Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Sempre que as mulheres realizam
uma nova conquista política, obtendo novos lugares, novos postos de relevo na
vida civil, surgem de toda a parte os argumentos sobre a sua suposta
inferioridade mental, como se fosse possível contestar com teorias aquilo que é
contrariado pela evidência incontrastável dos fatos. Forte, ou fraca, auxiliada
pelos deuses ou pelo demônio, o certo é que a mulher se tem manifestado, por
mais de uma vez, superior ao homem, pela agudeza, pela perspicácia, e, não
menos, pelo bom senso com que resolve determinados problemas da vida.
Um caso que me vem à memória toda
a vez que se levantam discussões sobre essa matéria debatidíssima, é o que
ocorreu, há anos, em Baixa Verde, localidade sertaneja do Rio Grande do Norte,
e que me foi contado, há seis ou oito anos, no Senado, pelo atual ministro da
Marinha, o ilustre Sr. desembargador Ferreira Chaves.
Andava o Sr. Manoel Lourenço
pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em
calçar de chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe
apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha
Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma
família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço
ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do
pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao
erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.
À noite, o pobre sapateiro não
pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da
Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se
fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente
vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois,
estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o
sapateiro da Baixa Verde.
Só depois de casado, porém, foi
que o Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a
Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente,
pelo seu físico, sua filha e, até — quem sabe? — sua neta. E era pensando nisso
que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem
trata uma criança.
Quem não gostava desses modos
era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna
para mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era
natural, portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da
existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.
Certa manhã, havia o Manoel
Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que
se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e
conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando
viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual,
passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da
cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e
pediu, dengosa:
— Sabes, Manoel, que é que eu
queria?
— Que é? — indagou o esposo,
divertindo-se com aquela alegria.
— Eu queria que tu matasses
aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!
O sapateiro achou graça na
infantilidade da moça, e retrucou, rindo:
— Que tolice, Clotilde! tu não
vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?
A moça encarou-o com as faces em
brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:
— Dá, Manoel, dá!
E ao seu ouvido, com a voz
trêmula:
— Olha, Manoel, o couro...
espicha!
E abraçou-o, chorando.
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