Entre os papuas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Um dos maiores sonhos da minha
infância era atravessar a vida viajando. As aventuras do "Guliver" de
Swift; o "Rocambole", de Ponson, e as fantasias de Júlio Verne, cuja
primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14° aniversário, exerceram tamanha
influência sobre o meu ânimo, que eu não pensava, na adolescência, senão
naquelas viagens maravilhosas. Homem feito, abracei a carreira que mais se
coadunava com as minhas aspirações de criança; e, como a vida fosse curta para
tanto projeto desordenado, é com verdadeira alegria que os completo hoje,
mentalmente, ouvindo, aqui e ali, onde os deparo, a palestra dos amigos mais
viajados do que eu.
Uma destas noites, após o jantar
elegantíssimo com que o desembargador Corrêa da Cunha festejou o regresso do
Comendador Adeodato de Barros, que voltava da sua última excursão às índias e à
Oceania, tive eu um dos momentos mais felizes da minha vida, ouvindo a história
desse passeio de milionário, o qual durou, como é sabido, cerca de três anos e
meio. Com a sua palavra viva, segura, concisa, narrava o soberbo capitalista os
episódios mais interessantes, quando, em certo momento, se voltou para as
senhoras, explicando:
— O costume mais curioso que eu
encontrei foi, porém, o dos indígenas das Molucas, entre os quais me demorei
algum tempo.
As senhoras voltaram-se,
interessadas, e o Comendador começou, mexendo, pausadamente, com uma colherinha
de prata, a sua taça de vinho com água e açúcar:
— Entre os papuas, o casamento é
inteiramente livre. Adeptos da poligamia, como o são, em geral, os povos
brutalizados, esses indígenas permitem que o homem tome, e sustente, as
mulheres que bem entenda. Uma exigência é, no entanto, feita a quantos se
queiram prevalecer dessa faculdade: cada casamento que o indivíduo contrai é
selado com uma cerimônia bárbara, que consiste em arrancar um dente aos
esposos. Ao contrário do que sucedia a certos povos antigos, entre os quais o
contrato nupcial era selado com a incisão em duas veias do braço, para que o
sangue dos noivos se misturasse, os papuas exigem esse sacrifício dos dentes,
de modo que o beijo de núpcias é um beijo sangrento em que se confunde, num
pacto horrendo, que é um símbolo da união na vida, o sangue dos nubentes.
— Que horror! — observou Madame
Schwartz, fazendo uma careta.
— Que bárbaros! — reforçou Mlle.
Toledo Gomide, repetindo o mesmo gesto de nojo.
As outras senhoras comentavam
esse costume dos indígenas com a mesma indignação incontida, quando Madame
Corrêa Gomes indagou, curiosa:
— Quanto tempo o Comendador
passou entre essas feras?
— Um ano, minha senhora.
— Sem se afastar deles?
— Não, senhora. Saí duas vezes,
para ir a Amboine, capital do arquipélago.
Passado um instante, explicou,
distraído:
— Mas demorei-me pouco longe
deles. Fui apenas concertar a dentadura...
E continuou a mastigar, forte,
com todos os dentes.
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