11/04/2017

Na Bretanha (Conto), de Virgílio Várzea


Na Bretanha

(Maël)
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Acompanhada da preceptora, Madalena, obedecendo ao impulso de suas ideias, encaminhou-se para o Campo dos Mártires. Aí se deteve algum tempo a olhar meditativamente o monumento em que jazem as ossadas das vítimas de Quiberon. Leu e releu a inscrição latina gravada no frontão do cenotáfio de mármore: PRO DEO, PRO REGE NEFARIE TRUCIDATI. E, de vez em quando, contemplava também a lâmpada melancólica que desce à grande fossa sinistra, ao fundo da qual se confundem os destroços gloriosos daqueles que, atraiçoados pelos perjuros, deram a vida pelas suas crenças.

Depois dirigiu os seus passos para as margens pitorescas do Auray, com os olhos perdidos ainda nessa colina funerária que presenciou o negregado crime de Tallien e da Convenção, de Tallien, o alucinado corifeu do Thermidor, esse amigo de frases campanudas e de confusa latinidade, mas acordes com o seu temperamento de impulsivo e degenerado, — de Tallien que um dia exclamara contra a justa insurreição dos filhos da Bretanha:

— Ousaram perturbar a terra da Pátria?! Pois bem: a terra da Pátria os há de devorar a todos impiedosamente!...

E sentia-se presa àquele sítio sempre repassado de um encanto penetrante e de uma poesia sombria. Quem sabe, talvez as almas dos fuzilados trouxessem ainda mal-assombrado esse outeiro de ervagens verde negras, quando, à hora da meia noite, saíam a girar, em rondas invisíveis por entre as ramagens murmurosas e cheias de luar, atraindo para aí bandos e bandos de rouxinóis! Quem poderia contestar a verdade da crença popular, narrando que esses alados cantores aí se reuniram, pelas primeiras vezes, nesses agitados dias de julho de 1793, em que novecentos cidadãos, o peito varado pelas balas e a face lívida, voltada para o céu muito alto mas sereno e juncado de estrelas, ficaram a dormir para sempre no imenso fosso que fora cavado às pressas e tumultuosamente pelos soldados Hoche?...

Mas o sol desaparecera já tristemente para as bandas de oeste e do mar. A noite invadia o firmamento e amortalhava colinas e águas, campos e arvoredos, nas suas pesadas roupagens de crepe. No entanto, ainda a escuridão não se adensara de todo e já a lua cheia surgia, iluminando tudo com a poeira da sua luz doce, idealizadora e de prata.

Diante do esplendor do luar, Madalena e a preceptora resolveram prolongar o seu passeio, avançando até ao cimo do pequeno monte de Loch, de onde se dominava amplamente a paisagem. Caminhando a passo igual chegaram juntas à falda da empinada eminência. E começaram logo a galgar o zigue-zague abrupto que levava até ao terrapleno da torre.

Ao chegar aí, apressou-se em chamar a atenção da companheira para aquela velha construção. E mostrava-lhe a grande cruz de Loch, culminando a torre ameiada e quadrada, com rendilhados torreões aos ângulos à maneira de estranhas guaritas, e que, segundo a tradição, fora construída pelos Chuanes, no tempo das grandes guerras da Vendeia. Esta torre de Loch não é muito alta e mede apenas treze ou quinze metros da base ao ápice onde se acha a grande cruz de pedra, talhada de um só bloco; porém o outeiro, sobre o qual se eleva, é dos mais altos daquela região, permitindo abranger do seu píncaro um maravilhoso panorama.

Nesse momento mesmo a vista era admirável.

Uma brisa muito tênue, suave e fresca agitava a fronde das árvores. O plenilúnio mostrava a leste o disco cheio e perfeito, escalando o firmamento límpido e claro como feito de cristal. Estrelas rutilavam numerosamente, como enormes diamantes. Embaixo, a terra achatava-se, desenrolando anos longínquos, prodigiosos, reverberando também, aqui e ali, nas águas, sob a luz do alto. Os cimos das folhagens pareciam caiados. Tal era a brancura da luz que, na gradação proporcional dos tons, as sombras projetadas tinham uma pretidão intensa, de tinta de escrever, desenhando nitidamente perfis sobre o solo. E o luar escorria, como água, por sobre a folhagem: fazia degraus, e caía em cascatas pelos altos maciços dos bosques, acentuando profundamente grandes bordados e manchas largas de sombras. As águas do Auray incendiavam-se, como se todo o rio fosse feito de raios de prata em fusão. Abaixo da colina, os telhados e os muros da aldeia próxima alvejavam numa claridade mística, discreta. E para além da ponte de pedra, unindo as duas margens do pequeno rio, São Goustan deixava ver um amontoamento de casas cobertas de lousa ou colmo, com frontões do século XVI, igrejas, castelos e a barragem das águas, cujo perpétuo cachoeirar fazia tremer os reservatórios de pedra. Estas águas, espumantes e luminosas, atraíam indefinidamente os olhos.

O Auray corria em meandros, enlaçando a terra com suas numerosas voltas radiantes. Sobre a colina escarpada a torre de Loch destacava-se, inacessível e soberana no Azul, dominada pela cruz que assinalava o testemunho supremo da Religião subjugando a Natureza. Em toda a volta, para longe, o panorama ampliava-se ainda, desenrolava-se em planos sucessivos, em painéis variados e estranhos, de um claro-escuro gigantesco, inaudito, à Rembrandt. Em certos recantos descobriam-se, por entre massas de ramagem, paredes brancas de convento. E do meio dessas pastas sombrias surgia, mais longe, uma abadia e o Campo dos Mártires. Os caminhos, como fitas, riscavam a planície e uns trilhos de estrada de ferro, dispostos como sempre em paralelas sem fim, deixavam escapar, aqui e ali, grandes brilhos metálicos. Distante, muito distante, no extremo horizonte onde o olhar só percebia contornos incertos, pontos rútilos e claros, como estrelas pálidas suspensas a alguns metros do solo, marcavam a iluminação de outra pequena cidade bretã.

Madalena, reconhecendo-a, murmurou alegremente:

Lá está Santana!...

E enviou mudamente um pensamento secreto à grande imagem dourada que domina a torre da basílica de Santana. Gloriosas claridades — pensava a moça — banhariam decerto, àquela hora, a efígie célebre e sagrada, cercariam a imagem milagrosa da mãe de Maria de um grande nimbo triunfante...

Mas do seio daquela natureza em repouso, daquela terra muda, daquelas massas de vegetação, daquelas coisas adormecidas no silêncio, erguia-se agora um acorde poderoso, uma imensa harmonia de vozes identificadas, constituindo um verdadeiro poema de adoração. E à medida que as horas altas da noite tornavam a mudez mais completa, os mil pequeninos rumores esparsos suavizavam o ambiente. Subia do chão e invadia o ar o estalido metálico dos grilos. Depois, muito longe, o latir rouco e velado dos cães de quintas, cortado irregularmente pelo monótono e tétrico das corujas.

Alguns passarinhos agora elevavam o seu canto no recolhimento tácito da campina, invadida pelos ninhos e posturas da estação estival. Ouviam-se ranger os gorrui-gorrui de alguns piscos joviais — pobres pássaros que ralam e limam dentro da garganta, eternamente este som.

Madalena e a preceptora extasiavam-se, enlevavam-se na contemplação daquele extraordinário quadro da Natureza. No entanto, os cães haviam emudecido, bem como as corujas. Os piscos e as toutinegras mantinham apenas notas smorzantes. E os grilos veladores faziam calar, pouco e pouco, o pique-pique monótono de suas membranas metálicas...

De repente, um som mais alto abriu voo no espaço, um som suave, raro, feito para a harmonia das trevas, tão cheio de melodia que, ouvindo-o, se sentia uma estranha curiosidade de inquirir se esse som provinha com efeito da laringe de um pássaro ou de que origem, embora sugerisse logo à lembrança a lenda de Filomena, a grega. Mas em que ponto pousava o maestro desse descante noturno?

Lá embaixo, muito embaixo, no imenso fundo negro onde cimalhas de mosteiros erguiam as suas linhas alvacentas, além, nos maciços de árvores acima do Campo dos Mártires, mal-assombrado decerto pelas almas dos mortos — um rouxinol, inclinado para o ninho da companheira a fim de amenizar os longos enfados da incubação, acabava de lançar o acorde iniciante a todos os seus irmãos, atentos ao sinal e velando, como ele, pela eclosão de suas esperanças. Era apenas um prelúdio. A nota rara rolou na espessura das ramagens, com um poder desconhecido e, como uma centelha elétrica, fez romper um concerto de vozes maravilhosas. Então, por toda a parte, simultaneamente, começou a orquestração.

A preceptora, que estava ao lado de Madalena junto à grande cruz de pedra da torre, murmurou docemente:

Nightingale!

Eis, certamente, um vocábulo que desmente o renome de aspereza da língua anglo-saxônia. Há nessas quatro sílabas delicadíssimas uma vibração cristalina, que melhor que qualquer outra exprime o encanto que representa.

Nightingale, cantor da noite!

Só os latinos possuíam talvez um termo mais doce para exprimir a mesma ideia e representar a mesma imagem, mas tinham ido buscá-lo ao sobrenatural do Mito e da Ficção...

No entanto os rouxinóis compunham um coral.

Oh! Harmonia! Harmonia divina amada de Platão, o poeta filósofo, que fez de ti o supremo ideal da Ciência e da Natureza, terás porventura a tua origem nos maestrinos dos bosques e da noite?!...

E o concerto generalizava-se a toda a paisagem, estendendo-se até as matas do Castelo e aos pequenos arbustos enfezados da lande.

Soara meia-noite.

A moça e a preceptora deixaram então precipitadamente a torre de Loch e retomaram a estrada que conduzia a Ely.

Nesse instante, também, o concerto admirável findava. Obedecendo — quem sabe! — a alguma batuta mágica, os rouxinóis emudeciam.

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