11/03/2017

Mar de rosas (Conto), de Virgílio Várzea

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Mar de rosas
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Âncora a pique, o belo steamer partia, aproado à barra de onde devia rumar ao Rio Grande do Sul.

Um dos pilotos, à borda, sobre o castelo, presidia à faina de suspender, ultimando-a, a olhar cuidadosamente, com um dos marinheiros, o içar lento do ferro ao pequeno mas forte turco recurvo, para o aboçar ao alto, no lugar costumado, sem que as suas grossas e angulosas unhas ou patas pudessem raspar a pintura ou enjambrar por acaso nalguma chapa do casco.

Florianópolis, risonha e resplendendo ao sol vivo e de ouro da manhã pela sua casaria branca dominada de torres de igrejas, fugia à ré pouco a pouco, a diminuir e a esconder-se vagarosa e gradativamente na profusa e rendilhada vegetação dos seus outeiros e morros...

Os passageiros, à tolda, eram ainda em grande número — apesar dos que haviam já desembarcado em Santos e Paranaguá — e agora todos da terra dos pampas ou que para ali se destinavam, pois Florianópolis era o derradeiro porto de escala e a cidade do Rio Grande o ponto terminal da viagem, de onde o vapor devia regressar ao Rio. Para os que demandavam Porto Alegre — e constituíam a maior parte — havia correspondência com o vaporzinho Estrela, que completava a linha até a capital rio-grandense, porque o Órion, como o Sírio, o Saturno e o Júpiter, pelo seu grande calado, não podiam singrar a lagoa dos Patos e ter acesso até aquela capital.

Que alegres e grazinantes passageiros esses, sobretudo às ancoragens nos portos ou quando o navio em singradura em águas plácidas, como essas da vasta baía sul de Santa Catarina!

Entretanto, o Vítor Vale, um dos passageiros, deixara as álacres rodas dos camaradas esparsos pelo tombadilho e se isolara a um canto pouco frequentado dos balaustres de ré. Olhava daí, obcecadamente e alheado de tudo, o lento e saudoso recuar e desaparecer da sua cidade natal, que não via havia vinte anos e onde se demorara apenas duas horas. “Uma verdadeira visita de médico — lamentava ele intimamente — depois de tão longa ausência!” Porém, à volta da missão a que ia, desforrar-se-ia disso opulentamente — prometia a si mesmo — deleitando-se em descansar, por um ou dois meses, nesse maternal regaço, para ele carinhoso e sagrado.

E tristemente entrara a desfiar, dentro da alma, recordações e venturas passadas na quadra límpida e risonha da sua infância já morta, arremessando ansiosamente para trás, para terra, o seu meigo olhar de exilado, de prisioneiro do navio e do Mar, apegando-se, ainda, derradeiramente, numa longa, arrastada e adorativa despedida, não só pela emotividade vivíssima da visão o dos demais órgãos dos sentidos, como pelos filões invisíveis e radiantes do espírito, à sua amada Florianópolis que pouco e pouco se afundava nas vagas...

Estava assim, nessa atitude contemplativa e nostálgica quando, de repente, junto das suas, umas mãos muito lindas, brancas, finas, princezais, cheias de anéis que faiscavam por aros de ouro cravejados de pedrarias que pareciam microscópicos astros, pousaram delicada e docemente no corrimão dos balaustres. E logo um vulto tentador de mulher — a dona dessas mãos encantadoras — surgiu ao seu lado, voltado todo para ele. “Vênus Afrodite!” exclamou de si para si, despertando de súbito mas alegremente do seu sonho melancólico.

Sim, era Vênus Afrodite, surgindo-lhe, não das espumas do Egeu, mas das águas catarinenses, por sobre a ampla tolda do steamer. Era sem dúvida uma Vênus, pela graça e beleza, essa passageira rio-grandense que, gracejadora inteligente e inquieta, aristocraticamente espirituosa e galante, como se fora a encarnação mesma da Verve, vivia, desde a saída do Rio, a enredar a todos na teia de ouro sutilíssima dos seus atados gracejos.

E ela agora, vibrada decerto pelo romantismo excessivo do Vítor, lançava por sobre ele, como nunca, esse luminoso zaimph do seu requintado espírito, dizendo-lhe, com a sua boca pequenina e grega, fresca e rosada como um morango ou um botão de flor entreaberto, com os olhos muito fixos sobre os do rapaz, mas uns desses belos e grandes olhos negros rasgados que parece estarem a abrir perenemente janelas de ilusões e encantos sobre aqueles a quem fitam:

— Já sei que a sua cidade natal lhe arrebata agora o coração e o espírito para todo o resto da viagem e, talvez mesmo, para toda a sua excursão ao Rio Grande... Não é verdade? Diga...

E ria-se, ria-se a perder, deliciosa e arrebatadoramente, mostrando na linda boca de romã muito madura uns dentes miudinhos e brancos como as mais raras pérolas de Ofir.

E ele dizia-lhe de manso, gloriado e agradecido, mas fundamente temeroso da imensa dominação e prestígio dessa grande flor humana, tentadora e inaudita:

— Sim, ó Deusa irresistível!... Mas deixa-me, por agora e por um instante somente, com a tua olímpica beleza e o teu divino espírito!... Oh! deixa-me, deixa-me, fascinantíssima e gaúcha, Afrodite, só entregue à minha saudade de exilado e de artista!...

E ela a enredá-lo mais e mais na teia de ouro da sua verve, da sua beleza, do seu espírito...

Mas o Órion já transpunha a barra, e Florianópolis se sumia de todo na doce curva longínqua do seu golfo azulino. E as águas da costa, de Naufragados para o sul, mostravam-se, como rara, rarissimamente se tem visto, numa calma e bonança indizíveis.

No entanto, Vênus Afrodite, a soberba Vênus Afrodite sulista, não deixava o Vítor Vale dizer-lhe agora magnética e musicalmente:

— Mas que viagem, meu amigo! Que viagem deliciosa e feliz! Um verdadeiro “mar de rosas” como se diz tão pitorescamente na expressiva linguagem marítima.

O Vítor tornou-lhe então, respeitoso mas num grande enlevo íntimo:

— É verdade, ó Deusa! Vamos aqui em mar de rosas... Mas a maior rosa deste mar és tu mesma ó Afrodite!...

Ela lançou-se a rir de novo, como sempre, com viva e ardente delícia.

A revoada de gaivotas que nos acompanhava pela popa, desde a saída do ancoradouro, como uma bizarra guarda de honra alada e límpida, aumentava consideravelmente, tornando-se imensa nuvem, com os bandos de companheiras que se lhe vinham juntar, ao instante, partindo das ilhotas próximas, por entre as quais ia singrando o vapor, como as dos Papagaios, as das Três Irmãs, as dos Corais...

Afrodite pôs-se então a falar das gaivotas, das grazinantes, graciosas e alvoroçadas gaivotas que, pinturescamente, agora, como em despedida final aos de bordo — pois que o Órion ganhava já a toda a força o mar alto, embora com a costa quase sempre à vista — envolviam, em voos brancos recurvos, suavíssimos e contínuos, o ar em torno e o steamer.

E, achegando-se mais ao Vítor Vale, murmurou-lhe amorosa e tremulamente:

— Olhe, Vítor. Como elas andam alegres, livres e felizes, as gaivotas!... Nascem, amam e morrem tranquilas e suavemente, a esvoaçar sempre ao sol, sobre a costa e sobre as águas... Quem lhes não há de invejar o destino!...

— Sim, bela Deusa! as gaivotas são bem mais felizes que os homens!...

E assim foram os dois, entre os outros passageiros, a gracejar e a brincar, durante um dia e uma noite, a bordo do belo Órion, por essas ásperas e revoltas ondas do sul, tornadas então, excepcionalmente, em verdadeiro “mar de rosas”...

***


Fora bem um sonho para o Vítor Vale toda essa esplêndida travessia, sonho de que só despertou já à barra do Rio Grande.

Quando o Órion, na sua rota ligeira, aproou por fim à barra e apareceu, já sem névoas, a bela terra gaúcha, correndo nordeste-sudoeste, como a rainha do sul, o Vítor que, qual os demais passageiros, a contemplava num encanto, tendo Afrodite ao seu lado, a gorjear como sempre coisas de Arte e de Espírito, exclamou com efusão, a lisonjear gentilmente damas e cavalheiros gaúchos que enxameavam a tolda e, sobretudo, a lisonjear a formosíssima Deusa que, perfeitamente sabedora da missão a que ele ia, tanto e tanto o distinguira em toda aquela viagem:

— Salve, grande Estado dos pampas, terra de heróis legendários e de mulheres bonitas!...

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