grossas pitadas. O padre inseria
a sua em ambas as ventas, e com o lenço sacudia o pó que lhe caíra na camisa,
enquanto o Comendador, carregando com o dedo polegar na venta direita,
introduzia toda a pitada na venta esquerda.
Marques deixou os dois velhos entregues ao
gamão e dirigiu-se ao piano, na ocasião em que a moça se ia levantar para
deixar a sala.
— Não quer tocar mais? perguntou Marques.
— Tenho que fazer... murmurou Clara em voz
baixa e sem levantar os olhos.
Marques lançou um rápido olhar para os dois
gamonistas, e vendo que estavam entretidos com os dados, murmurou ao ouvido da
moça:
— E a resposta?
— Deixe-me sair... respondeu Clarinha.
E caminhando rapidamente para a porta,
desapareceu da sala. Marques ficou ao pé do piano com o ar embaçado que o
leitor naturalmente imagina, enquanto o padre Barroso, deitando os dados,
exclamava alegremente:
— Coitadinho, Comendador, coitadinho!
CAPÍTULO 4: UM CONSELHO
Marques foi ter com Jorge. Encontrou o filho
do Comendador a ler um romance de Feydeau. Fechou a porta do gabinete, puxou
uma cadeira e foi sentar-se junto de Jorge. Este marcou a página com uma conta
do alfaiate e sem mudar de posição, disse ao hóspede:
— Temos novidade?
— Nenhuma, respondeu Marques, e é justamente
o pior.
— Que há?
— Perguntei-lhe agora pela resposta, e ela
não me disse nada; mas saiu da sala com um modo que me tira toda a esperança.
Creio que o seu conselho de escrever a carta foi mau.
— Mau! disse Jorge. Em nenhum caso podia
sê-lo; uma carta não prova nada contra o senhor; podia, e pode dar um bom
resultado. Quer que lhe diga uma coisa?
— Que é?
— Não desanime. A prima há de ceder, porque
não pode encontrar melhor marido que o senhor... O senhor é capaz de a fazer
feliz. Se ela não lhe respondeu é por excesso de reserva. Tem medo de que lhe
levem a mal. Olhe, por que não fala a minha mãe?
— A sua mãe?
— Sim, ela obedece-lhe muito; estou que é um
bom caminho. Vá, fale, e a coisa tomará bom caminho.
Marques levantou-se, tomou uma pitada, deu
alguns passos no gabinete, concertou as suíças a um espelho e voltou a assentar
ao pé do sofá.
— Mas está certo, disse ele, de que não há
outro namoro?
— Certo, não lhe digo que esteja, mas tudo
faz crer que não. Clarinha é muito metida consigo, e passa a vida ocupada nos
arranjos da casa. Estas coisas mais ou menos se sabem ou desconfiam. Nada me
consta a respeito dela... Tome o meu conselho; fale com minha mãe.
— Está dito! exclamou Marques; tomo o seu
conselho.
Trata-se, como se vê, de um amor que o médico
da casa dedicava à sobrinha de Silvestre Aguiar. Este amor, não o quero dar
como uma dessas paixões infrenes e fogosas da juventude, nem com um desses
amores tardios que nascem com a maturidade. Era uma afeição branda, temperada,
refletida. Marques nunca fora casado; o celibato fora o programa de toda a sua
vida, e sê-lo-ia até ao dia da morte, se as qualidades de Clarinha, a sua
aplicação ao trabalho, os seus hábitos inocentes e graves, lhe não tivessem
influído no ânimo a ponto de lhe despertar a ideia do matrimônio.
O espetáculo de uma vida plácida no meio da
família começou a seduzir-lhe o coração. A razão veio auxiliar este impulso
natural; comparou o que seria uma velhice solitária com uma velhice cercada dos
cuidados de uma esposa digna desse nome. Clarinha parecia reunir as qualidades
necessárias para o papel de sua companheira, e o médico, que tinha intimidade
com Jorge, confiou-lhe tudo. Jorge aconselhou-lhe a arma epistolar e Marques,
com a docilidade de quem está disposto a tudo, arriscou logo a primeira carta à
moça.
A esta carta é que aludia. Já sabemos que a
moça, não só não lhe respondera, mas até parecia fugir ao pretendente. Isto
podia ser algum namoro, como sugerira a Jorge, mas também podia ser natural
reserva de Clarinha, que observava rigorosamente as rígidas doutrinas de D.
Joaquina. Na opinião desta boa senhora, a noiva só devia conhecer o noivo no
dia do casamento.
— E já é conceder muito, acrescentava ela.
Certamente, a esposa do velho Aguiar já se
não lembrava das festas da coroação, nem do namoro travado naquele tempo com o
futuro Comendador. Era natural; cada qual tem as ideias da sua idade; aos
cinquenta anos não se compreendem muito as loucuras dos vinte. Aos vinte,
parece esquisita a austeridade dos cinquenta.
Clarinha deixava-se guiar pelas ideias da
tia; era provável que a sua reserva fosse apenas o resultado desta influência.
O certo é que Marques nada havia adiantado,
quando Jorge lhe sugeriu a ideia de ir falar à mãe, ideia que o médico aceitou
e resolveu pôr em prática no dia seguinte.
Não se pense, entretanto, que o conselho de
Jorge de algum modo exprimisse interesse pela causa do pretendente. Era-lhe de todo
indiferente que a prima casasse com este ou com aquele. Daria o mesmo conselho
a qualquer pessoa que lho pedisse. O principal cuidado do filho do Comendador
era gozar a vida ao ar livre, sem preocupações de espécie alguma. A dama que
passara na Rua do Ouvidor, quando ele conversava com os dois amigos,
merecia-lhe mais (é duro de dizê-lo) que a prima. Em duas palavras, Jorge
estava já adiantado na carreira da libertinagem.
Apenas o médico saiu do gabinete, Jorge
continuou a leitura do romance. Daí a pouco, vieram chamá-lo para jantar;
jantou, dormiu um pouco, à noite simulou que tomava chá, recolheu-se ao quarto,
e às dez e meia, quando a mãe supunha que toda a casa repousava no regaço das
suas boas doutrinas, abria o nosso Jorge a porta e corria afoitamente ao prazo
dado.
CAPÍTULO 5: COMO SE PERDE UM RAPAZ
Eu creio que o leitor dispensa uma descrição
da festa em que Jorge figurou como um dos mais destacados. Foi uma das
primeiras ceias que se têm dado nos hotéis desta cidade. Acabou quando a aurora
anunciava os primeiros albores, e os varredores das ruas concluíam a sua
tarefa.
Jorge deixou-se entrar alguma coisa pelo
vinho, e foi para casa um tanto perturbado da razão. Felizmente, ninguém o viu
entrar; dirigiu-se para a cama, onde dormiu até meio-dia, tendo tido cuidado de
ordenar ao criado, confidente das suas aventuras, que dissesse à velha que ele
havia passado mal a noite. A boa senhora ficou muito aflita quando o criado lhe
transmitiu esta notícia, mas ordenou que o não fossem acordar; era esse
justamente o desejo do filho.
Essas aventuras foram muitas e muitas vezes
repetidas. Jorge completou a sua educação com tal arte que adquiriu logo um
respeitável nome entre os mais tresloucados da terra fluminense. Não havia
banquete, passeio, loucura, em que Jorge de Aguiar não tivesse parte conspícua.
O pai dava-lhe algum dinheiro; Jorge não se
detinha em o gastar às mãos largas. Nos primeiros dias, ainda o dinheiro podia
ocorrer às necessidades, mas não tardou que a receita ficasse muito abaixo da
despesa. Quando este fenômeno se dá, quer nas finanças de um indivíduo, quer
nas de um Estado, surge uma coisa que se chama déficit. Jorge achou-se senhor de um déficit. Tinha dois recursos: o trabalho, ou o crédito. O crédito
tinha a grande vantagem de dispensar o trabalho. Jorge consertou as suas
finanças deixando algumas dívidas em aberto ou recorrendo à bolsa de alguns
usurários.
Desta maneira, conseguiu não perder a posição
brilhante que adquirira nem os afagos desinteressados de algumas damas do
tempo. O processo destas damas era geralmente uniforme. Manifestavam por ele
uma louca e desenfreada paixão, e durante quinze ou vinte dias falavam-lhe de
uma vida celeste e romântica, de uns amores puros e recatados. Não hesitavam em
sacrificar-lhe antigos adoradores e modernos pretendentes. Jorge subia ao
sétimo céu. Em tese, não acreditava no amor, nem delas nem de ninguém;mas, na
hipótese, lisonjeava-se de ter fixado uma borboleta volúvel e doida.
Essa crença, toda gratuita, sofria algum
abalo no vigésimo primeiro dia, quando a borboleta fisgada enviava ao namorado
uma conta da Notre Dame, uma letra
vencida, ou um simples pedido de aluguéis atrasados. Jorge pagava largamente
esta desilusão.
Não pagava só estas. Na sociedade em que ele
ocupava um dos primeiros lugares, havia também uma casta de homens, cujas
doutrinas comunistas tinham o único defeito de só se aplicarem às algibeiras
alheias. A de Jorge era uma algibeira fácil e pronta; além disso, o filho do
Comendador tinha certo amor-próprio, e por nenhum preço queria que lhe
chamassem pinga.
Esses e outros golpes, quem os sofria era o
pai, que pagava as contas, as letras e as leviandades do filho. No fim de
alguns meses, achou o Comendador que a aprendizagem de Jorge já lhe ia custando
caro; em todo o caso, devia estar feita.
— Bem, disse ele consigo, agora já ele há de
estar enfadado da vida solta, e pode cuidar das coisas sérias. É um grande erro
querer meter os rapazes em coisas sérias antes de eles se terem enfadado das
coisas frívolas: quem não erra na mocidade, erra na velhice. Tratemos de o
arranjar.
Era tarde.
Jorge estava calejado no vício; tinha andado
mais em poucos meses do que outros em muitos anos. Era impossível chamá-lo à
razão. Silvestre arranjou os meios brandos, mas nada fez; lançou mão dos meios
enérgicos, e a resistência que encontrou fez-lhe conhecer todo o mal da
situação que ele mesmo criara.
D. Joaquina não deixou escapar a ocasião de
fazer ao marido ásperas e merecidas censuras. O rapaz já não lhe obedecia; a
boa senhora achou a causa desta resistência na docilidade com que Silvestre
suportou os primeiros erros do filho. Eu poderia dar um extrato do discurso com
que D. Joaquina descreveu esta situação perante o marido abatido e
envergonhado; mas arriscava-me a não acabar o conto, do mesmo modo que ela não
acabou o discurso, porque só se calou quando lhe faltou o ar.
CAPÍTULO 6: O CASAMENTO
Durante estes meses de loucuras de Jorge, a
situação do Dr. Marques pouco tinha adiantado, mas adiantara alguma coisa. O
pretendente expusera à tia de Clarinha os seus desejos depois de dois meses de
hesitação, e a boa senhora, aprovando as intenções do médico, só impôs a
condição de que a sobrinha o amasse.
— Ah! minha senhora, disse Marques, a este
respeito não posso afiançar nada. Não sei se sou ou não amado: D. Clarinha é
tão acanhada que não deixa campo a investigações deste gênero.
— Pois bem, redarguiu D. Joaquina, eu tomo a
mim a incumbência de consultar-lhe o coração. Imponho esta condição, porque
conheço bem Clarinha; sei que é uma rapariga de muito juízo, e digna de
escolher o seu próprio esposo. Em circunstâncias diversas, eu é que lhe havia
de dar o noivo.
D. Joaquina cumpriu a palavra. Perguntou a
Clarinha se ela nunca havia pensado em casar.
— Casar? eu? perguntou a sobrinha.
— Sim, tu.
— Não, nunca pensei.
Clarinha disse estas palavras em tom frio e
indiferente; todavia, pareceu a D. Joaquina que esta ideia a entristecera.
— Dar-se-á caso que já o ame? disse a velha
consigo mesma.
Correram alguns minutos de silêncio.
— Sabes que alguém deseja casar contigo?
disse enfim a mulher de Aguiar.
— Casar comigo? perguntou a moça, abrindo
muito os olhos.
— Sim contigo.
— Titia está brincando.
— Brincando por quê? Não mereces ser
pretendida por alguém?
Clarinha não respondeu.
— E essa pessoa é muito nossa conhecida.
— Ah!
— Já reparaste?
Clarinha levou a mão ao coração.
— Não, murmurou ela.
— Não adivinhas quem seja?
— Não posso adivinhar.
— O Dr. Marques.
Clarinha empalideceu. A boa velha não tirava
os olhos dela para ver se lhe lia no rosto os sentimentos do coração. Mas
verdade, verdade, D. Joaquina não sabia traduzir fisionomias. A comoção de
Clarinha, qualquer que fosse a causa, pareceu-lhe que era de bom agouro para o
médico.
— Ama-o, não tem dúvida, disse ela consigo.
Tudo está arranjado.
Clarinha recobrou a palavra no fim de dez
minutos.
— Titia, murmurou ela; a senhora sabe o que
me convém, e eu estou
às suas ordens.
— Ordens, não, disse D. Joaquina; isto não é
uma ordem; é uma
consulta.
— O Dr. Marques, disse Clarinha, é um
excelente homem...
— E um excelente marido? concluiu D. Joaquina
rindo.
Clarinha não respondeu.
O silêncio da moça foi interpretado como um
assentimento, e a esposa do Comendador imediatamente deu parte ao médico do
resultado da sua missão.
Clarinha, apenas ficou só, correu ao quarto e
debulhou-se em lágrimas, — lágrimas silenciosas e sufocadas, para que ninguém
lhas ouvisse nem suspeitasse sequer. Depois, tirou de uma gaveta um retrato,
contemplou-o longo tempo, e beijou-o repetidas vezes. Quando reapareceu na sala
tinham desaparecido os vestígios das lágrimas. Estava triste; mas como esse era
o natural estado da moça, ninguém procurava saber-lhe a causa.
Quando Marques soube do resultado da missão
de D. Joaquina não pôde esconder o seu regozijo.
— Acho, porém, conveniente, disse a mulher de
Aguiar, que o senhor ouça da própria boca de Clarinha a confissão, da qual eu
só alcancei metade.
Não hesitou Marques em sondar por si próprio
o coração de Clarinha. Era ele um homem honesto e de nenhum modo queria casar
com ela sem ter a certeza de que ela não o faria obrigada.
O resultado desta nova experiência foi mais
satisfatório ainda que o da primeira. A moça não lhe confessou amor com os
termos de um coração apaixonado; mas teve palavras tão afetuosas para o médico,
que o casamento foi logo decidido por parte da senhora D. Joaquina.
Silvestre Aguiar teve participação de que o
casamento da sobrinha devia realizar-se dentro de um mês e meio. Pediu-se-lhe o
consentimento apenas como uma formalidade, porque a decisão de D. Joaquina era
bastante para o caso. Aguiar nada tinha que opor; aplaudiu, pelo contrário, a
união.
— Eu sempre dizia, observou ele, que este
doutor era um grande velhacão. Esta habilidade com que nos bifa a pequena é
prova de que você nasceu com um sentido de mais.
Não ouviu tão alegremente o Padre Barroso,
que era considerado pessoa da família, esta notícia, que lhe foi dada com o
pedido de aprovação.
— Eu não tenho nada que desaprovar, disse o
padre, mas... a Clarinha gosta dele?
— Isso não se pergunta! exclamou D. Joaquina.
O padre olhou para a sobrinha do Comendador;
e no rosto dela leu uma satisfação tão pronunciada, que não fez mais do que
encolher os ombros e dar os parabéns à noiva e aos tios.
Mas nessa mesma tarde, achando-se a sós com a
moça, perguntou-lhe o padre:
— Que é isso, Clarinha? então aquele amor?...
— Aquele amor morreu, respondeu a moça
tristemente; era um amor sem esperança, e amores destes, ou morrem ou matam.
Era talvez melhor que me matasse; mas Deus quis que morresse. Não me queixo;
obedeço ao meu destino.
O padre abanou a cabeça.
— Não, Clarinha, disse ele, esse amor não
morreu: tu ainda o sentes e isso é mau, minha filha; é mau que cases com um
homem, amando a outro...
— Oh! não! não! disse Clarinha. Afirmo-lhe
que morreu; e se não morreu, juro-lhe que há de morrer.
— Juras! pobre criança! sabes o que estás
jurando?
Duas lágrimas rebentaram dos olhos da moça.
Viu-lhas o padre; e cingiu-a ao peito.
— Clarinha, eu não consinto nisso. Hás de
casar com Jorge... Eu quero que cases com ele!
— Isso nunca! disse Clarinha. De que me
serviria ser mulher de um homem que não me ama, nem pode amar?
— Sim, Jorge está perdido, murmurou o velho
sacerdote com ar triste.
— Vou casar com um homem sério, continuou a
moça; não lhe tenho amor, é verdade; mas tenho-lhe certo afeto e respeito;
estou que seria feliz, — tanto quanto o pode ser uma pessoa desgraçada.
Peço-lhe que nada diga a este respeito; far-nos-ia mal a todos.
Barroso abraçou a moça.
— Clarinha, tu és uma boa alma. Merecias ser
feliz! A culpa disto é de teu pai. Se ele não te abandonasse, talvez não
viesses a amar teu primo, porque esse amor nasceu da convivência. Teu pai...
— Perdoe-lhe, disse a moça; meu pai tem má
cabeça, mas é bom coração. Vamos; promete que não tentará desfazer este
casamento?
— Se o quer, prometo.
— Obrigada! disse a moça, beijando a mão ao
padre.
Foi este quem celebrou o casamento. O bom
velho tremia na ocasião de proferir as palavras sagradas. Depois, quando a cerimônia
acabou, disse ao noivo em voz baixa e procurando reter uma lágrima que lhe
tremia na pálpebra:
— Faça-a feliz, que ela o merece.
Jorge assistiu ao casamento, fez um
cumprimento banal à noiva, disse quatro ou cinco graças chulas a alguns dos
rapazes que assistiam à cerimônia, e foi acabar a noite no Alcazar.
Saltemos agora uns onze meses. Todos os
personagens desta história estão ainda vivos. O Comendador continua a jogar o
gamão com o padre; a facúndia de D. Joaquina tem perdido com os anos; quanto a
Jorge, desfruta a reputação de libertino criada à custa do pai. Silvestre
procurou todos os meios de arrancar o filho à carreira funesta em que ele mesmo
o lançara, mas era impossível; a obra estava feita.
Alguma coisa havia conseguido Aguiar; conseguira
dar-lhe um emprego, a ver se ele contraía hábitos de trabalhar. O rapaz viu no
emprego mais uma fonte de renda e apenas lhe concedia algumas horas vagas.
Assinava o ponto às 9 horas (o que já era uma correção) e retirava-se da
repartição às onze. Não faria isso sempre, para não acostumar mal o Estado;
deixava de lá ir muitas vezes. Não constava, porém, que nessas folgas estivesse
incluído o dia primeiro do mês.
Marques era feliz; encontrara na mulher o
ideal que havia sonhado: uma boa caseira, afetuosa, cheia de desvelo e
respeito. Clarinha não era feliz; mas também não era desgraçada. O marido era
um homem honesto, que vivia por ela e para ela, e procurava todos os meios de
lhe fazer uma vida de rosas. Doía-lhe, é verdade, uns longes de melancolia que
a moça nunca pudera apagar da fronte; mas isso, dizia ele, era natureza.
— Fui sempre assim; é meu modo. Nunca me
conheceu outra, creio
eu.
— É verdade que não, respondia o médico; mas
se eu pudesse vencer esse modo...
— Eu sou feliz, dizia a moça com um sorriso
triste.
Uma noite, o Comendador Aguiar, que
raríssimas vezes ia ao teatro, e tinha neste assunto as mesmas ideias de 1840,
resolveu ir ver uma peça no Ginásio. A mulher não foi; detestava o teatro.
Aguiar comprou o competente bilhete e entrou para a plateia. No fim do ato,
saiu ao saguão e encontrou um amigo.
— Tu aqui? disse este. É coisa rara.
— É verdade, respondeu o velho. Também sou
gente; quis ver estas coisas novas. E tu?
— Eu ainda me não aposentei. Onde estás?
— Nas cadeiras.
— Vem ao meu camarote.
Aguiar foi para o camarote do amigo que era
na segunda ordem. Levantou-se o pano e a peça continuou. No meio do ato,
abre-se a porta do camarote contíguo àquele em que estava o Comendador, e entra
uma mulher. Pelo desgarre das maneiras e aparato do luxo, não era difícil
reconhecer nela uma das damas da moda. Voltaram-se para ela todos os olhos,
assestaram-se os binóculos e lunetas, e durante uns cinco minutos o espetáculo
não esteve no palco, mas na sala. É inútil dizer que a dama anônima não tinha
outro juízo, entrou no meio do ato para chamar a atenção de todos: era uma
vaidadezinha inocente, que seria ridícula, se não fosse um recurso de ofício.
Silvestre olhou para ela como toda a gente.
Logo atrás da dama entrou um rapaz elegante, com o rosto avermelhado, e meio
trôpego.
Aguiar reteve um grito.
Era Jorge.
Trêmulo e fulo de raiva, Silvestre
levantou-se e cravou os olhos no filho. Este, porém, não vira o movimento do
vizinho; correu os olhos pelos camarotes fronteiros e sentou-se ao lado da
dama, mas encoberto por ela.
Era o mais que ele podia conceder ao decoro.
O Comendador continuava de pé, com os olhos
no filho, que ficou justamente em frente dele. Jorge, depois de assestar o
binóculo à cena e alguns camarotes, assentou-se preguiçosamente na cadeira, e
foi então que viu o pai.
Estremeceu.
Silvestre não lhe tirava os olhos de cima.
Duas vezes Jorge afastou os seus, mas duas vezes os dirigiu de novo ao pai, até
que, levantando-se, pegou no chapéu e saiu.
Aguiar não esperou que acabasse o espetáculo.
Voltou para casa, perguntou se o filho já
havia chegado; responderam-lhe que sim. Mandou-o chamar ao seu quarto, e o
rapaz não se deteve; foi ter com o pai e arrojou-se-lhe aos pés.
O Comendador lançou-lhe em rosto o seu
procedimento, e declarou-lhe que, se não mudasse de vida, era obrigado a pô-lo
fora de casa.
O rapaz retirou-se para o quarto
envergonhado, irritado, mas ainda não arrependido. Não acusava a fatalidade que
o levou a encontrar o pai no teatro, onde nunca ia. Imaginou se seria denúncia
de algum desafeto, fez mil planos e dormiu profundamente até à hora do almoço.
O velho Aguiar referiu ao padre a cena do
teatro, e pediu-lhe conselho para o caso em que o filho se não emendasse.
O padre refletiu alguns instantes.
— Não sei que conselho te dê, disse ele; o
melhor é ver se o estroina se emenda. Queres que eu lhe fale?
— Sim, fala-lhe.
— A culpa é tua, Comendador; tu mesmo o
perdeste com as tuas facilidades. Não te disse muita vez, que essa ideia de o
deixar viver à rédea solta era má? O resultado foi este.
O Padre Barroso mandou dizer a Jorge que o
esperava em casa. O recado causou algum espanto ao rapaz: Que lhe teria de
dizer o padre? Suspeitou logo a verdade.
Apesar da resolução que tomou de não aceder
ao convite do padre, Jorge foi à casa dele. O padre já o esperava há muito. A
casa era modesta; os móveis singelos e encanecidos no serviço.
O padre estava diante de uma escrivaninha,
sentado numa velha cadeira de couro, de alto espaldar; em frente, tinha aberto
um volume in-fólio, que o bom velho
lia com atenção e recolhimento. Não se moveu, quando entrou na sala o filho do
Comendador, conduzido pelo criado. Fez um gesto a este, que se retirou, e
continuou a ler até o fim da página.
Depois fechou o livro, convidou o rapaz a
sentar-se ao pé dele, e perguntou-lhe:
— Jorge, até quando quer continuar esta vida?
Jorge não respondeu. O padre contava com o
silêncio, e continuou:
— Seu pai fundava muitas esperanças no
senhor. Desvelou-se em lhe dar um meio de vida e uma posição na sociedade. Tudo
isto lhe desfez o senhor, entregando-se a uma vida libertina. Quando seu pai
conheceu o mal, este era quase irremediável. Seu pai, entretanto, não supunha
que o senhor chegasse ao ponto de dar o espetáculo de ontem à noite. Imagine,
se pode, a dor e a vergonha que lhe causou.
Calou-se o padre, por alguns instantes, e
continuou:
— Ainda é tempo; nem tudo está perdido. Pode
salvar-se; deve salvar-se.
— Senhor Padre Barroso, disse Jorge, eu não
nego que a minha vida tem sido um pouco livre; mas eu não faço nada do outro
mundo.
— Bem sei, bem sei, redarguiu o padre; tudo o
que o senhor faz é deste mundo; e neste mundo é que se fazem as piores coisas...
— Mas eu não faço nada que mereça emenda...
O padre fez um gesto de impaciência.
— E o escândalo de ontem à noite? disse ele.
— O que houve ontem à noite foi um acaso.
— Um homem sério não se expõe a estes acasos.
Jorge franziu a testa.
— Oh! escusa de fazer gestos de estranheza;
eu sou velho, sou rude e sou sacerdote; tenho o direito de lhe dizer a verdade.
O senhor é um homem doido, e é o menos que lhe posso dizer.
O padre proferiu estas palavras em voz alta e
intimativa. Jorge sentiu, a seu pesar, a influência da autoridade do bom velho.
Não lhe respondeu. Barroso insistiu em obter dele a promessa de que procuraria
carreira e triunfaria dos maus hábitos contraídos.
Jorge refletiu algum tempo e respondeu:
— Pois bem, prometo emendar-me.
— É de coração?
Jorge hesitou.
— É, disse ele depois de algum tempo.
Não era de coração, mas o bom padre era um
homem sincero; acreditava firmemente na sinceridade dos outros.
— Tanto melhor, disse ele. Emende-se, Jorge;
verá que ganha com isso. Calcule a alegria que dará a seus pais. Quando me
lembra...
O velho suspirou.
— Quando se lembra? repetiu Jorge.
— Quando me lembra, continuou Barroso, que
você podia ser hoje um homem feliz ao lado de uma mulher feliz... de uma mulher
que o amou...
— Uma mulher? perguntou Jorge. Quem era?
O padre ia a dizer o nome de Clarinha; mas
lembrou-se repentinamente o perigo que podia haver nessa declaração, em vista
do atual estado da moça.
Calou-se.
— Quem é essa mulher, repetiu Jorge?
O velho levantou-se sem responder.
Jorge olhava para ele e procurava na memória
algum vestígio que lhe indicasse a mulher a quem o padre aludia. Não se lembrou
de ninguém. Insistiu com o padre para que lho dissesse.
— De que serviria isso? respondeu o velho
sacerdote; o bem que ela lhe podia fazer é já impossível...
— Impossível?
— Sim, impossível.
— Por quê?...
— Porque... morreu.
Jorge não acreditou que a pessoa de quem se
tratava houvesse morrido, segundo dizia o padre.
— Mas se morreu, objetou ele, que mal há em
dizer-me o nome dela? Espere... trata-se... querem ver... que essa moça é...
Clarinha?
O padre abanou a cabeça.
— Não, não me engano, disse consigo o estroina,
é ela!
— Não importa saber quem seja, disse Barroso;
voltemos ao nosso ponto; o que lá vai, lá vai. Prometeu-me já emendar-se; está
disposto a emendar-se?
Jorge teve o pudor de não repetir uma
promessa que não estava disposto a cumprir; mas estendeu-lhe a mão com um gesto
que parecia corresponder à pergunta do padre.
— Deus o ilumine, disse este. Vamos, faça que
eu não morra sem o ver reabilitado. Fui eu que o batizei; não me deixe morrer com
a ideia de que não pude salvar pela segunda vez uma alma que me foi confiada.
O padre disse estas palavras com paternal
brandura, Jorge correspondeu a elas com uma aparência de humildade. Estava
ansioso por sair. Despediu-se e saiu.
CAPÍTULO 7: BATALHA CAMPAL
Não saiu convertido, como pensava o austero
velho; os conselhos e as promessas não lhe deixaram vestígios na memória.
Dentre tudo o que lhe havia dito o padre Barroso, uma coisa flutuava no
espírito de Jorge: era a ideia de que a Clarinha o amara.
Se lho houvessem dito noutro tempo, é
provável, é quase certo que Jorge levantaria os ombros e iria contar o caso aos
amigos mais íntimos. Ser amado por ela queria dizer um casamento, uma vida
menos solta, obrigações sérias, coisas que Jorge achava inconciliáveis com a
sua razão. Mas agora mudava o caso de figura; a ideia de que uma senhora casada
o havia amado em solteira, abria aos olhos de Jorge uma perspectiva de
esperanças e dava à sua vida um aspecto novo.
— Na verdade, dizia ele consigo, esta vida já
me enfada. É bom descansar um pouco; achar-lhe-ei depois mais sabor. Um amor de
romance tem toda a vantagem de ser uma coisa nova para mim. A Clarinha amou-me;
quem sabe se me não amará ainda?
Nestas e outras reflexões do mesmo teor,
gastou Jorge a noite inteira. Meter-se numa aventura de romance, apaixonar-se
pela prima, tinha até a vantagem de lhe dar aparências de reabilitação, pois
forçosamente havia de consagrar a isso o tempo que era agora aplicado às
loucuras da mocidade.
Com estas ideias, acordou no dia seguinte.
Achou o pai ainda severo; e para começar a ilusão que premeditava não saiu de
casa nesse dia. Recolheu-se ao gabinete, onde a mãe o foi encontrar a ler.
Desse dia em diante, adotou um programa de vida, que de todo ponto iludiu a família
e o padre. Silvestre recobrava a alegria que o sucesso do teatro lhe fizera
perder, enquanto o padre, cheio de sincero regozijo, perdoava de coração as
loucuras do rapaz. A felicidade ia renascendo naquela casa.
Até então, quando Clarinha ia visitar os tios
não encontrava o primo em casa, o que era para ela uma grande felicidade. A
primeira vez que lá foi, depois dos acontecimentos que acabo de referir, não só
o achou em casa, mas até lhe pareceu mudado o tom das relações entre ele e os
pais. Antes falavam dele com lástima, agora rejubilavam-se ao pé do filho
pródigo. Marques não hesitou em manifestar o seu pasmo ao vê-lo restituído ao
lar doméstico.
— Que quer? respondeu Jorge; estou curado.
— Para sempre?
— Para sempre.
Marques alegrou-se com esta alteração
inesperada. Não pensou assim Clarinha, que vira na presença de Jorge um
obstáculo às suas relações com os tios, não porque ainda o amasse, não porque
temesse por si, mas porque ele era uma recordação viva de um passado ainda
recente.
Jorge adquiriu hábitos de dissimulação que
não diziam com a sua idade ainda verde. Houve-se, em relação à prima, apenas
com a afabilidade ordinária; mas nem por gestos nem por palavras manifestou o
menor conhecimento ou suspeita do amor que ela lhe tivera.
Não lhe escapou, entretanto, a reserva de
Clarinha, a comoção que a sua pessoa lhe causava, vagos indícios de que
realmente o amara antes de casar com o médico.
— Muito bem, doutor, dizia Jorge consigo;
eis-te entrado em nova e melhor campanha. Até aqui tudo foram escaramuças e
recontros. Ofereço-te a batalha campal: é necessário vencer ou morrer. Jorge
começou a frequentar a casa do médico; Clarinha, ao princípio, não lhe
aparecia; mas o primo era sagaz e astucioso; deu-se um dia por convidado a
jantar. A moça não pôde deixar de lhe aparecer. A reserva continuou por parte
dela, mas era difícil conservá-la diante das maneiras respeitosas, da linguagem
afetuosa do rapaz. O pecador parecia arrependido e glorificado no céu.
De mais, Clarinha fez um raciocínio singular
e perigoso, conquanto nascesse da sua consciência honrada e pura. Imaginou que
este fugir ao primo era uma prova de fraqueza, um receio vergonhoso, e que mais
servia os deveres conjugais afrontando a pessoa que amara do que fugindo-lhe.
Fugir-lhe era reconhecer um resto de poder que ela vira estar já extinto.
Não tardou, pois, que entre os dois se
estabelecesse a intimidade antiga, intimidade que aliás fora sempre aparente e
superficial. Jorge iludiu-se a respeito do pensamento da moça; julgou que o amor
lhe havia renascido, e que ela dava o primeiro passo para ele. Ainda assim, não
julgou prudente arriscar um passo que podia ser fatal.
— Cansemos o inimigo, refletia ele; é uma
tática boa, tática de guerra.
E com este pensamento deixou correr os dias
sem romper o silêncio que se impusera.
Jorge notava o desvelo da moça pelo marido, o
afeto que lhe manifestava, a paz que reinava entre ambos, e invejava a sorte do
primo. Pode-se dizer que só então lhe começou a raiar, tenuíssimo embora, um
raio de redenção. O espetáculo da felicidade alheia convidou-o a buscar a
própria felicidade, mas ele reconheceu que a única possível era aquela, e
aquela estava perdida para ele.
Um dia de manhã, entre o charuto e o café,
fez consigo a seguinte reflexão:
— Mas que estou eu a fazer? Isto não pode
continuar nesta situação; é preciso sair da inação. A rapariga já há de fazer
de mim uma tristíssima ideia.
Nesse mesmo dia, estando a conversar com a
prima, disparou-lhe à queima-roupa uma declaração de amor.
Clarinha levantou-se indignada, e respondeu
com um silêncio de desprezo à declaração do primo; saiu da sala e deixou-o só.
Não desanimou o rapaz. Deixou de lá ir alguns
dias; mas voltou com a família. Clarinha não pôde deixar de vir à sala. Jorge
compreendeu que a prima não havia de referir ao médico o que se passara entre
ambos.
— Bem, pensou ele, nem tudo está perdido.
Com o tempo, foi renovando a situação
anterior. Um dia, escreveu uma carta à moça, e deixou-lha sobre o piano na
ocasião em que ela tocava. Clarinha debalde chamou por ele.
— Há de abrir a carta, disse Jorge.
Não a abriu. Quando ele lá foi entregou-lha
intacta:
— Primo, disse ela; reconheça na minha
bondade uma prova do afeto de parente que lhe tenho; porque é bondade ter
ouvido da sua boca palavras insultantes e de eu não ter, como devera,
comunicado a meu marido. Se alguma coisa, entretanto, pode reparar o seu erro é
esquecer-se de que eu existo e não voltar à minha casa.
— Mas por que razão é assim cruel comigo?
disse Jorge procurando dar à voz um tom de lástima e desespero.
Clarinha não respondeu.
— E todavia, continuou Jorge, houve um tempo...
A moça levantou a cabeça e cravou nele um
olhar de espanto.
— Houve um tempo em que o seu coração
palpitou por mim.
— Está dizendo uma loucura, respondeu
Clarinha empalidecendo; tratei-o sempre com estima; mas... Aí vem meu marido;
ouse repetir diante dele a afronta que me faz.
Marques vinha efetivamente no corredor e
entrou logo na sala. Clarinha levantara a voz nas últimas palavras para que ele
as ouvisse; preferia uma solução violenta; Marques, entretanto, não ouvira as
palavras da mulher; entrou alegremente na sala, e apertou com efusão a mão de
Jorge.
Jorge deixou de lá ir três dias; no quarto
dia entrou pela sala com a franqueza que a intimidade lhe dava, e que Marques
estabelecera como uma condição das relações entre as famílias.
Marques estava no sofá; Clarinha, sentada em
um banquinho a seus pés, olhava para ele com uma expressão tão suave de afeição
e respeito, que o moço curvou insensivelmente a cabeça. Mas foi então que, pela
primeira vez, a serpente do ciúme lhe mordeu no coração.
— Entre, disse o médico, vendo que o primo
parara à porta; não se assuste: são duas criaturas felizes, e felizes um pouco
por sua causa.
Clarinha olhou para o marido.
— Admiras-te? disse Marques à mulher; foi ele
quem me animou quando eu apenas ousava querer-te em silêncio.
— A ideia de escrever a primeira carta, à
qual não deste resposta, foi do nosso amigo Jorge.
— Ah! disse a moça.
E estendendo a mão ao primo, acrescentou:
— Obrigada!
A expressão de felicidade com que ela fez
este gesto e disse esta palavra, encheu de júbilo o marido; enquanto Jorge,
despeitado e picado de ciúme, mal tocara os dedos da moça.
Esta, porém, ficara pensativa.
— Não sabia então nada naquele tempo, dizia
ela consigo; mas quem lhe confiara o meu segredo? O padre?... Impossível!... E
contudo ninguém mais o sabia; foi ele, foi. Com que fim?
CAPÍTULO 8: DE MAL A PIOR
Não é bom brincar com fogo. Jorge conheceu
dentro de pouco tempo esta verdade comezinha; ardeu na chama de que tão pouco
caso fizera.
Mas esse fogo, bom é que se saiba, não era o
que purifica; o amor de Jorge não fora aceso no céu. Era fogo da terra ou do
inferno; paixão ardente, voluptuosa, insensata — mistura de capricho,
sensualidade e loucura.
A situação, porém, tinha mudado. Jorge
percebeu que o médico o tratava com extrema frieza.
— Ela contou-lhe tudo, disse ele consigo.
Procurou indagar a verdade, mas como? Podia
arrancá-la à própria moça, mas ela não lhe dava ocasião para isso. Não o
recebia, quando estava só; falava-lhe em presença do marido.
Jorge indagava um meio de resolver a crise em
que se achava o seu espírito. A intolerância das paixões criminosas revelou-se
nele com toda a força; exprobrava a prima, odiava o primo; odiaria o mundo
inteiro, se o mundo inteiro lhe opusesse um veto à sua lastimável ambição.
Um domingo, estando no seu quarto a revolver
estas ideias no espírito, apareceu-lhe à porta o padre Barroso. Levantou-se
para ir falar-lhe. O padre encaminhou-se para uma cadeira. Franziu o rosto
severo e os olhos torvos.
Jorge quis gracejar do aspecto do padre; mas
este o interrompeu dizendo:
— Jorge, não venho para rir, mas para
exortar, e, se preciso for, castigar. Não se admire; eu posso castigá-lo
referindo tudo a seu pai, que é um homem honesto. A mansidão é apenas a crosta
do meu caráter; no âmago, está a justa indignação contra tudo o que ofende a
moral e a virtude.
— Mas eu já sou outro...
— Não, disse o padre, está pior do que
estava. Antes nunca se emendasse.
Jorge compreendeu que o padre aludia à sua
atual paixão, e no fundo da consciência confessou que realmente a emenda,
naquele caso, era pior que o soneto.
O padre esteve alguns instantes silencioso.
— Sei tudo, disse ele.
— Tudo, o quê?
— Sei que o senhor ousou levantar olhos para
uma pessoa que devia merecer-lhe todo o respeito. Receio ter sido eu a causa
involuntária disto, mas o seu ato não se purifica ainda assim: fica sempre
infame! Ela contou-me tudo, e pediu-me conselho. Disse-lhe que referisse tudo
ao seu marido. Não quis; era envergonhá-lo sem necessidade, disse ela.
Curvei-me à sua opinião; mas eu tinha a minha, e ouvia a consciência;
contei-lhe tudo.
— O senhor! exclamou Jorge, levantando-se de
súbito.
— Eu, sim; pois que tem? redarguiu o velho
com placidez. Entendi que era o meu dever; escutei a minha consciência.
Jorge mordia os beiços, cheio de cólera.
O padre Barroso continuou:
— Ao mesmo tempo, pedi-lhe que não fizesse
escândalo; primeiramente, por si e por ela; depois, por seus pais que são duas
honradas criaturas. A sua pessoa não pesou nada neste pedido. Prometeu e
cumpriu; limitou-se a desprezá-lo.
— Mas, enfim? disse Jorge com um gesto de
impaciência.
— Ela não aprovou o meu passo, a princípio;
receou que o conhecimento da verdade perturbasse a sua paz doméstica e a
felicidade de seus tios. Mas quando eu lhe afiancei, e ela via, que nada disso
acontecia, agradeceu-me a iniciativa. Bem vejo que isso o mortifica; mas tenha
paciência. Clarinha é uma pessoa digna de ser adorada como um anjo; reúne todas
as virtudes de uma senhora. Perdeu o senhor aquele tesouro... sim, posso
dizê-lo agora, já que o sabe; perdeu-o, porque ela o amava em silêncio e o
senhor nada viu, tão cego andava aí por esse mundo de amores comprados, e
fúteis prazeres.
Isto era revolver o punhal na ferida. Jorge
estava humilhado e irritado. Quis falar, mas o padre não lho consentiu.
— Venho, pois, pedir-lhe, disse ele, ou
melhor, venho intimá-lo para que não volte à casa de sua prima, e que a
esqueça. Há de fazer isto quer queira quer não queira. Afirmo-lhe que estou
disposto a tudo para defendê-la.
Seguiu-se uma pequena pausa.
— Defendê-la? disse afinal Jorge. Mas ela não
precisa de defesa: eu não lhe faço nenhum mal. Tenho eu culpa se a amo?
O padre interrompeu-o.
— Não falemos de amor, falemos de dever. Está
disposto a não voltar lá, a não pensar mais nela?
— Pois bem, disse Jorge; estou disposto a não
ir lá; quanto a pensar nela...
— Filho, tornou o padre, com brandura; também
se peca por pensamentos. Apague-a da sua memória, e será melhor que tudo. Quer
um conselho?
— Qual?
— Vá para fora algum tempo. Depois, estou
certo de que virá abraçar-
me; porque saberá então de que abismo o
salvei.
CAPÍTULO 9: IDA E REGRESSO
A missão do padre irritou o jovem namorado;
mas algumas horas de reflexão bastaram para que ele visse realmente a
inutilidade dos seus esforços. Tinha tudo e todos contra si; era uma luta de
antemão condenada.
Ao mesmo tempo, a ideia de que a prima o amara,
e o despeito de a não haver compreendido, vinham lançar no espírito de Jorge um
novo germe de desgosto.
O mais prudente era abandonar a empresa.
A vaidade, porém, meteu-se no meio, e este
grande motor das ações humanas pode muita vez mais que todas as razões de
consciência ou impulsos de coração. Jorge perguntou a si mesmo se conviria
abater as armas diante do perigo, só porque era grande, e confessar uma dessas
aberrações das sociedades polidas, julgava mais vergonhoso que tudo mais. A
vaidade respondeu que não. Mas como a vaidade pedia uma coisa, e a realidade
indicava outra, Jorge achou um meio-termo, e adotou justamente a ideia do
padre.
— Em lhe constando que eu me retiro por causa
dela, pensou o moço, que vou para fora abafar a minha dor, há de crer nela e a
minha causa ganhará com isso, porque ela já me amou, e não há de ter esquecido
esse tempo.
Jorge saiu da corte no fim de alguns dias,
depois de ter obtido uma licença do emprego. Alegou ao pai que estava sofrendo
de fraqueza e precisava restaurar as forças. Aguiar não lhe deu muito crédito
ao pretexto; mas o padre teve meio de fazer que o Comendador e a mulher
aceitassem as razões do filho.
— Vá, meu filho, disse o padre na véspera da
partida, vejo que me ouviu e que a voz da sua consciência ainda não estava
extinta.
Pobre padre! Se ele soubesse que isto era
apenas uma arma! Um meio de tornar interessante o namorado repelido!
Jorge partiu.
— Diga-me cá, padre; acredita que meu filho
esteja definitivamente curado?
A esta pergunta do Comendador que se
preparava para jogar o gamão, na noite do dia em que Jorge partira, respondeu o
velho Barroso:
— Creio que sim; estava muito mal; mas o
coração é bom; emendou-se; respondo por ele.
Clarinha, que naqueles últimos tempos parecia
mais melancólica que de costume, quase ficou alegre com a partida do primo. A
sua afeição ao marido redobrou então de intensidade, e a causa disto era mais
que tudo a inalterável confiança que o médico mostrara durante os
acontecimentos esboçados acima.
A moça consultou o coração; nada havia em
relação ao primo.
Minto; havia alguma coisa; havia uma sombra
de desgosto, uma lembrança amarga, que o coração honesto da esposa não poderia
perdoar. A moça comparou a afeição respeitosa do marido, os carinhos de que a
cercava, com a fria e criminosa paixão do primo, e a comparação foi toda em
favor do médico.
Nestes termos estavam as coisas, quando o Dr.
Marques adoeceu gravemente. Desde os primeiros dias a moléstia revelou logo o
seu caráter mortal. Longo foi o padecimento, talvez ainda maior no espírito de
Clarinha, a quem uma voz secreta dizia que ia perder o consorte. A fim de a
prepararem melhor para o golpe, foi necessário dizer-lho. Clarinha teve coragem
para ouvir a verdade, mas era evidente a sua dor profunda. Aguiar e a mulher
foram para lá; o padre acompanhou o enfermo com a assiduidade que lhe permitiam
a sua idade e os seus trabalhos.
Um dia, porém, quando menos se esperava
apareceu Jorge. Soubera da moléstia do primo, e correra a toda a pressa à
corte. Foi a explicação que deu, mas não foi a verdadeira.
A verdadeira era que as saudades o ralavam.
Quando chegou à cidade, soube da moléstia do
médico; foi a casa, onde não achou a família; mas soube então que a situação do
enfermo era grave.
Correu para lá.
O espetáculo influiu no ânimo do estroina
mais do que ele pensara. Junto da cama do enfermo estava a moça, triste, mas
resignada, indiferente ao que se passava em torno dela.
O doente olhou para Jorge e conheceu-o.
Estendendo-lhe a mão descarnada e trêmula,
que o primo apertou, estendendo-a depois à sua prima, Clarinha não viu o gesto
do moço, ou não quis amargurar a alma do doente. Este abriu nos lábios um
ligeiro sorriso.
Jorge retirou-se.
A doença de Marques era mortal, como disse;
os médicos davam-lhe apenas cinco ou seis dias de existência. O próprio doente
conhecia o seu estado e preparava-se para morrer.
Este espetáculo, porém, por mais triste que
fosse, não pôde abafar no espírito de Jorge a influência da moça. Mas então
começou para ele uma sensação nova. A presença da morte como que lhe ia
purificando a paixão. Ao ver a pobre esposa quase viúva, toda entregue aos
cuidados de acompanhar até ao último suspiro o companheiro de sua vida; ao
contemplar a dedicação e zelo com que o servia, as lágrimas silenciosas que
derramava, as vigílias, as palavras de consolação, os afagos, tudo isso como
que lhe acordou uma fibra adormecida do coração, e o rapaz renasceu em si a
casta flor dos dezoito anos.
Algumas vezes, cabia-lhe fazer quarto ao
doente, e nessas condições achou-se muita vez a sós com a prima. Ajudavam-se
mutuamente nos cuidados que o enfermo exigia; mas quando este fechava os olhos
para dormir, ficavam ambos silenciosos, ela com os olhos pregados no marido,
ele com os olhos nela.
Não foi sem custo, ainda assim, que a moça
consentiu na presença do primo; mas o tio insistiu e foi necessário ceder.
O pobre também não viu com bons olhos a
presença do rapaz; mas foi este mesmo quem lhe disse, logo no dia seguinte
àquele em que chegara:
— Há de reparar na minha estada aqui.
— Sim, disse o padre.
— Juro-lhe que...
— Não jure nada, tornou o padre; respeite a
morte; é só o que lhe peço.
A última hora chegou enfim. Marques expirou
nos braços da esposa. O desespero e as lágrimas da mísera viúva faziam cortar o
coração; todos tiveram força para consolá-la; Jorge não a teve; saiu da casa e
só voltou no dia seguinte.
CAPÍTULO 10: O CAMINHO DE DAMASCO
Três meses depois, estando o padre Barroso em
casa apareceu-lhe Jorge. Vinha alegre e respeitoso como nunca.
— Senhor padre, disse ele; venho alegre, e
posso ir daqui triste. Tudo depende do senhor.
— De mim?
— Do senhor.
— Vejamos.
Jorge sentou-se.
— Disse-lhe uma vez, começou ele, que estava
curado das minhas loucuras.
— É verdade.
— Mentia.
— Fez mal.
— Mentia, Sr. padre. Que quer? Eu supunha
então que os conselhos da razão eram apenas ruins preconceitos, e que eu só
tinha razão contra todos. Agora, Sr. padre, afirmo-lhe que venho curado.
O padre sorriu.
— Bem vê, disse ele, que o senhor mesmo me dá
o direito de não acreditar.
— Sei, mas eu espero convencê-lo desta vez.
E continuou:
— Quando eu adotei a resolução de ir para
fora, levava ainda um pensamento mau no coração. Aparentemente cedia aos seus
conselhos; mas, no fundo da minha alma, era guiado por um interesse. Voltei
inopinadamente, porque a lembrança de... da pessoa que o senhor sabe, me
dominava o espírito.
— Adivinhei-o, observou o padre.
— Mas quando cheguei, continuou Jorge, quando
vi aquela divina criatura, aflita, melancólica, junto de seu marido quase
expirante, a prodigalizar-lhe todos os carinhos que a natureza, que a religião
lhe inspiravam, quando aquele solene espetáculo me apareceu aos olhos, posso
jurar-lhe, Sr. padre, que nesse momento todo o meu passado se desvaneceu e que
um homem novo começa a palpitar em mim.
— Quê! disse consigo o velho; será este o
mesmo Jorge!
Jorge continuou:
— Não lho disse então; quis ver se me não
enganava; se realmente amava aquela moça com o fervor da pureza que ela merece.
Lá vão três meses; sinto ainda hoje o mesmo que então sentia... Amo-a, e
peço-lhe que interceda por mim.
— Quer então? perguntou o padre.
— Casar com ela.
— Deveras?
— Juro-lho!
O padre levantou-se e abriu os braços ao
moço.
— Muito bem! disse ele, muito bem. Conte comigo,
Jorge! Eu serei o advogado da sua causa. Bem dizia eu, ainda há coração nesse
peito. Nem tudo estava perdido...
Jorge correspondeu a esta efusão do velho
amigo, contando-lhe todas as suas esperanças e incertezas; disse-lhe também que
receava não ser atendido.
— Por quê?
— Eu sei! Ela talvez me não perdoe o que lhe
fiz...
— Há de perdoar, disse o padre; não o amará
talvez; mas amá-lo-á mais tarde. Faça o senhor por si... deixe tudo a Deus, que
ama os arrependidos.
Jorge saiu da casa do padre Barroso entre
receoso e esperançado. Confiava, porém, no velho padre, e sabia a influência
que ele tinha no ânimo da moça. Demais, seu pai e sua mãe, quando conhecessem a
situação, influiriam em favor dele.
Não queria Jorge um casamento sem que o
precedesse a aliança do coração; mas o que lhe parecia essencial era convencer
a prima de que ele desejava ser amado.
Amá-lo-ia ela depois? There is the rub, como diz Hamlet.
Jorge foi direito para casa. Em caminho,
encontrou alguns amigos. Todos eles se espantaram da mudança do companheiro.
— Adeus, anacoreta! dizia-lhe um.
— Até que enfim! exclamava outro a alguma
distância.
— Por quê?
— Estás pálido. Já sei; amores...
Alguns — os que lhe deviam algumas somas —
passavam de largo. Jorge nem os via; um só pensamento o levava: a moça.
Não admira, pois, que a mesma dama, já vista
de relance no primeiro capítulo desta história, passasse por ele, e o
cumprimentasse sem que Jorge tirasse o chapéu. A dama sentiu-se ferida no seu
amor-próprio, e à noite, entre dois conhecidos, no Alcazar, rezou uma triste
oração pelo estroina.
— Lembra-te, disse um dos conhecidos,
lembra-te que foi ele quem te deu a vitória em que andas.
— Águas passadas não movem moinhos, respondeu
filosoficamente a dama. Desse o que desse, é um grosseirão.
O padre cumpriu a sua promessa; foi ter com
Clarinha. A bela viúva recebeu o seu velho amigo com a efusão de uma alma
verdadeiramente afetuosa. Havia já uma semana que ele lá não ia; supondo que
estaria doente, ia mandar lá.
— Felizmente, apareceu, concluiu ela.
— Doente não estou, disse o padre; pelo
contrário, nunca estive tão bom de saúde. Sabe por quê?
— Por quê?
— Porque estive ontem com seu primo Jorge.
Clarinha não respondeu.
— Está salvo, está curado, está homem de bem.
Só lhe pesa uma coisa: é que você lhe não perdoasse, Clarinha. Há de perdoá-lo.
— Perdoo-lhe tudo.
— Não é assim; há de perdoá-lo sinceramente,
com efusão, porque ele está verdadeiramente arrependido, e só precisa do seu
perdão para ser feliz como era, como devia ser ainda hoje se não fora sua má
cabeça. Perdoa-lhe, sim?
— Bem sabe, disse Clarinha, que eu não posso
desobedecer-lhe. Dou-lhe o perdão que me pede.
— De coração?
— De coração.
— Trata-se, disse o padre, de salvar uma
alma. Qualquer recusaria intervir num assunto destes; eu sou sacerdote; o meu
dever é contribuir para a cessação do pecado. Jorge está regenerado; mas
qualquer coisa pode pervertê-lo outra vez e para sempre.
Clarinha adivinhou o resto.
— Há três meses que morreu meu marido,
interrompeu a moça; dê-me o tempo necessário para chorar o melhor dos homens.
Quanto a Jorge, é uma alma que se não salva mais. Perdoei-lhe; eis tudo.
A moça conservou-se inflexível nesta
resolução. Jorge não soube do resultado da conversa do velho sacerdote, porque
este não julgou acertado comunicar-lhe. Era talvez um resto de melindre. Em
todo caso, procurou consolá-lo.
O velho Aguiar insistia para que a sobrinha
viesse morar com ele; ela não quis, seria estar perto do primo.
Jorge, entretanto, não perdeu ocasião de a
encontrar e ver. A presença, o respeito, as provas de dedicação, a vida
exemplar do moço, e além do mais, certa reminiscência que ficara no coração da
moça, tudo isso fez que se precipitasse o desenlace natural da situação.
Um ano depois da morte do Dr. Marques,
casavam-se os dois primos. A notícia não causou grande espanto na sociedade
equívoca, em que Jorge educara a sua mocidade.
— Meio perdido já estava ele, disse
galhofeiramente a dama a quem ele acompanhara no Ginásio na noite que lá o viu
o Comendador.
Quem o casou foi o padre Barroso. Não se pode
imaginar a alegria do bom velho. Parecia aquilo obra sua. E era, na verdade.
Um mês depois, estando ele em casa de Jorge,
contou este a impressão profunda que recebera nos cinco dias em que assistira à
agonia do médico.
— Foi só então, concluiu ele, que eu comecei
a amar.
O padre sorriu.
—Nihil
sub sole novum, disse ele. Há dezenove séculos aconteceu o mesmo a um homem
ilustre que perseguia os cristãos. No caminho de Damasco, uma visão o
converteu. Esse homem era São Paulo. Uniu-se à melhor das noivas, a Igreja, e
oxalá vocês se amem tanto, como aqueles dois se amaram. Deus me perdoará a
comparação, porque amar é estar perto do céu.
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