11/03/2017

Flor do mar (Conto), de Virgílio Várzea


Flor do mar
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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A velha barca Bom Destino, já na altura dos Abrolhos, vinha agora numa bolina cochada, na bordada de terra, a forcejar contra o nordeste duro. Saíra do Desterro com excelente viagem — tempo seco e claro, uma brisa favorável de sueste, o pano todo em cima, voando alígera junto à costa, entre alvos bandos de alcíones, parecendo ela própria uma alcíone, mas uma alcíone gigantesca e fantástica.

Eram começos de março.

Cessado o sueste ocasional, voltara a nordestia de fins de verão que, como sempre no sul do Brasil, aumentava agora de intensidade e violência aos primeiros prenúncios do outono a chegar, qual sucede invariavelmente aos ventos gerais ao expirar de cada uma das suas fases periódicas.

Assim, na altura de Santos, ao calmar aquela brisa benéfica do segundo quadrante, o nordeste rijíssimo envolvera a barca que, apesar de bolineira de lei, não avançava quase para o norte. Dir-se-ia que, já abatida e sem forças, obliterada a atividade singradora de outrora, se negava a prosseguir na derrota: sentia-se velha, decerto, e desejosa de eterno descanso em qualquer recanto remansoso de praia onde pudesse, sem mais lutas com as tormentas e as ondas, desfazer-se e findar pouco a pouco, servindo apenas, como todos os cascos abandonados ou náufragos, de pouso e miradouro passageiro às brancas aves do Mar.

O Manoel Fontes, proprietário e capitão da barca, um hércules de sessenta anos, parecendo entretanto ter apenas quarenta pelos músculos íntegros e moços, a saúde ainda plena e poupada nessa idade, como em regra nos marujos, principalmente mercantes, devido ao recolhimento, à sobriedade, às longas e forçadas abstinências de tudo, ao isolamento constante e de claustro que a vida de bordo impõe invariavelmente aos que nela andam, porque o navio não é senão um claustro flutuante, — o Manoel Fontes já se sentia também fatigado do seu constante e ininterrupto viajar, consumido nos últimos tempos, e mais naquela viagem, pelo anseio de um definitivo repouso nalguma curva mansa de praia, para ali acabar serenamente os seus dias. Mas a vida é um torvelinho que nos envolve até a velhice, até mesmo a extrema velhice, até a morte, por fim. Além disso havia as exigências sociais, havia que garantir a felicidade do lar, o próprio pão e o dos filhos. E ele tinha uma filha, uma filha única e loucamente amada, na qual via o coroamento incomparável da sua ancianidade, o paraíso da sua triste vida de exilado de terra, passada no infinito deserto do mar... Por isso ali ia ainda, jurando a si mesmo — o que decerto cumpriria com palavra de marujo, que não volta atrás, como a de rei — jurando-a si mesmo que seria aquela a última das suas viagens, feita ainda somente para “arredondar” a sua pequena fortuna — o dote da filha — tão econômica e longamente acumulada sob contínuos sacrifícios, perigos, aflições, nostalgias, saudades... Na venda do carregamento de farinha que levava para Pernambuco, agora que a seca e a fome — os tremendos flagelos dos sertões do norte do Brasil — elevava fabulosamente o preço dessa mercadoria, na venda desse carregamento esperava tirar a soma necessária para completar o pecúlio que lhe abrigaria a velhice de qualquer infortúnio vindouro e faria a felicidade da filha, garantindo-lhe o futuro...

Encostado à balaustrada de ré e de quarto nesse instante, o Manoel Fontes, como a barca ia bem na singradura a que andava, embora o dia começasse a escurecer e a toldar-se ameaçando mau tempo, o que aliás vinha já do romper d'alva, o Manoel Fontes conversava animadamente com os passageiros e a filha — que o acompanhava sempre pelos mares — sobre os atrasos inesperados da viagem, pois, devido à nordestia berrante, tinham levado quinze dias a vencer caminho de Santos aos Abrolhos, quando haviam gasto unicamente dois do Desterro às alturas daquele grande porto paulista, embora aquela primeira distância fosse duas vezes maior que esta última, não havendo contudo entre ambas, na marcha realizada pelo navio, a relatividade comum das coisas.

— Viagem melhor que a de um vapor, essa do Desterro ao paralelo de Santos! dizia ele, a rir, com os belos dentes brancos a entreabrirem de leve os lábios, rasgados num rosto inteiramente rapado, obeso e cor de lacre, como o de um Abade anglo-saxônio. Mas o nordeste veio de “esfregar” o demônio! E aqui estamos a consumir o tempo que devíamos levar de Santos ao Recife... Felizmente o sudoeste não deve tardar para nos impelir, numa só amura, si porventura aguentar, até a Ipojuca... Está mesmo a pintar, o raio! Mas que caia às direitas, fazendo voar esta velha “carcassa”, que já não tem mais que dar...

Os passageiros riram também, ao gracejo final do capitão aludindo à sua velha barca. Eram esses passageiros, nessa ocasião, uma meia dúzia apenas, todos negociantes no Desterro ou no Recife, à exceção de um jovem de vinte anos, filho de um velho militar catarinense, muito amigo do Fontes — o marechal Guilherme Xavier de Souza. Esse jovem, que se chamava Artur, ia fazer o seu último ano de direito na capital pernambucana e, desde que o navio levantara ferros, dir-se-ia tomado de uma impressão passional pela filha do capitão, a morena e linda Ruth, tão morena e tão linda, talvez, como a sua remotíssima homônima bíblica, mas que, desde o seu nascimento, fazia quinze anos, a bordo daquela barca, tão mimosa e galante era, que os extremosos pais, bem assim a companha que andava então na barca, a haviam apelidado, num encanto, com imenso acerto e meiguice, de Flor do Mar. E como tal todos a ficaram conhecendo desde então, no Desterro e onde quer que a levava o pai, nas suas constantes viagens.

Flor do Mar era filha única do capitão Manoel Fontes e a sua joia querida, o enlevo maior dos seus afetos e da sua vida, principalmente depois que tivera a desventura de perder a esposa, de um parto fora de tempo, horroroso, ocorrido a bordo do lugre Sol, havia oito anos, numa sinistra noite de ciclone, no mar das Antilhas, em viagem para Nova York. O Mar levara-lhe, nesse dia maldito, metade do coração com aquela santa companheira de quarenta anos, bem como o fruto dos seus amores, que nascera morto e que, não fora isso, seria um tesouro a mais no seu lar, na sua alma, na sua longa existência de marujo, tão cortada de trabalhos e perigos, e cuja suprema compensação e ventura e glória consistiam e se concretizavam tão somente na delícia da família. Mulher e filhinho, coitados! tinham ficado para sempre perdidos no seio daquelas águas revoltas, amortalhados numa velha vela de bordo, que ele e Flor do Mar — ainda tão pequenina e já órfã dos carinhos maternos, com sete anos apenas! haviam tão longamente abraçado, beijado e coberto de lágrimas sem fim... Desde então toda a sua mais alta esperança e ventura eram aquela filha, aquela doce Flor do Mar, flor, sim, mas humana e preciosa, que o Oceano dir-se-ia lhe jogara um dia, num momento de alegria indizível, como uma palma de glória, a ele, lutador intemerato e amantíssimo das ondas, das ondas em cujo arfante e espumoso colo de esmeraldas e pérolas se inebriara outrora de emoções e de sonhos, dessas ondas a que se votara inteira e apaixonadamente de menino...

Mas a barca, na sua bordada de terra, estava já quase em cima dos Abrolhos, amarada apenas cinco milhas. O barômetro, que começara a baixar desde manhã, baixava mais ainda. O tempo parava-se agora de carrascão, com o sudoeste iminente. Nesse quadrante entrara já a fuzilar. A borrasca estava, pois, a cair. Era preciso virar quanto antes na bordada de fora, na bordada do mar.

O Manoel Fontes então, de pé ao cata-vento, soltou a voz, que o contramestre acusava de pronto, em cada uma de suas ordens:

— Preparar para virar! Olha a gente aos braços de gáveas, às escotas, aos estais! Gajeiros e moços à riba! Arria, carrega, ferra sobres e joanetes! Gáveas e gata em terceiros! Tudo a uma! Presto, presto, gente, que o tempo está de carranca e vem aí de arrasar!...

Já o norte berrante calmara, desaparecera como por encanto. Mar e céu estavam negros de tinta. Parecia noite, mas uma noite convulsa, dantesca. Troavam já os trovões. Os fuzis multiplicavam-se por todo o horizonte, fazendo no Espaço instantâneos e deslumbrantes ziguezagues de rubi.

Imediatamente os passageiros deixaram o tombadilho, recolhendo-se à câmara. Entretanto Flor do Mar, como frequentemente sucedia, deixou-se ficar sentada, como estava, à gaiuta, familiarizada, desde ao nascer, com aqueles momentos de faina impetuosa, de lufa-lufa a bordo, familiarizada qual verdadeiro marujo com os furores das vagas, com os contínuos perigos, com as desfeitas tormentas. O pai, perdido de enlevos por ela, consentira desta vez, como de muitas outras, permanecesse no tombadilho, mas sob condição de baixar ao camarote, ao primeiro golpe de mar, ao primeiro pegão de vento que por acaso envolvessem o navio...

Nisto, as últimas ordens do capitão ao timoneiro e à companha de quarto estalaram a grandes brados, e a barca entrou na virada, na dificílima virada por d’avante, com grande lentidão e formidáveis balanços. Mas o sudoeste desabava, nesse mesmo instante, terrível e de arrancar tudo, num fragor de cataclismo, com bátegas d’água diluviais, redobrando então de intensidade e pavor os trovões e fuzis. E a manobra, apesar de bem mandada, foi apanhada em mais de meia por esse tempo desfeito que, num turbilhão infernal de vagalhões desencontrados e em rajadas irresistíveis, levou velas e vergas para as profundas do “charco”.

Os brados e pragas, como sempre a bordo em tais momentos, casavam-se medonhamente ao ribombar desolado e feroz da tormenta. Havia, em toda a barca, uma confusão indescritível, tumultuosa, suprema. Ninguém se entendia, em meio à fúria, à desordem, ao bramar dos elementos...

Súbito, então, a voz do timoneiro se ergueu dominando tudo, enérgica e poderosa, mas repassada de aflição e plangência:

— Misericórdia! Nossa Senhora nos acuda, capitão! A retranca carregou a menina, que lá vai borda fora, levada nos vagalhões!...

O Manoel Fontes, que ao cair do tufão correra a ajudar os braços da gávea grande e volvia já prestamente à ré, ficou estarrecido por instantes contra a enxárcia da gata. Mas fora um lapso apenas e, lançando pela alheta um olhar rápido e desvairado aos vagalhões revoltos, altos como montanhas e raivando espuma às lufadas doidas do vento, pôde ver, num relance supremo, o lugar em que a filha caíra e se debatia ansiosamente. E, sem mais perda de tempo, gritou, rijo, à companha:

— Volta, volta a tudo, gente! Leme todo a bombordo! Braceia gáveas! Arreia amantilhos! Arreia! Lestos, malditos! Lestos, com mil demônios!... Que desgraça, meu Deus. Valha-me a Senhora dos Navegantes! Uma arroba de cera, si Flor do Mar for salva! Uma arroba de cera, minha Senhora dos Navegantes!...

A barca obedecera pasmosamente a esta nova manobra, virando em roda, como uma gaivota, como uma flecha, alagada de proa à popa pelos vagalhões e, adriçada toda a estibordo, voava na coroa das ondas, parecendo também ansiosa por chegar ao lugar do sinistro, como o angustiado e extremoso coração do Manoel Fontes e dos seus bravos marinheiros.

Mas fora em vão, desgraçada e tristemente em vão, porque Flor do Mar desaparecera já, para sempre, no seio torvo das vagas.

Ainda assim a barca atravessou como pôde e como lhe permitiram os terríveis vagalhões, e arriou-se, a todo risco, um escaler com seis homens. E até a noite, na iminência excruciante, esmagadora, de afundar-se o bote e o próprio navio com todos que estavam a seu bordo, se procurou incessante e angustiosamente a desventurada criança, para se arrancar, ao menos, os seus despojos queridos às fauces tredas e hiantes do monstruoso Oceano. Em vão, porém, tudo em vão!...

À notícia de tão triste ocorrência, os passageiros subiram à tolda, vivamente penalizados e, mais que nenhum, pudera! o Artur Xavier, o jovem estudante de direito, que já adorava a Flor do Mar e que tinha os olhos inundados de pranto. Ela, a marujinha, coitada, quem sabe? talvez já o amasse também... Então ficaram todos a olhar, por instantes, o ponto das águas em que desaparecera a graciosa menina, que era sem dúvida o maior encanto de bordo...

Afinal, o pobre capitão Manoel Fontes, numa ânsia inominada, o coração em tormenta como todo aquele mar, louco e perdido de dor, chorando qual uma criança, retomou o seu rumo, em demanda do Recife...

***

Foi essa a viagem mais triste, mais infeliz e mais fúnebre que fizera a Bom Destino, a qual, depois de trinta e seis anos de mar, desmentia pela primeira vez a expressiva significação do seu nome. E por isso o capitão Manoel Fontes, apenas chegou ao Recife e desembarcou o carregamento, a fez vender em leilão.

Um mês depois, esse heroico “lobo do oceano”, que apurara nessa velha barca e na carga cerca de vinte e oito contos de réis, arredondando assim — mas agora sem mais alegria e ventura! — uma fortuna regular, regressava ao Desterro, a bordo do brigue escuna Saudade, abandonando para sempre o tombadilho dos navios e o seu velho e amado Mar, e indo viver o resto da sua existência só com as três irmãs solteironas que ainda lhe restavam, já quase tão velhas como ele, na sua chácara de São Luís, pitorescamente situada num recanto litoral da baía do norte, em a capital catarinense, nessa chácara onde as ondas, com os seus marulhosos encantos, vinham ainda perenemente tentá-lo, mas em vão, a novas aventuras e viagens, espumosamente a baterem contra a vasta linha do cais, que defendia da salsugem e das tormentas os seus jardins e pomares...

E ainda agora, aos noventa anos, o venerando marujo, sempre vestido de luto e a lastimar a sua sorte, cada vez que alguém lhe fala na infeliz Flor do Mar, cai em desolado pranto, a recordar tristemente a perda dessa menina formosa e eternamente amada.

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