Verba Testamentária
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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“... Item, é minha última vontade que o
caixão em que o meu corpo houver de ser enterrado, seja fabricado em casa de
Joaquim Soares, à Rua da Alfândega. Desejo que ele tenha conhecimento desta
disposição, que também será pública. Joaquim Soares não me conhece; mas é digno
da distinção, por ser dos nossos melhores artistas, e um dos homens mais
honrados da nossa terra...”
Cumpriu-se à risca esta verba testamentária.
Joaquim Soares fez o caixão em que foi metido o corpo do pobre Nicolau B. de
C.; fabricou-o ele mesmo, con amore;
e, no fim, por um movimento cordial, pediu licença para não receber nenhuma
remuneração. Estava pago; o favor do defunto era em si mesmo um prêmio insigne.
Só desejava uma coisa: a cópia autêntica da verba. Deram-lha; ele mandou-a
encaixilhar e pendurar de um prego, na loja. Os outros fabricantes de caixões,
passado o assombro, clamaram que o testamento era um despropósito. Felizmente,
— e esta é uma das vantagens do estado social, — felizmente, todas as demais
classes acharam que aquela mão, saindo do abismo para abençoar a obra de um
operário modesto, praticara uma ação rara e magnânima. Era em 1855; a população
estava mais conchegada; não se falou de outra coisa. O nome do Nicolau reboou
por muitos dias na imprensa da corte, donde passou à das províncias. Mas a vida
universal é tão variada, os sucessos acumulam-se em tanta multidão, e com tal
presteza, e, finalmente, a memória dos homens é tão frágil, que um dia chegou
em que a ação de Nicolau mergulhou de todo no olvido.
Não venho restaurá-la. Esquecer é uma
necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso,
precisa apagar o caso escrito. Obra de lápis e esponja. Não, não venho
restaurá-la. Há milhares de ações tão bonitas, ou ainda mais bonitas do que a
do Nicolau, e comidas do esquecimento. Venho dizer que a verba testamentária
não é um efeito sem causa; venho mostrar uma das maiores curiosidades mórbidas
deste século.
Sim, leitor amado, vamos entrar em plena
patologia. Esse menino que aí vês, nos fins do século passado (em 1855, quando
morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito anos), esse menino não é um produto
são, não é um organismo perfeito. Ao contrário, desde os mais tenros anos,
manifestou por atos reiterados que há nele algum vício interior, alguma falha
orgânica. Não se pode explicar de outro modo a obstinação com que ele corre a
destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são iguais aos dele,
ou ainda inferiores, mas os que são melhores ou mais ricos. Menos ainda se
compreende que, nos casos em que o brinquedo é único, ou somente raro, o jovem
Nicolau console a vítima com dois ou três pontapés; nunca menos de um. Tudo
isso é obscuro. Culpa do pai não pode ser. O pai era um honrado negociante ou
comissário (a maior parte das pessoas a que aqui se dá o nome de comerciantes,
dizia o marquês de Lavradio, nada mais são que uns simples comissários), que
viveu com certo luzimento, no último quartel do século, homem ríspido, austero,
que admoestava o filho, e, sendo necessário, castigava-o. Mas nem admoestações,
nem castigos, valiam nada. O impulso interior do Nicolau era mais eficaz do que
todos os bastões paternos; e, uma ou duas vezes por semana, o pequeno reincidia
no mesmo delito. Os desgostos da família eram profundos. Deu-se mesmo um caso,
que, por suas gravíssimas consequências, merece ser contado.
O vice-rei, que era então o Conde de Resende,
andava preocupado com a necessidade de construir um cais na Praia de D. Manuel.
Isto, que seria hoje um simples episódio municipal, era naquele tempo, atentas
as proporções escassas da cidade, uma empresa importante. Mas o vice-rei não
tinha recursos; o cofre público mal podia acudir às urgências ordinárias. Homem
de estado, e provavelmente filósofo, engendrou um expediente não menos suave
que profícuo: distribuir, a troco de donativos pecuniários, postos de capitão,
tenente e alferes. Divulgada a resolução, entendeu o pai do Nicolau que era
ocasião de figurar, sem perigo, na galeria militar do século, ao mesmo tempo
que desmentia uma doutrina bramânica. Com efeito, está nas leis de Manu, que
dos braços de Brama nasceram os guerreiros, e do ventre os agricultores e
comerciantes; o pai do Nicolau, adquirindo o despacho de capitão, corrigia esse
ponto da anatomia gentílica. Outro comerciante, que com ele competia em tudo,
embora familiares e amigos, apenas teve notícia do despacho, foi também levar a
sua pedra ao cais. Desgraçadamente, o despeito de ter ficado atrás alguns dias,
sugeriu-lhe um arbítrio de mau gosto e, no nosso caso, funesto; foi assim que
ele pediu ao vice-rei outro posto de oficial do cais (tal era o nome dado aos
agraciados por aquele motivo) para um filho de sete anos. O vice-rei hesitou;
mas o pretendente, além de duplicar o donativo, meteu grandes empenhos, e o
menino saiu nomeado alferes. Tudo correu em segredo; o pai de Nicolau só teve
notícia do caso no domingo próximo, na igreja do Carmo, ao ver os dois, pai e
filho, vindo o menino com uma fardinha que, por galanteria, lhe meteram no
corpo. Nicolau, que também ali estava, fez-se lívido; depois, num ímpeto,
atirou-se sobre o jovem alferes e rasgou-lhe a farda, antes que os pais pudessem
acudir. Um escândalo. O rebuliço do povo, a indignação dos devotos, as queixas
do agredido, interromperam por alguns instantes as cerimônias eclesiásticas. Os
pais trocaram algumas palavras acerbas, fora, no adro, e ficaram brigados para
todo o sempre.
— Este rapaz há de ser a nossa desgraça!
bradava o pai de Nicolau, em casa, depois do episódio.
Nicolau apanhou então muita pancada, curtiu
muita dor, chorou, soluçou; mas de emenda coisa nenhuma. Os brinquedos dos
outros meninos não ficaram menos expostos. O mesmo passou a acontecer às
roupas. Os meninos mais ricos do bairro não saíam fora senão com as mais
modestas vestimentas caseiras, único modo de escapar às unhas de Nicolau. Com o
andar do tempo, estendeu ele a aversão às próprias caras, quando eram bonitas,
ou tidas como tais. A rua em que ele residia, contava um sem-número de caras
quebradas, arranhadas, conspurcadas. As coisas chegaram a tal ponto, que o pai
resolveu trancá-lo em casa durante uns três ou quatro meses. Foi um paliativo,
e, como tal, excelente. Enquanto durou a reclusão, Nicolau mostrou-se nada
menos que angélico; fora daquele sestro mórbido, era meigo, dócil, obediente,
amigo da família, pontual nas rezas. No fim dos quatro meses, o pai soltou-o;
era tempo de o meter com um professor de leitura e gramática.
— Deixe-o comigo, disse o professor; deixe-o
comigo, e com esta (apontava para a palmatória)... Com esta, é duvidoso que ele
tenha vontade de maltratar os companheiros.
Frívolo! três vezes frívolo professor! Sim,
não há dúvida, que ele conseguiu poupar os meninos bonitos e as roupas
vistosas, castigando as primeiras investidas do pobre Nicolau; mas em que é que
este sarou da moléstia? Ao contrário, obrigado a conter-se, a engolir o
impulso, padecia dobrado, fazia-se mais lívido, com reflexos de verde bronze;
em certos casos, era compelido a voltar os olhos ou fechá-los, para não
arrebentar, dizia ele. Por outro lado, se deixou de perseguir os mais graciosos
ou melhor adornados, não perdoou aos que se mostravam mais adiantados no
estudo; espancava-os, tirava-lhes os livros, e lançava-os fora, nas praias ou
no mangue. Rixas, sangue, ódios, tais eram os frutos da vida, para ele, além
das dores cruéis que padecia, e que a família teimava em não entender. Se
acrescentarmos que ele não pôde estudar nada seguidamente, mas a trancos, e
mal, como os vagabundos comem, nada fixo, nada metódico, teremos visto algumas
das dolorosas consequências do fato mórbido, oculto e desconhecido. O pai, que
sonhava para o filho a Universidade, vendo-se obrigado a estrangular mais essa
ilusão, esteve prestes a amaldiçoá-lo; foi a mãe que o salvou.
Saiu um século, entrou outro, sem desaparecer
a lesão do Nicolau. Morreu-lhe o pai em 1807 e a mãe em 1809; a irmã casou com
um médico holandês, treze meses depois. Nicolau passou a viver só. Tinha vinte
e três anos; era um dos petimetres da cidade, mas um singular petimetre, que
não podia encarar nenhum outro, ou fosse mais gentil de feições, ou portador de
algum colete especial, sem padecer uma dor violenta, tão violenta, que o
obrigava às vezes a trincar o beiço até deitar sangue. Tinha ocasiões de
cambalear; outras de escorrer-lhe pelo canto da boca um fio quase imperceptível
de espuma. E o resto não era menos cruel. Nicolau ficava então ríspido; em casa
achava tudo mau, tudo incômodo, tudo nauseabundo; feria a cabeça aos escravos
com os pratos, que iam partir-se também, e perseguia os cães, a pontapés; não
sossegava dez minutos, não comia, ou comia mal. Enfim dormia; e ainda bem que
dormia. O sono reparava tudo. Acordava lhano e meigo, alma de patriarca,
beijando os cães entre as orelhas, deixando-se lamber por eles, dando-lhes do
melhor que tinha, chamando aos escravos as coisas mais familiares e ternas. E
tudo, cães e escravos, esqueciam as pancadas da véspera, e acudiam às vozes
dele obedientes, namorados, como se este fosse o verdadeiro senhor, e não o
outro.
Um dia, estando ele em casa da irmã,
perguntou-lhe esta por que motivo não adotava uma carreira qualquer, alguma
coisa em que se ocupasse, e...
— Tens razão, vou ver, disse ele.
Interveio o cunhado e opinou por um emprego
na diplomacia. O cunhado principiava a desconfiar de alguma doença e supunha
que a mudança de clima bastava a restabelecê-lo. Nicolau arranjou uma carta de
apresentação, e foi ter com o ministro de estrangeiros. Achou-o rodeado de
alguns oficiais da secretaria, prestes a ir ao paço, levar a notícia da segunda
queda de Napoleão, notícia que chegara alguns minutos antes. A figura do
ministro, as circunstâncias do momento, as reverências dos oficiais, tudo isso
deu um tal rebate ao coração de Nicolau, que ele não pôde encarar o ministro.
Teimou, seis ou oito vezes, em levantar os olhos, e da única em que o
conseguiu, fizeram-se-lhe tão vesgos, que não via ninguém, ou só uma sombra, um
vulto, que lhe doía nas pupilas, ao mesmo tempo que a face ia ficando verde.
Nicolau recuou, estendeu a mão trêmula ao reposteiro, e fugiu.
— Não quero ser nada! disse ele à irmã,
chegando à casa; fico com vocês e os meus amigos.
Os amigos eram os rapazes mais antipáticos da
cidade, vulgares e ínfimos. Nicolau escolhera-os de propósito. Viver segregado
dos principais era para ele um grande sacrifício; mas, como teria de padecer
muito mais vivendo com eles, tragava a situação. Isto prova que ele tinha um certo
conhecimento empírico do mal e do paliativo. A verdade é que, com esses
companheiros, desapareciam todas as perturbações fisiológicas do Nicolau. Ele
fitava-os sem lividez, sem olhos vesgos, sem cambalear, sem nada. Além disso,
não só eles lhe poupavam a natural irritabilidade, como porfiavam em tornar-lhe
a vida, senão deliciosa, tranquila; e para isso, diziam-lhe as maiores finezas
do mundo, em atitudes cativas, ou com uma certa familiaridade inferior. Nicolau
amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhes
restitui a saúde; acariciava-as paternalmente, dava-lhes o louvor abundante e
cordial, emprestava-lhes dinheiro, distribuía-lhes mimos, abria-lhes a alma...
Veio o grito do Ipiranga; Nicolau meteu-se na política. Em 1823 vamos achá-lo
na Constituinte. Não há que dizer ao modo por que ele cumpriu os deveres do
cargo. Íntegro, desinteressado, patriota, não exercia de graça essas virtudes
públicas, mas à custa de muita tempestade moral. Pode-se dizer,
metaforicamente, que a frequência da câmara custava-lhe sangue precioso. Não
era só porque os debates lhe pareciam insuportáveis, mas também porque lhe era
difícil encarar certos homens, especialmente em certos dias. Montezuma, por
exemplo, parecia-lhe balofo, Vergueiro, maçudo, os Andradas, execráveis. Cada
discurso, não só dos principais oradores, mas dos secundários, era para o
Nicolau verdadeiro suplício. E, não obstante, firme, pontual. Nunca a votação o
achou ausente; nunca o nome dele soou sem eco pela augusta sala. Qualquer que
fosse o seu desespero, sabia conter-se e pôr a ideia da pátria acima do alívio
próprio. Talvez aplaudisse in petto o
decreto da dissolução. Não afirmo; mas há bons fundamentos para crer que o
Nicolau, apesar das mostras exteriores, gostou de ver dissolvida a assembleia.
E se essa conjetura é verdadeira, não menos o será esta outra: — que a
deportação de alguns dos chefes constituintes, declarados inimigos públicos,
veio aguar-lhe aquele prazer. Nicolau, que padecera com os discursos deles, não
menos padeceu com o exílio, posto lhes desse um certo relevo. Se ele também
fosse exilado!
— Você podia casar, mano, disse-lhe a irmã.
— Não tenho noiva.
— Arranjo-lhe uma. Valeu?
Era um plano do marido. Na opinião deste, a
moléstia do Nicolau estava descoberta; era um verme do baço, que se nutria da
dor do paciente, isto é, de uma secreção especial, produzida pela vista de
alguns fatos, situações ou pessoas. A questão era matar o verme; mas, não
conhecendo nenhuma substância química própria a destruí-lo, restava o recurso
de obstar à secreção, cuja ausência daria igual resultado. Portanto, urgia
casar o Nicolau, com alguma moça bonita e prendada, separá-lo do povoado,
metê-lo em alguma fazenda, para onde levaria a melhor baixela, os melhores
trastes, os mais reles amigos, etc.
— Todas as manhãs, continuou ele, receberá o
Nicolau um jornal que vou mandar imprimir com o único fim de lhe dizer as
coisas mais agradáveis do mundo, e dizê-las nominalmente, recordando os seus
modestos, mas profícuos trabalhos da Constituinte, e atribuindo-lhe muitas
aventuras namoradas, agudezas de espírito, rasgos de coragem. Já falei ao
almirante holandês para consentir que, de quando em quando, vá ter com Nicolau
algum dos nossos oficiais dizer-lhe que não podia voltar para a Haia sem a
honra de contemplar um cidadão tão eminente e simpático, em quem se reúnem
qualidades raras, e, de ordinário, dispersas. Você, se puder alcançar de alguma
modista, a Gudin, por exemplo, que ponha o nome de Nicolau em um chapéu ou
mantelete, ajudará muito a cura de seu mano. Cartas amorosas anônimas, enviadas
pelo correio, são um recurso eficaz... Mas comecemos pelo princípio, que é
casá-lo.
Nunca um plano foi mais conscienciosamente
executado. A noiva escolhida era a mais esbelta, ou uma das mais esbeltas da
capital. Casou-os o próprio bispo. Recolhido à fazenda, foram com ele somente
alguns de seus mais triviais amigos; fez-se o jornal, mandaram-se as cartas,
peitaram-se as visitas. Durante três meses tudo caminhou às mil maravilhas. Mas
a natureza, apostada em lograr o homem, mostrou ainda desta vez que ela possui
segredos inopináveis. Um dos meios de agradar ao Nicolau era elogiar a beleza,
a elegância e as virtudes da mulher; mas a moléstia caminhara, e o que parecia
remédio excelente foi simples agravação do mal. Nicolau, ao fim de certo tempo,
achava ociosos e excessivos tantos elogios à mulher, e bastava isto a
impacientá-lo, e a impaciência a produzir-lhe a fatal secreção. Parece mesmo
que chegou ao ponto de não poder encará-la muito tempo, e a encará-la mal;
vieram algumas rixas, que seriam o princípio de uma separação, se ela não
morresse daí a pouco. A dor do Nicolau foi profunda e verdadeira; mas a cura
interrompeu-se logo, porque ele desceu ao Rio de Janeiro, onde o vamos achar,
tempos depois, entre os revolucionários de 1831.
Conquanto pareça temerário dizer as causas
que levaram o Nicolau para o Campo da Aclamação, na noite de 6 para 7 de abril,
penso que não estará longe da verdade quem supuser que — foi o raciocínio de um
ateniense célebre e anônimo. Tanto os que diziam bem, como os que diziam mal do
imperador, tinham enchido as medidas ao Nicolau. Esse homem, que inspirava
entusiasmos e ódios, cujo nome era repetido onde quer que o Nicolau estivesse,
na rua, no teatro, nas casas alheias, tornou-se uma verdadeira perseguição
mórbida, daí o fervor com que ele meteu a mão no movimento de 1831. A abdicação foi um
alívio. Verdade é que a Regência o achou dentro de pouco tempo entre os seus
adversários; e há quem afirme que ele se filiou ao Partido Caramuru ou
Restaurador, posto não ficasse prova do ato. O que é certo é que a vida pública
do Nicolau cessou com a Maioridade.
A doença apoderara-se definitivamente do
organismo. Nicolau ia, a pouco e pouco, recuando na solidão. Não podia fazer certas
visitas, frequentar certas casas. O teatro mal chegava a distraí-lo. Era tão
melindroso o estado dos seus órgãos auditivos, que o ruído dos aplausos
causava-lhe dores atrozes. O entusiasmo da população fluminense para com a
famosa Candiani e a Merea, mas a Candiani principalmente, cujo carro puxaram
alguns braços humanos, obséquio tanto mais insigne quanto que o não fariam ao
próprio Platão, esse entusiasmo foi uma das maiores mortificações do Nicolau.
Ele chegou ao ponto de não ir mais ao teatro, de achar a Candiani insuportável,
e preferir a Norma dos realejos à da
prima-dona. Não era por exageração de patriota que ele gostava de ouvir o João
Caetano, nos primeiros tempos; mas afinal deixou-o também, e quase que
inteiramente os teatros.
“Está perdido! pensou o cunhado. Se
pudéssemos dar-lhe um baço novo...”
Como pensar em semelhante absurdo? Estava
naturalmente perdido. Já não bastavam os recreios domésticos. As tarefas
literárias a que se deu, versos de família, glosas a prêmio e odes políticas,
não duraram muito tempo, e pode ser até que lhe dobrassem o mal. De fato, um
dia, pareceu-lhe que essa ocupação era a coisa mais ridícula do mundo, e os
aplausos ao Gonçalves Dias, por exemplo, deram-lhe ideia de um povo trivial e
de mau gosto. Esse sentimento literário, fruto de uma lesão orgânica, reagiu
sobre a mesma lesão, ao ponto de produzir graves crises, que o tiveram algum
tempo na cama. O cunhado aproveitou o momento para desterrar-lhe da casa todos
os livros de certo porte.
Explica-se menos o desalinho com que daí a
meses começou a vestir-se. Educado com hábitos de elegância, era antigo freguês
de um dos principais alfaiates da Corte, o Plum, não passando um só dia em que
não fosse pentear-se ao Desmarais e Gérard, coiffeurs
de la cour, à Rua do Ouvidor. Parece que achou enfatuada esta denominação
de cabeleireiros do paço, e castigou-os indo pentear-se a um barbeiro ínfimo.
Quanto ao motivo que o levou a trocar de traje, repito que é inteiramente
obscuro, e a não haver sugestão da idade, é inexplicável.
A despedida do cozinheiro é outro enigma.
Nicolau, por insinuação do cunhado, que o queria distrair, dava dois jantares
por semana; e os convivas eram unânimes em achar que o cozinheiro dele primava
sobre todos os da capital. Realmente os pratos eram bons, alguns ótimos, mas o
elogio era um tanto enfático, excessivo, para o fim justamente de ser agradável
ao Nicolau, e assim aconteceu algum tempo. Como entender, porém, que um
domingo, acabado o jantar, que fora magnífico, despedisse ele um varão tão insigne,
causa indireta de alguns dos seus mais deleitosos momentos na terra? Mistério
impenetrável.
— Era um ladrão! foi a resposta que ele deu
ao cunhado.
Nem os esforços deste nem os da irmã e dos
amigos, nem os bens, nada melhorou o nosso triste Nicolau. A secreção do baço
tornou-se perene, e o verme reproduziu-se aos milhões, teoria que não sei se é
verdadeira, mas enfim era a do cunhado. Os últimos anos foram crudelíssimos.
Quase se pode jurar que ele viveu então continuamente verde, irritado, olhos vesgos,
padecendo consigo ainda muito mais do que fazia padecer aos outros. A menor ou
maior coisa triturava-lhe os nervos: um bom discurso, um artista hábil, uma
sege, uma gravata, um soneto, um dito, um sonho interessante, tudo dava de si
uma crise.
Quis ele deixar-se morrer? Assim se poderia
supor, ao ver a impassibilidade com que rejeitou os remédios dos principais
médicos da corte; foi necessário recorrer à simulação, e dá-los, enfim, como
receitados por um ignorantão do tempo. Mas era tarde. A morte levou-o ao cabo
de duas semanas.
— Joaquim Soares? bradou atônito o cunhado,
ao saber da verba testamentária do defunto, ordenando que o caixão fosse
fabricado por aquele industrial. Mas os caixões desse sujeito não prestam para
nada, e...
— Paciência! interrompeu a mulher; a vontade
do mano há de cumprir-se.
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