11/11/2017

O sapateiro (Conto), de Humberto de Campos


O sapateiro

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Sempre que as mulheres realizam uma nova conquista política, obtendo novos lugares, novos postos de relevo na vida civil, surgem de toda a parte os argumentos sobre a sua suposta inferioridade mental, como se fosse possível contestar com teorias aquilo que é contrariado pela evidência incontrastável dos fatos. Forte, ou fraca, auxiliada pelos deuses ou pelo demônio, o certo é que a mulher se tem manifestado, por mais de uma vez, superior ao homem, pela agudeza, pela perspicácia, e, não menos, pelo bom senso com que resolve determinados problemas da vida.

Um caso que me vem à memória toda a vez que se levantam discussões sobre essa matéria debatidíssima, é o que ocorreu, há anos, em Baixa Verde, localidade sertaneja do Rio Grande do Norte, e que me foi contado, há seis ou oito anos, no Senado, pelo atual ministro da Marinha, o ilustre Sr. desembargador Ferreira Chaves.

Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.

À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.

Só depois de casado, porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até — quem sabe? — sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.

Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.

Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e pediu, dengosa:

— Sabes, Manoel, que é que eu queria?

— Que é? — indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.

— Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!

O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:

— Que tolice, Clotilde! tu não vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?

A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:

— Dá, Manoel, dá!

E ao seu ouvido, com a voz trêmula:

— Olha, Manoel, o couro... espicha!

E abraçou-o, chorando.

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