Cantiga de Esponsais
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Imagine a leitora que está em 1813, na Igreja
do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio
público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar
o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção
para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças
cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras
graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada. Não
falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça
branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção.
Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não
menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos
os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e
público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a
missa é mestre Romão", — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos
depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; — ou então: "O ator
Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o
chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia
mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo
demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida
derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se,
o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo,
que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor
que empregaria, se a missa fosse sua.
Acabou a festa; é como se acabasse um clarão
intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce
do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita
um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu,
caminhou para a Rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai
José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.
— Mestre Romão lá vem, pai José, disse a
vizinha.
— Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.
Pai José deu um salto, entrou em casa, e
esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não
era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha
ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou
jucundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão
tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de
música; nenhuma dele...
Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande
compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a
não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e
estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os
homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si
muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não
alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre
Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros
aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta:
— a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o
meio de traduzir o que sentia. Não é que não rabiscasse muito papel e não
interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem ideia nem
harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava
mais nada.
E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos
uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha
então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem
pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias
depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com
inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração
não pôde sair. Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor
as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a
inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta,
nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de
papel, não mais. Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o
tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais,
e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de
felicidade extinta.
— Pai José, disse ele ao entrar, sinto-me
hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
— Não; já de manhã não estava bom. Vai à
botica...
O boticário mandou alguma coisa, que ele
tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. É preciso
dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou
aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e
quis chamar o médico.
— Para quê? disse o mestre. Isto passa.
O dia não acabou pior; e a noite suportou-a
ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança,
apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham
relações com o mestre foram visitá-lo. E diziam-lhe que não era nada, que eram
macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos
capotes que o boticário lhe dava no gamão, — outro que eram amores. Mestre Romão
sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.
— "Está acabado", pensava ele.
Um dia de manhã, cinco depois da festa, o
médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por
trás das palavras enganadoras:
— Isto não é nada; é preciso não pensar em
músicas...
Em músicas! justamente esta palavra do médico
deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta
onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas
arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma ideia singular: —
rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que
deixasse um pouco de alma na terra.
— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e
se conte que um mestre Romão...
O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita.
Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava
para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de
outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos
ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.
— Aqueles chegam, disse ele, eu saio.
Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e
chegou ao lá...
— Lá...
lá... lá...
Nada, não passava adiante. E contudo, ele
sabia música como gente.
— Lá,
dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...
Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia
uma peça profundamente original, mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro
e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas,
buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos
primeiros tempos. Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o
lado dos casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços
passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de
olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava
ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas
seguintes não soavam.
— Lá...
lá... lá...
Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel
escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou
a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem
sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical,
justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre
ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.
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Imagem:
Revista "Vamos Ler!", edição nº 397 - Ano 1944. Biblioteca Nacional Digital - Hemeroteca.
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