11/28/2017

Impressões rápidas (Conto), de Wenceslau de Moraes


Impressões rápidas
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era uma noite de luar do mês de Abril, esplêndida. Eu seguia pelo caminho de Suwayama, na parte mais elevada da cidade. De um lado alinham-se as casinhas japonesas, entre elas as mais famosas chayas de Kobe, Tokiwa e outras, onde os japoneses vêm folgar; do outro lado, é a rampa íngreme, coberta de pinheiros, e sobe a colina inculta, em corcovas acidentadas, onde assenta um templo notável.
Nas chayas, segundo o costume, havia festa. As corrediças de papel estavam fechadas; mas a luz interior coava-se para fora vivamente, desenhando alguns vultos dos convivas em sombrinhas deliciosas; eram os vultos deles, dos amigos reunidos, certamente banqueteando-se sobre a esteira, e eram os vultos delas, das gueshas, que lhes iriam vazando o vinho nas taçazinhas de fina porcelana, e cantando baladas ao som do shamicen. Música, cantigas, gargalhadas, chegavam-me aos ouvidos num vago sussurro de alegria.
Na minha frente iam seguindo uns cinco sujeitos europeus, gente de distinta sociedade, a julgar pelo esmero do trajo e da linguagem, e pelo aroma dos soberbos charutos que fumavam. Iam falando inglês. Dois discutiam finança: — o Japão atravessava uma crise econômica terrível; os cofres do governo, segundo as aparências, exauriam-se; o tráfego em marasmo; duas grandes fábricas de Osaka, constava, suspendiam o trabalho... — Os três outros palestravam de política: — primeiro foi o Transvaal, e fez-se a conta de quantos boers haviam já caído sob o chuveiro das balas inglesas; depois saltou-se ao Extremo-Oriente; a Rússia ameaçava o império japonês; aparecesse um pretexto, o mais leve, o mais fútil, e era a guerra; discutiam-se as probabilidades da vitória, presumiam-se os estragos, o número de vítimas no primeiro embate das esquadras... — Teriam talvez muita razão, todos os cinco; mas ia-me parecendo aquela gente um bando de mochos agourentos, folgando com a ruína, dando-se bem com o fétido dos mortos. Para eles não nascera, imaginava eu, aquela Lua esplêndida, que ia alumiando o espaço todo e espargindo sobre a terra uma chuva de prata; nem era para eles que os pinheiros de Suwayama se enchiam agora de rebentos viçosos; nem para os seus pulmões que o ar vinha oloroso de florescências multíplices, distantes. Supunha-os, coitados, dispépticos, biliosos, misantropos, perseguidos nos fofos leitos por cruciantes pesadelos.
Naquele ponto, as gueshas de Suwayama entoavam uma cantiga popular, que assim começa: — “Haru wa, ureshiki...” — cujas primeiras estrofes se podem traduzir, pouco bem, por estas duas quadras:
Na Primavera, enlevai-vos
Nas cerejeiras em flor.
No V’rão, folgai nas ribeiras,
Quando se abrasa em calor.
No Outono, vede a folhagem,
Toda escarlate, voando.
No Inverno, espreite-se a neve,
Bebendo vinho e cantando.
***
Quando eu escrevi a Primavera, e a ofereci a um delicado amigo, prometi a mim mesmo, e creio que também a ele prometi, completar com pachorra e vagar, os aspetos das estações, aos quais o tempo, o sol, a cor do céu, neste país deslumbrante de cenários, imprimem mais intensivamente, mais emotivamente do que em outro lugar, feições diferentes e imprevistas. Por preguiça ou outras causas, não cumpri a promessa, com o que, — valha a verdade, — nada se perdeu que falta faça; mas, sucedendo agora que tenho de reunir em volume umas impressões dispersas, que intitulei Paisagens, pareceu-me indispensável, por um melindre de consciência literária, voltar ao assunto, concluí-lo. Pede-me pressa um editor bondoso. Tomo o negócio de empreitada; reúno as ligeiras notas soltas que encontro em esquecidos papéis velhos.
Antes assim. Impressões do acaso, apontamentos rápidos, vão-me parecendo preferíveis a um longo estudo que intentasse das mutações de cena que hoje, amanhã, meus olhos relanceiam; e não perco o ensejo, por natural intuito de desculpar-me perante quem me ler, de traduzir aqui uma deliciosa página de um livro francês, também sobre o Japão, escrito há poucos anos. — “As circunstâncias concorrem mais para a inspiração, do que todos os esforços do homem, e a experiência quotidiana é a grande instigadora das imaginações. Vede em literatura: de ordinário, tanto mais breve é um trabalho, ou, se é extenso, tanto mais é feito de pedaços, de fragmentos escritos primitivamente ao acaso dos tempos, tanto melhor ele é; um longo livro de história, um longo romance, um longo tratado de filosofia ou de moral, jamais valerão um conjunto de memórias, uma curta novela, um jornal íntimo ou um caderno de pensamentos, e jamais um poeta épico alcançará o viço de vida que dá ao improviso feliz tamanho encanto; porventura, o homem sensato deveria decidir-se a não publicar senão volumes de páginas destacadas.”
Pretendo ser sensato uma vez na minha vida.
***
Um calor de fornalha. Na África, na China, não é mais sufocante. O enervamento é enorme. Desfalece-se de preguiça, de langor.
No entretanto, é no Estio que o Japão alcança a sua genuína feição típica, pela natureza e pelo povo, descrita pela lenda, pintada pela arte e como os estranhos a imaginam.
A terra é toda verde. Crescem as matas, trepa a erva, viceja o mar de arroz nas várzeas alagadas. Nos jardins, floresce a asagao, a caprichosa trepadeira, cujas flores, as frescas campânulas de todas as cores imagináveis, duram o espaço de uma madrugada; nas águas, floresce o lótus.
O vestuário atinge a maior simplicidade; um único kimono de algodão azul e branco, amarrado na cintura, é tudo... e às vezes nem é tanto. O europeu, quando ainda estranho ao meio, encara então surpreso este Japão nu ou quase nu, passeando sem cerimônia as suas pernas, os seus braços, os seus colos, os seus seios e ainda mais, — exposição paradoxal de grotescos e de encantos...
A casa, durante o dia, também se despe; despe-se das suas paredes de papel, ficam o telhado e quatro ripas; patenteiam-se aos olhos de toda a gente, o lar, a vida íntima.
É a época das peregrinações, das excursões aos templos, aos lugares frescos, onde há brisas, onde há sombras, onde há águas. Trepa-se ao Fujiyama, a montanha sagrada. Busca-se o abrigo de um pinheiro, para petiscar, para folgar em companhia; e os corpos estendem-se na relva, como répteis. As musumés vão molhar os pezitos nas areias das praias, para colherem algas e mariscos. As ribeiras convidam: numas, entre juncos, é a caça noturna aos pirilampos; noutras, — o Sunsidagawa em Tokio, o Iodogawa em Osaka, — em noites calmas, é a flotilha imensa dos barcos de prazer, todos eles sanefas multicores, lanternas, balões, galhardetes, harmonias de instrumentos, festins, rapazes, raparigas, amores...
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Outono.
Em Novembro floresce a crisântemo, a flor heráldica. Estupenda coisa. Não me parece flor; antes um monstro, com a sua enorme cabeleira de mil pétalas, contorcidas como tentáculos de um pólipo, em colorações indefiníveis. Alinhadas nos jardins, sob tendas de abrigo, as crisântemos lembram mulheres, lembram-me cortesãs de Ioshiwara, quando elas vestem os ricos mantos policromos, quando elas enfeitam os cabelos com diademas de espavento, e vêm postar-se em filas, princesas pompejantes do vício, encantadoras e perversas...
No Outono, a folhagem do arvoredo perde naturalmente o verde, e cobre-se das cores mais vivas e mais estranhas, o amarelo, o vermelho, o roxo, em cambiantes vários. A paisagem oferece então um luxo de tintas inarrável; momentâneo, porque as brisas vêm breve despir os troncos, e juncar de folhas mortas os campos e os caminhos. A delicada árvore que aqui chamam momiji, de graciosas folhas digitadas, torna-se toda em púrpura, como em fogo; ao abrigo da sua rama ardente acolhe-se o povo, em magotes, que vem rir, que vem beber, que vem folgar, arrebatado pela cena, que é sem rival em maravilhas.
***
O Inverno.
Mas há Inverno no Japão? Julgo que sim, pois gela a água nos charcos e ribeiros, cai profusa a neve, alvejam no horizonte as serras, como embrulhadas em lençóis. No entretanto, ainda ao sol de Dezembro desabrocha a crisântema, e já em Janeiro as ameixieiras, nuas de folhas, começam a florir. Seja pois um Inverno de flores. É certo que essa grande desolação das longas invernias dos climas temperados é desconhecida em solo japonês. A paisagem é sempre alegre; o céu é sempre azul; os pinheiros, que são as árvores que mais abundam, sempre verdes. Se então se prolongam mais as palestras em roda do braseiro, chegando os deditos ao calor, tomando chá, o povo não cessa de afluir aos teatros, aos bazares, aos templos, ao abrigo da sua rama ardente acolhe-se o povo, aos jardins; apenas, por cuidado ou garridismo, as Musumés cobrem com um manto de delicada cor as cabecinhas petulantes, deixando ver do rosto apenas uma nesga da fronte e os olhos negros, úmidos de amor e de mistério... deve ser antes garridismo, pois ficam deste modo mais sedutoras do que nunca.
A neve, que constitui uma calamidade em tantas regiões, entra aqui no rol das coisas deleitosas. Tanto é assim, que as mulheres, cujos nomes são sempre mimosos como elas, lembrando flores ou outras gentilezas, se apropriam do termo com frequência: — Yuki-San, a Senhora Neve, ou com mais cortesia, Ó Yuki-San, a Nobre Senhora Neve, é nome muito em uso. A nevada, sem que prejudique o povo na vida e no conforto, vem branquear as serranias, os campos e as estradas, esplêndida apoteose de alvuras e purezas; rendilha as árvores de cristalinos ornamentos, ostentando-se como uma florescência imensa, uniforme, que brotasse dos restolhos, da erva, dos bambus, dos cedros, dos pinheiros; sobre os telhados das casas e dos templos, sobre os dorsos das grandes raposas de granito que destes se avizinham, sobre as lanternas de pedra dos jardins, demora-se em fofos flocos, que dão às coisas próximas, realces sedutores; por onde a água corre e se despenha, o frio congela as gotas, adormece-as, transforma-as em recortadas estalatites, que um raio de sol mais quente virá em breve desfazer.
No vocabulário japonês, tão amorosamente naturalista, há um termo de que agora me recordo, que não tem, como muitos, sinônimo em línguas europeias; é yukimi. Yukimi quer dizer: — excursão ou banquete preparado para ir ver cair a neve. — Nas chayas, em certos sítios pitorescos, exemplo — as colinas de Kioto, — combinam-se reuniões; vêm os rapazes, vêm as gueshas com as guitarras, começa a festa ruidosa, interrompida a espaços pela contemplação muda do espetáculo que se oferece; no entretanto, a neve vai caindo numa chuva contínua de folhepos, ligeiramente sussurrante, de um ruge-ruge de sedas que arrastassem, vestindo o solo, as árvores, o colmo das choupanas, pousando mesmo nos vestidos e nas mãos brancas como a neve das moças irrequietas...
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Outro assunto: a história da arte.
No Japão, não há nem houve nunca, sábios; é medida, penso eu, de higiene nacional, consequência de antigos hábitos de limpeza das criadas, que os sacodem do solo como sacodem as teias de aranha das paredes. No respeitante a história, é evidente que o ofício de historiador, com a secura e a frieza que lhe supomos inerentes, não existe. A história japonesa é feita pelo povo, incluindo a colaboração preciosa das velhas, das raparigas, dos garotos; emana das tradições, da lenda e da intuição sentimental das massas. Recorda por este fato os evangelhos bíblicos, escritos pelos rudes discípulos de Cristo, pobres e simples pescadores alheios ao convívio dos clássicos, sem ciência e sem arte, mas abrasados em poesia, em crenças, em amor. Na história japonesa, palpita, como nas páginas da Bíblia, a alma da tribo, propensa, pela tendência geral da gente rústica, ao milagre, à maravilha, ao inverossímil; convindo apenas não esquecer que o japonês, menos idealista do que o hebreu, não vai mui alto no mundo das quimeras, voeja terra a terra, aprazendo-se em entretecer de graciosas fabulações as aventuras dos seus homens ilustres. A história da arte, para este povo feito todo de artistas, sempre sob o arrebatamento das belezas naturais do seu país, é um dos capítulos preferidos, por onde mais rodopia sem freio a fantasia; e é deste capítulo da arte que eu destaco algumas graciosas lendas que se seguem.
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O bonzo Chyo Densu, que viveu pela primeira metade do nosso século XV, foi um grande pintor em coisas religiosas.
Sendo noviço num templo de Kioto, Tofukuji, conta-se que já se dava à pintura com paixão, incorrendo por esta forma no desagrado do superior Daidô, que o ia asperamente repreendendo. Certo dia, acabava ele de pintar um retrato de Buda, quando sente passos de Daidô, que se aproxima do seu pouso; rapidamente, esconde o desenho entre os joelhos; o vulto entra na cela, esbrugando as suas contas, resmungando; do resplandor do deus súbito irradiam chamas de apoteose, que inundam de luz a casa toda; a falta do noviço estava assim conhecida; mas também perdoada, pois Daidô humilhou-se a este aviso do céu, e nunca mais atormentou o seu discípulo.
Já no fim da existência, dignou-se uma vez o Shogun recompensá-lo dos seus muitos serviços, dizendo-lhe que pedisse o que quisesse. — “De nada careço neste mundo, retorquiu Chyo Densu, tendo em cada dia um kimono lavado para vestir e uma tigela com arroz; só vos suplico, senhor, que por vossa ordem terminante sejam cortadas cerces todas as cerejeiras do jardim deste templo, para que de futuro se não torne um lugar de folia e desacato.” — Foi-lhe o desejo satisfeito; e em Tofukuji, ainda até hoje, nem um só pé de cerejeira floresce.
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Tadahira, do nosso século X, pintou certo dia um cuco sobre o pano de um leque. Tão perfeito era o cuco, tão inspirado de verdade foi o pincel que o desenhou, que em todas as vezes que alguém abria o leque, o cuco, assim exposto à luz do dia e à paisagem, acordava, soltava o pio habitual dos cucos. Maravilha!...
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Maruyama Okio, nome moderno, pois é do século XVIII, foi pintor muito célebre, a última glória talvez da escola clássica, convencional, mas cheio de amoroso realismo nas suas concepções. Um seu cliente fizera-lhe encomenda de desenhar um urso bravo. O consciencioso Okio pede a certo aldeão do seu conhecimento que o avise de quando algum apareça pela serra; o aviso vem ligeiro, pois abundam tais bichos no Japão, e ei-lo que parte, com a tinta, com os pincéis e com o mais de que carece. Levado pelos campos, depara com o animal dormindo junto a uma árvore. Mãos à obra, e em curto espaço conclui o seu trabalho e se retira; mas dentro em pouco rasgava a tela, desgostoso, depois de a ter mostrado a um caçador de ofício, em ursos entendido, o qual lhe observou que achava belo o quadro, mas falho de verdade após um exame atento, pois não traduzia a imagem a vaga ondulação que é própria ao arfar do corpo que respira. O melhor da passagem foi ter, anos corridos, contado o aldeão ao bom Okio que o tal urso da serra se quedava dias e dias junto à árvore; até que se deu fé, entre curiosos, que o bicho não dormia, mas se achava ali caído morto...
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Sonhou um dia o Shogun, Generalíssimo do império, que um padre lhe aparecia e lhe dizia estas palavras: — “Eu sou o defunto superior do templo de Kurama; e rogo-vos, senhor, que ordeneis a Kano Motonoba de pintar o meu retrato, para ser colocado no templo onde passei meus longos dias de existência.” — Acordando, mandou chamar o grande artista, fez-lhe a encomenda, e soube então que ele tivera igual visão durante a mesma noite.
O pior é que Kano não conhecera o reverendo, nem lhe constava que existisse um só retrato para modelo. A tarefa era ingrata. O pintor passou então dias sem conto, tendo na frente a tela nua, pincel em punho e tinta preparada, imóvel, perplexo, desesperado de jamais poder realizar o seu intento. Foi em um daqueles dias que uma aranha desceu do alto do teto lentamente até pousar na tela, onde teceu a sua teia, que era nada menos que o esboço do frade a traços rápidos; Kano limitou-se a completar a obra em seus fáceis detalhes.
Outra dificuldade se levanta: Kano desenhara um retrato gigante, em uma grande tela, não refletindo a princípio que nunca poderia conseguir que passasse pela porta do seu modesto albergue. Quando concluído e como o problema se apresentasse irresolúvel, eis sopra de repente uma rajada em fúria, que deita a terra uma parede do albergue, e leva em triunfo, pelos ares, o primoroso quadro até ao templo de Kurama, onde até hoje está, e os visitantes o admiram.
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Sesshiu, um nome glorioso entre a plêiade dos pintores do Dai-Nippon, entrara como noviço aos treze anos no templo de Hofukuji. Sabe-se que, durante a sua aprendizagem, mais se aplicava à arte do que às práticas devotas. Uma vez, por uma ofensa deste gênero, foi posto em penitência junto a uma coluna do templo, durante longas horas, com as mãos atrás das costas, fortemente amarradas. Quando o superior vinha soltá-lo, — imagine-se o espanto do sujeito! — eis que surde de junto dos pés do pobre moço um bando de ratinhos, que se escapam espavoridos pela casa. Qual era a explicação de tão estupendo caso? Eu lhes conto: o penitente, choroso e inativo, fora entretendo o tempo a pintar sobre o sobrado poeirento aqueles galantes animais, servindo-se das próprias lágrimas como tinta, e do dedo grande do pé nu, como pincel; logicamente, os ratos salvavam das iras do velhote as preciosas vidas com que o artista acabava de dotá-los.
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Esta é uma velha lenda clássica da religião de Shinto.
O templo shintoista de Shimo-Gamo, em Kioto, é dedicado à deusa Tamayeri-hime. Esta menina, antes de dar pretexto aos fiéis para ser adorada, achava-se uma vez dedilhando sentidas melodias na guitarra, à beira do rio Seminogarva, quando avistou boiando à tona de água uma feicha vermelha, encimada de lindas penas de certa ave das selvas. Colheu-a e levou-a para casa, colocando-a junto do seu leito. Ato contínuo, sucedeu a maravilha de dar à luz um filho. Seus pais, descrentes de artes milagrosas, e a despeito dos mil protestos de inocência que ela lhes fez, singelamente, não acreditaram no milagre, acusando-a da falta que mais pode envergonhar uma mulher honesta.
Passados anos, Taketsumi-no-Mikoto, o pai da desolada, resolveu aclarar este mistério. Em tal desígnio, ofereceu um banquete a todos os vizinhos; e quando estavam todos reunidos, dirigindo-se ao neto, e entregando-lhe uma taça cheia de saké, que é o vinho do país, disse-lhe isto. — “Leva-a a teu pai.” — A criança, obedecendo, saiu para a rua e pôs-se a contemplar o céu, e ia murmurando uma oração; de súbito, transforma-se num raio, que corisca, subindo às regiões celestes, acompanhado pela mãe, para a qual começou assim a glorificação.
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Encontrei-me, em pleno dia, num luxuoso bairro indígena, que me disseram chamar-se a Cidade-Noturna, pois só com a noite acorda, e só na noite vive, deslumbrante de galas, de lumes, de harmonias, de povo alegre que transita, para cair em repouso ao alvorecer da madrugada.
Àquela hora, a estranha cidade, esbraseando a um sol de intensidades tropicais, do mês de Agosto, modorrava; tórpida quietação; raros vultos se viam, — mendigos, vadios, párias da vida, — cosidos com as nesgas de sombra dos edifícios e das árvores que ajardinam ao centro as avenidas.
Fixei casualmente a atenção num edifício mais pomposo, de vastas dimensões, todo de madeira nova, alto de quatro ou cinco andares, rodeado de varandas, donde pendiam a arejar ricas colchas de seda e mantos de matiz; não sei que caravançará de misteriosos hábitos, aquele, silencioso também àquela hora, mas dando de si a ideia de conter nos seus arcanos uma legião do moradores.
Ao centro deste edifício erguia-se em triunfo um amplo portal, de madeiras lustrosas; seguia-se-lhe um vestíbulo; depois alguns degraus de escada, acharoados; e ao fundo, muito ao fundo, havia passadiças cobertas de esteiras muito limpas, corrediças entreabertas patenteando, numa meia penumbra, confusos verdes de jardim.
Junto ao portal, dois moços de serviço, quase nus, dormiam sobre um banco, como dois cães de guarda cansados da vigília. Notei que vultos de mulher, de quando em quando, passavam, perpassavam, longe, no último plano; lânguidas, vagarosas, com os penteados desfeitos, arrastando amplas túnicas de seda estampadas de entrelaçamentos de flores. Uma delas, por desenfado, avançou até ao portal, ergueu os braços alto, enfiou os alvos dedos de ociosa pela juba negra dos cabelos; e assim, naquela posição, pôs-se a fitar o azul do céu que uma ave cruzava em voo rápido. Gentilíssima, esplêndida no vestido, miúdas formas graciosas, da cor do jaspe os pés descalços em hábito de humildade, e um olhar de dezoito anos quando muito, pueril, coando a expressão íntima de um ser afeito à passibilidade e inconsciente das coisas deste mundo. De dentro, uma voz de velha, azeda e imperativa, chamou-a pelo nome: — “Mitsu-Riyo!” — E eu fui seguindo o meu caminho, acordando de súbito para um enternecimento doloroso, que me é peculiar em presença de certos relances da existência, um pequenino nada às vezes, confuso e passageiro... Mitsu-Riyo quer dizer, literalmente: — Mel que se oferece — a quem? à turba, a toda a gente.
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No Japão, uma vez em cada ano é a festa das meninas, e uma outra vez em cada ano é a festa dos rapazes.
Na primeira, como de justiça, e em atenção ao sexo, tudo se passa entre a família, de paredes a dentro; e o profano nada logra devassar dos júbilos daquelas presumidas, vestidinhas com mil esmeros e atenções, em êxtase em frente do altar que se arma em casa em honra delas, aonde se dispõe, além de coisas santas, a coleção de bonecas e brinquedos, a série em miniatura do espelho, da caixa de costura, do braseiro, das chávenas, da chaleira, de tudo mais onde mais tarde os seus dedos mimosos pousarão, no plácido exercício dos seus deveres de esposa e mãe por sua vez.
A festa dos rapazes é pública, ostensiva. É certo que no lar se agrupam os troféus de armas e alegorias de guerreiros, e brinquedos condizentes com a turbulência inata nos garotos; mas no que mais se empenha o cuidado da família é num curioso emblema que enfeita a cidade inteira, oferecendo aos passeantes um estranho quadro de festa e alegria. Cada qual que tem filhos — e quem há que os não tenha? — espeta a prumo ao pé da sua casa uma vara de bambu de grande comprimento, tendo amarrado na ponta um enorme peixe de papel, soberbamente pintado de negro ou de vermelho, escamudo, com ampla cauda e esbugalhados olhos; cada qual amarra um peixe, ou dois, ou três, ou quatro, conforme o número de filhos; e há casais tão abençoados dos deuses e tão cumpridores do seu dever, que amarram sete peixes, oito peixes, um cardume!...
Qualquer curioso em coisas de estatística poderia, sobre uma eminência da cidade, registrar pelo número dos peixes o número de filhos varões naquele sítio; mais ainda: os ventres beneméritos que mais soldados dão ao exército imperial.
Há uma lenda adorável nesta usança. Os peixes figuram carpas, no Japão abundantíssimas; a carpa, sabe-se, vive nos rios, e apraz-se teimando a nadar contra a corrente, subindo da foz até às origens; aqueles peixes de papel, enfunados pelas brisas fuscas que reinam em geral naquela época, que é em Maio, perfilando-se contra o vento, dão uma perfeita imagem do fenômeno. Assim o homem, no curso da existência, deve adquirir a rude teimosia de resistir, de passar para além da corrente dos revezes, dos desalentos, das intrigas, até alcançar o lago bonançoso da paz da consciência e da abastança ganhas com o seu trabalho inteligente. A festa é ao mesmo tempo um aviso aos tenros nipônicos de agora, ranhosos, rabugentos, dependurados da teta maternal, ou, mais crescidos, caçando as cigarras pousadas sobre as árvores, lambendo doçarias e soletrando o i-ro-ha pelas escolas, mas que amanhã constituirão a massa ativa e dirigente desta tribo inchada de orgulhos patrióticos, e abrasada em ambição.
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Se um dia me sobrarem ócios e pachorra juntamente, hei de ainda escrever um longo capítulo inspirado na mulher japonesa, tal como eu a compreendo, ou antes, tal como a não compreendo. Não agora. Agora intento apenas falar dela em breves frases, ao capricho das rápidas ideias que me ocorrem.
Qual é o seu destino? O enlevo do lar. Seria pois, como quem diz, um canário cantador, gentil e inútil, saltitante, papeando ao sol e enchendo a casa toda de alegria, se não se devesse incluir em tal enlevo, dois méritos ainda: o delicado instinto da ordem, da limpeza, e um fundo de carinho maternal, tão amoroso, que talvez não tenha igual no mundo inteiro. De sorte que, sem missão ativa propriamente, parece vir ao mundo destinada a uma doce passibilidade feita de cuidados e sorrisos, para tornar feliz o esposo, e preparar para a vida um outro homem, o seu filho. Sem iniciativa própria no ramerrão da existência quotidiana, simples nos hábitos, nas ocupações e nos desejos, a sua condição mantém-lhe, e mesmo lhe exagera, os atributos peculiares do sexo, — delicadezes físicas fixadas no requinte, e um discorrer ingênuo de criança.
É uma escrava do homem? É difícil dizê-lo, neste mundo, que é todo escravidão. Sim, será talvez; e recorda-se este velho preceito de moral, ainda não esquecido: — “Obedece a teu pai, mais tarde a teu marido, mais tarde a teu filho primogênito.” — No entretanto, bem quiméricas algumas devem ser as que suportam... pois para que lhes servem a elas, as musumés, o sorriso perene dos lábios, o mimo dos gestos, das feições, do garridismo do seu trajo, a alma de graças que têm nas pontas dos dedinhos, que tudo aformoseiam onde tocam, senão para trazerem submisso ao jugo dos seus desejos e caprichos o bruto seu senhor (porque os homens são brutos em todo o planeta) e folgarem como princesinhas voluntárias?... Que se julgam felizes, elas, esta Senhora Ameixieira, esta Senhora Crisântemo, esta Senhora Primavera, não há dúvida, concluindo por este mesmo sorriso dos lábios frescos durante todo o dia — e possivelmente toda a noite — pela alegria fervilhante dos olhitos, pela serena ondulação da mímica, já surpreendendo-as nos mil misteres caseiros, já pela rua, caminho dos bazares, dos templos, dos teatros, dos campos floridos...
É certo todavia que uma grande dessemelhança afasta a mulher japonesa, da mulher ocidental, pelo menos daquela que a importação despeja dos paquetes e vem pisar a terra de Nippon; a ponto, persuado-me, que um sábio zoólogo qualquer, que descesse do planeta Marte a estas paragens, jamais ousaria classificá-las como exemplares da mesma fauna.
Vede esta femeazita minúscula, toda ela pieguices de roupas e maneiras, frágil, sem músculos, com mãos e pulsos de criança, imprópria para o esforço e para a luta; passa a vida de joelhos, sobre macias almofadas, brincando com bonecas como se fossem filhos seus, ou brincando com seus filhos como se fossem as bonecas; se sai de casa, vai arrastando os pezitos em passos indecisos, preguiçosos, borboleta boêmia , sem rumo e sem intento; sabe cuidar dos seus cabelos, pintar a boca de escarlate, dedilhar no shamicen, compor ramos de flores, servir o chá nipônico, ler histórias de raposas fabulosas e de macacos legendários...
Agora comparai esta quimera humana com as rudes viageiras que o mar aqui arroja, bravos exemplares do feminismo em moda, fontes de músculos, de ânimo atrevido, usando monóculo, bengala e colarinho; deixam às amas os filhos, se é que os têm, para correrem as cidades a passos de gigante, ou, mais velozes ainda, manejando com mão firme a bicicleta; umas são jornalistas, outras são missionárias, outras são médicas, outras são sábias, outras são coisa nenhuma. Não há comparação possível entre as duas. A europeia ofusca a japonesa pelos seus méritos triunfantes. A esta, humilde e tímida, só restaria acaso uma desforra: — era entreabrir o kimono de seda na parte junto ao peito, patentear-lhe o par de maminhas brancas e roliças, com os bicos cor-de-rosa macerados pelos dentinhos do garoto que lhe brinca no colo, nu em pelo…
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Uma amável senhora, cujas cartas vêm de quando em quando amenizar a solidão do meu viver, dizia-me ainda há pouco coisa parecida com o seguinte, a propósito de dois livros que escrevi (que ela leu, a bondosa), e da subsequente prolongada preguiça literária em que fiquei: — “Você deu ao público as suas ilusões; o público espera agora as suas desilusões.” — Não sei ao certo o que então lhe retorqui; mas eis o que me ocorre responder-lhe, ao escrever a ultima página deste livro:
Vá de barato que a gente publique as suas ilusões; melhor fora calar-se, todavia. Mas para as desilusões não há, suponho eu, publicidade admissível; sofrem-se no silêncio íntimo, e manda o orgulho próprio, além de outros motivos, que a gente as não divulgue. No entretanto, para o país japonês, com o qual ia especialmente contender a gentil observação que referi, — um nadinha maliciosa, querendo aparentar estímulo apenas às minhas atividades em letargo, — para o país japonês, devo confessar que me encontro ainda no período do enlevo e dos feitiços. Não há terra, que eu conheça, — e tantas tenho conhecido! — mais deslumbrante do que esta nos aspetos; não há povo mais interessante do que este, pelo feitio moral, pelos costumes, pela alma artística; não há mulheres mais mimosas do que estas musumés; e não há no mundo inteiro gente mais feliz do que esta gente japonesa; é dizer tudo. O que o tempo e a experiência me têm dado a conhecer, é a convicção profunda da incompatibilidade absoluta entre tudo isto e o europeu; o Japão é dos japoneses e só dos japoneses, o europeu, como um pingo de azeite dentro de água; conserva-se aqui sempre isolado, não se assimila ao meio. Porquê? por dessemelhanças irreconciliáveis do sentir, da educação, dos hábitos, por essa invencível barreira que se define em três palavras, a — diferença de raças.
Minha senhora: para poder assim sintetizar-se um sentimento como eu acabo de fazer, para adivinhar o encanto no que nos é vedado, para dizer que é grato o aroma de um ramalhete de flores que nos mostrassem dentro de uma redoma de cristal, não é fácil tarefa; tem de elevar-se a alma a um extremo altruísmo estético, paradoxal até, não por virtude nem ciência, mas derivado de condições tristes da vida, e quando se é já tão pobre em esperanças e desejos, que o indivíduo rasteja como um pária moral, alheio a tudo.
Tal pária, num ponto, num só ponto, é grande como um Deus: vê o mundo do alto, parecem-lhe os homens formigueiros, segue com a vista as formigas nas batalhas, nas labutas, nos cuidados e nos prazeres; em tal estado de desinteresse e independência, custa pouco então apontar com o dedo para a tribo que mais bem dotada parece na partilha das graças, dizer — é esta, o Dai-Nippon.
Deixe-me pois guardar, para guardar alguma coisa, as ilusões deste país... e a sua estima, e esta não é uma ilusão.

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