11/23/2017

Nízia Figueira, sua criada (Conto), de Mário de Andrade


Nízia Figueira, sua criada
(Os Contos de Belazarte)

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Belazarte me contou:

Pois eu acho que tem. Você já sabe que sou cristão... Essas coisas de felicidade e infelicidade não têm significado nenhum, se a gente se compara consigo mesmo. Infelicidade é fenômeno de relação, só mesmo a gente olhando pro vizinho é que diz o “atendite et videte”. Macaco, olhe seu rabo! isso sim, me parece o cruzamento da filosofia cristã com a precisão de felicidade neste mundo duro. Inda é bom quando a gente inventa a ilusão da vaidade, e, em vez de falar que é mais desinfeliz, fala que é mais feliz... Toquei em rabo, e estou lembrando o caso do elefante, você sabe?... Pois não vê que um dia o elefante topou com uma penuginha de beija-flor caída numa folha, vai, amarrou a penuginha no rabo com uma corda grossa, e principiou todo passeando na serrapilheira da jungia. Uma elefanta mocetona que já estava carecendo de senhor pra cumprir seu destino, viu o bicho tão bonito, mexe pra cá, mexe pra lá, ondulando feito onda quieta, e se engraçou. Falou assim: “Que elefante mais bonito, porca la miséria!” Pois ele virou pra ela encrespado e: “Dobre a língua, sabe! Elefante não senhora! sou beija-flor.” E foi-se. Eis aí um tipo que ao menos soube criar felicidade com uma ilusão sarapintada. É ridículo, é, mas que diabo! nem toda a gente consegue a grandeza de se tomar como referência de si mesmo. Quanto a que lhe suceda como com a Nízia, homem! isso estou imaginando que só com ela mesmo... Que Nízia?

...se chamava... não me lembro bem se Ferreira, Figueira... qualquer coisa em “eira”, creio que era Nízia Figueira. Essa sim, de família nacional da gema, carijó irumoguara com Figueira ascendente até o século dezessete.

Quando em 1886, tendo vendido o sítio porcaria perto de Pinda, o pai dela veio pra S. Paulo, virou mexeu até que teve coragem de comprar com o dinheiro guardado esse fiapo de terra baixa, então bem longe da cidade, no hoje bairro da Lapa. Em 88 Nízia com dezesseis anos de mocidade, guardada com olho de Figueira pai sempre em casa, foi com o velho e a criada preta que tinham, morar na chacrinha recém-comprada. Figueira pai, nem bem mudou, deu com o rabo na cerca, por causa dum antraz que o panema dum boticário novato imaginou que era furúnculo. Resultado: antraz tomou conta de Figueira que morreu apodrecido. Dores tamanhas, que se tivesse vizinho perto, não podia dormir de tanto gemido que todo o orgulho daquela carne tradicional não podia que não saísse, arrancado do coração meio com bastante vergonha até.

Nízia se via só neste mundo, contando apenas dezessete anos e uma inocência ofensiva, bimbalhando estupidez, valha a verdade. Só, mais a “prima Rufina”, como ela desde criancinha se acostumara a chamar a criada preta. Prima Rufina tinha vinte e muitos, e era bem enérgica... Plantaram pereira, pessegueiro, uma horta grande. Nízia tricotava, tricotava, fazendo sapatinho, palitozinho, touquinha de lã pros filhos desses homens. Prima Rufina vendia tudo na cidade, couve hoje, pêssego verde pra doce amanhã, trabalhinho de lã todos os dias. Eu sei que chegava muito pra elas viverem e até Nízia guardar um pouco pra velhice.

Prima Rufina saía com o baú na mão, ia na casa dum, na casa doutro, se afreguesou num instante, com tanta lábia... Pera de presente pra filha de dona Maria, bala-de-açúcar pros filhos de seu Guimarães, saber seu Quitinho como passou: trazia sempre dinheiro para o sustento. Menos o tostão ficado na venda, está claro, em troca de boa pinga de Deus.

Nízia olhava a dinheirama se engrossando, porém não sabia que dinheiro se gasta noutras coisas; e os mil-réis continuavam empilhados na gavetinha da cômoda. Prima Rufina é que aprendeu a vida... Não contava nada, quieta, preparando a janta, cachimbo no beiço grosso. No entanto bem que aprendeu...

Não durou muito, se enrabichou por um canhambora safado que vivia ali mesmo, nas barbas da cidade. O filho-da-mãe abusou dela quanto quis, deixou prima Rufina barriguda e inda por cima desapareceu de repente, levando trinta-e-seis mil-réis que pedira de emprestado pra ela. Nízia olhava aquela barriga redondinha que nem arandela, afinal perguntou:

— Uai! nhá Nízia, é doença! estamo trabaia má, barriga empina. A muié de nhô Marconde já me premeteu limão-brabo pra mim, limão-brabo sara eu!

Nízia pensava no antraz do pai e tinha medo.

Barriga, de tanto crescer, teve um dia em que careceu de botar o desgraçadinho pra fora. Prima Rufina veio correndo pra chacra, deixou o baú por aí, nem sabia mais na casa de quem, só portando na venda pra comprar a garrafa de caninha.

— Olha que tu vais por bom caminho, rapariga!

— Cuide de seus negóçu, viu!

Chegou, fechou-se por dentro no quarto, e o filho veio vindo sem que prima Rufina desse um gemido, tal-e-qual os animais do mato. Nízia mandava ela preparar a janta. “Não posso! perpare mecê!” ela roncava apertado. Que seria que tinha sucedido pra prima Rufina!... era o antraz, na certa... Nízia teve mortes, do medo de ficar sozinha.

— Mecê se deite, num s’incomode cum eu!  escutava, quando vinha chamada por aqueles guinchos abalados, que nem choro de criança. Não era choro não, naturalmente prima Rufina que sofria com o antraz... Que havia de fazer? a outra mandava ela deitar, deitou. Perguntou pra escuridão. Não tinha nem guincho mais no outro quarto. Decerto não era nada. Meia inquieta adormeceu.

Prima Rufina quando viu que não tinha mais vida na casa, se levantou. Pinga já estava toda no lugar do tiziu saído e sonhando na capa de xadrez. Carecia de coragem. Pois foi na guarda-comida buscar o espírito-de-vinho e mamou na garrafa mesmo. Enrolou bem a criancinha e saiu, saiu sim! De vez em quando sentava no caminho, suor correndo bica de dor, vista feito vidraça de neblina...

Não era madrugada ainda, a preta já não tinha mais filho no braço. Dinheiro? não vê que se esquecera de trazer! primeira venda entreaberta, pronto: entrou. Foi um pifão daqueles. Só dia velho, empurrou a porta da casa, rindo boba, com os olhos derretidos num choro sem querer, cantando o “Nossa gente já tá livre, toca zumba zumba zumba”... Nízia até chorou de susto, pensando que prima Rufina estava maluca, que maluca nada! era mas era a desgraça, saindo de mistura com bebida.

Prima Rufina ficou doente uns dias. Depois sarou e aprendeu. Quando tinha vontade, ia nas vendas procurando homem disposto. Porém não sei como fazia, sei que nunca mais teve antraz. E foi desde aquela noite que ela pegou chamando Nízia de “mia fia”.

Nízia, vinte, vinte-e-um, vinte-e-dois anos, continuava esquecida naquela chacrinha sem norte. Não tinha nada de feia, principiou se enfeitando, foi na cidade algumas vezes... Ficava no portão parada, sempre de hora em hora alguém havia de passar... Passava porém mal reparava em Nízia.

Pois até, uma feita, ela foi numa loja concorrida da cidade, se encostou no balcão esperando. Os caixeiros passavam, serviam todo mundo, pois não é que esqueceram de servir Nízia! esqueceram, meu caro! não estou fantasiando não! Então ela chamou um e pediu entremeio.

— Sim, senhora, já trago.

Outro pediu que ele endireitasse a pilha de chita quase caindo, começou a endireitar, endireitou, não sei quem pediu entremeio pra ele, serviu a outra freguesa e esqueceu Nízia. Ela ficou ali muito serena, esperando. Quando viu que entremeio não vinha mesmo, desolada foi-se embora. E prima Rufina continuou comprando tudo quanto Nízia precisava.

Desejos, não posso dizer que não tivesse desejos, teve. Olhava os homens passando, alguns eram bem simpáticos, havia de ser bom com eles... Mas iam tão distraídos na rua republicana já!... Nízia voltava murcha pra dentro, sempre matutando que havia de ser bom com eles. Porém isso era fogo-de-palha, sapatinho de lã toma atenção senão a gente erra o número dos pontos. Que-dê tempo pra imaginar nos homens?...

O que cresceu foi a intimidade com prima Rufina, principiaram conversando mais. Nízia inventava curiosidades depois do jantar, ali sentadas na varanda: a filha de nhô Guimarães enfim tinha casado com o moço médico; o caso da mulher que matou o marido na rua Major Quedinho, e assim. Então quando teve aquela dor-de-dente, por causa duns limões verdes que andou chupando e comeram o esmalte dum canino, prima Rufina fez ela beber um trago importante de cachaça. Nízia quase morreu de angústia, ficou tonta, lançou que foi um horror. Prima Rufina sempre junto dela, consolando, limpando a blusa suja, deitando a bêbeda com tanto carinho... A dor-de-dente passou, isso é que eu sei. E a intimidade entre as duas aumentou muito. Nunca mais Nízia bebeu, mas a outra contava as razões da pinga, e Nízia acabou sabendo as tristezas do nosso mundo.

Teve um momento em que a humanidade pareceu se lembrar dessa apartada, foi com seu Lemos o caso. Seu Lemos era Fluminense não sei donde, meio pálido, com bigodinho torcido e cabelo crespo repartido do lado. Vinha pela estrada, sem custo carregando o corpo baixote, saber duas, três vezes por semana o protetor como passou, lá num sítio enorme que ficava mais ou menos onde é o bairro do Anastácio agora. Assim também o graúdo, que já dera pistolão pra ele entrar como carteiro do Correio nem bem chegadinho do Estado do Rio, não se esquecia de arranjar coisa melhor. Homem... será mesmo que seu Lemos queria coisa melhor?... Indivíduo macio, fala rara, não olhando. Sentava, ficava ali uma boa meia-hora, respondendo se perguntavam, que ele ia bem, que mamãe também ia passando bem, que o serviço ia mui to bem... tudo ia bem pra seu Lemos! Depois pegava no chapéu, ia-se embora pra casinha, alugada debaixo do viaduto do Chá.

— Sua bênção, mamãe.

— Como vai seu Anastácio?

— Bem.

Comiam. Estou pensando que foi esse Anastácio que decerto deu nome ao bairro, não?... Depois seu Lemos ia palitar o dente na janela baixa. A noite vinha descendo, tapando o Anhangabaú com uma escureza solitária. Os quintais molhados do vale, botavam uma paininha de névoa sobre o corpo e ficavam bem quietinhos pra esquentar. Era um silêncio!... Poc, pocpoc... Alguém passando no viaduto. Sapo, que era uma quantidade. Luzinha aqui, luzinha ali, mais sapo querendo assustar o silêncio, qual o que! silêncio matava São Paulo cedinho, não eram nem nove horas. Seu Lemos não tinha mais no que imaginar. Ia direito botar o restico de palito mastigado no lixo, fazia o Nome-do-Padre e caía na cama já dormindo.

A mãe inda ficava rezando, uns pares de horas, pra cada santo esquisito que ela escarafunchava lá de quanta alcova tem o Paraíso. Santo Anastácio mártir; novena de S. Nicolau; oração pra evitar mordedura de cobra; oração pra evitar esbarro-de-estômago; oito Cre’m-dos-padres pra não pegar fogo na cidade. Acabava rezando a missa das almas do outro mundo, de que ela tinha um bruto dum pavor. Vela também se acabava. Era um despesão de vela naquela casa, porém São Paulo nunca pegou fogo, ninguém não teve esbarro-de-estômago na família, e seu Lemos nunca foi mordido de cobra quando ia na rua do Carmo, rua de Santa Teresa, por ali, entregando carta.

Filho bom ele não era não... Respeitar a mãe, respeitava nisso da gente tomar a bênção, não fumar na frente dela, falar bom-dia, boa-noite, levar ela ver Senhor Morto na noite de Sexta-feira Santa. Mas a pobre que cozinhava, inda lavava e engomava toda a roupa do filho, etc. Nem conversa. Aliás seu Lemos não conversava mesmo com ninguém. E quando a mãe morreu de repente, o que sentiu foi o vazio inquieto de quem nunca lidara com pensão nem lavadeira.

E foi então que, palitando dente na janela, ele afinal principiou reparando naquela moça do portão. No dia seguinte, francamente, foi até lá só pra ver se tinha mesmo moça no portão daquela chacra. Nízia estava lá meia lânguida, mui mansa, não pedindo nada, só por costume duma esquecida que não esperava mais ninguém.

Quando palitou de novo a barulhada dos sapos nesta noite, seu Lemos começou a pensar que ali estava uma moça boa pra casar com ele. Não refletiu, não comparou, não julgou, não resolveu nem nada, seu Lemos pensava por decretos espaçados. Pois um decreto apareceu em letras vagarentas no bestunto dele: “Ali está uma moça boa pra casar com você.” Na palitação do dia seguinte, estava escrito na cabeça dele: “Você vai casar com a moça do portão.” Então seu Lemos foi visitar o Anastácio e, passando, cumprimentou a moça do portão. Nízia estava já tão esquecida de si mesma que nem se assustou com o cumprimento, respondeu. Seu Lemos, que não via razão pra visita todo dia na chácara do padrinho, passava, cumprimentava, andava mais meio quilômetro pra disfarçar, ficava por ali dando com o pé na tiririca poeirenta, olhava qualquer pé de agarra-compadre do caminho, voltava, e cumprimentava de novo, rumo do Anhangabaú.

Depois de mês e meio de tanto bate-perna, seu Lemos, palitando, soletrou o decreto novo aparecido de repente na cachola: “Amanhã é domingo pé-de-cachimbo, e você vai pedir a mão da moça da chácara.” Note bem a graça desses decretos: de primeiro só falavam em moça do portão, mas agora vinham falando em moça da chacra, mais útil pra casar.

Ali pelo meio-dia, prima Rufina muito espavorida veio ver quem que estava batendo, era seu Lemos. Prima Rufina quase que dá o suíte no indivíduo, mas enfim dona Nízia havia de saber o que era aquilo. Decerto encomenda...

— Mecê entre!

Seu Lemos não esperou nem dois minutos no copiar, veio Nízia, assim como estava, com o trabalhinho no colo. Ele falou que vinha pedir a mão dela em casamento, ela respondeu que estava bom. Foi lá dentro dizer que prima Rufina preparasse também uns bolinhos pro café e voltou. Entraram na varanda. Nízia continuando o sapatinho principiado.

— Como é a sua graça?

Olhou pra ele espantada, perguntar como era a graça dela... decerto que ela é que não sabia! Seu Lemos esclareceu:

— Me chamo Lemos, José Lemos, seu criado. Queria também saber o nome da senhora.

— Nízia Figueira, sua criada.

— Sim senhora.

Seu Lemos parou de brincar com os dedos em cima das pernas.

— A senhora gosta muito de fazer sapatinho, dona Nízia?

— Já estou muito acostumada.

— Muito bonito esse que a senhora está fazendo, é presente?

— Não senhor, eu vendo.

— Ahn...

— Quantos eu faço, prima Rufina vende nas casas.

— Sei... Quem é prima Rufina?  

Seu Lemos recomeçou brincando com os dedos em cima das pernas.

— A preta que recolheu o senhor.

— Ahn... mas ela não é prima da senhora, não?

— É minha criada. Me acostumei chamando ela de prima Rufina desde criança. E ficou.

— Engraçado.

Trinta-e-seis, trinta-e-nove, quarenta-e-oito, pronto, acabava mais uma carreira.

— Está um dia bonito hoje, não?

— Está mesmo.

— Que sol mais claro, não?

— Quem sabe se está incomodando o senhor? eu fecho a janela...

— Não senhora, até nem me incomoda.

Veio o café-com-leite e bolinhos. Tomaram café-com-leite e comeram dois bolinhos cada um. Fazia uma tarde sublime lá fora, claro, claro, com o sol quente jiboiando sobre os campos. E por esse instinto de domingo que a natureza parece ter, aquela baixada estava num sossego imenso, tomava um ar de repouso largado, voluptuosamente largado, esparramado no chão. Eles ficaram ali fechados naquela sala-de-jantar, seu Lemos palitava, Nízia tricotava, até que enxergaram os primeiros ruivores passarem longe no horizonte, entardecendo o dia.

— Bom, já vou indo.

Então Nízia percebeu a ventura inconcebível que lhe trazia aquele seu Lemos. Olhou. Viu na frente o bigode e o topete simpático, sorriu pra eles. O vestido de cassa recortava as redondezas do corpo dela, feito como era costume naquele tempo, quase gordo, mais gordo que magro, peitos enchumaçados, pernas grossas, curtas, mãos parando no meio. Na cara, os olhos castanhos embaçavam o rubor liso que vinha empalidecendo até um queixo feito barrete frígio. Nariz simples, com as narinas quase grandes, ondulando nas mesmas curvas dos bandós castanhos. A boca sorrindo era pálida, com dentes cerrados e monótonos. Falou um “Já vai” meio pergunta, meio aceitação, duma calma dominical.

— Já vou sim, dona Nízia, são horas. Tive muito prazer em conhecê-la. Inquietação antiga desmanchou a cara dela:

— E o senhor volta!

— Volto. Não volto sempre porque creio que vou mudar de emprego, trabalho no Correio, é. Meu padrinho parece que vai arranjar qualquer coisa pra mim na Secretaria do Tesouro, mas volto. Passe bem.

Ele entregou-lhe a mão e a vida:

— Passe bem.

Acompanhou-o até o portão. Ficou ali, enquanto ele partiu pelo caminho ruim. Tomando a estrada larga, seu Lemos nem se voltou pra dizer outro adeus. Nízia entrou. Andava meia sem serviço pela casa.

— Essas toalhinhas-de-crochê estão carecendo lavar, prima Rufina.

— Antão num lavei elas na semana retrasada mêmo!

— Mas olhe como estão!

— Num inxergo nada não, porém mecê qué eu lavo! Tou vendo mas é que seu Leme veio atrapaiá tuda a vida nesta casa! Mecê inté parece que nem num sabe adonde assentá! cadera num farta! Sente, fique sussegada que é mió!

— Você não gostou de eu ficar noiva, é?

— Até que gostei bem. Mecê carece dum home nesta casa que lhe proteja mas porém ansim! premero que aparece, vai ficando noiva! nem num sabe si seu Lemes quem é, arre credo! Será que anda de bem cum os puliça! isso é que num posso assigurá pra mecê!

— Como você está braba comigo, prima Rufina! ele é empregado no Correio!

— Isso antão é imprego que se tenha! Gente boa num carece di andá iscrevendo carta não! véve que nem nois mêmo, bem assussegado no seu canto! Mia fia, vassuncê num cunhece nada desse mundo, mundo é mais ruim que bão... Essa história di sê impregado no Correio, num mi parece que seja coisa dereita não, infim...

Foram deitar. A felicidade de Nízia fizera dela uma desgraçada. Do passado e esquecimento de dantes não se lembrava, mas o agora é que fazia ela sofrer. Noivo, seu Lemos achou que não carecia mais de passar todo santo dia pela casa tão longe da noiva, a tarde veio e seu Lemos não veio. Nízia vivia num deslumbramento simultâneo de felicidade e amargura. Que amasse não digo, mas tinha alguém que se lembrava da existência dela. Isso lhe dava um gosto inquieto, gosto de comparação, gosto de mais de um, não sei se explico bem. De repente ficara desgraçada. “Vem amanhã”, murmurejou sofrendo de prazer. E repetiu “Vem amanhã” até na quinta-feira.

Seu Lemos chegou não eram bem seis horas, jantado. Entregou pra ela o brochinho de ouro, escrito LEMBRANÇA.

— Muito obrigado, seu Lemos.

— A senhora tem passado bem? Etc.

Ficou lá até oito, creio. Nízia trabalhando, sob o lampião de querosene, ele assuntando as assombrações do teto. Falavam de vez em quando aquelas frases de companheiro que não esperam resposta, só pra reconhecimento de existência junta, um pouco de Correio, um pouco de trabalhinho de lã. Prima Rufina pitando na cozinha. Seu Lemos afirmou que voltava no domingo e então haviam de combinar o casório.

Não veio no domingo, veio na terça-feira. Que andara muito atrapalhado por causa duma visita que fora obrigado a fazer. Depois tivera de levar uma carta do tal pra um graúdo, estava quase arranjado o lugar na Secretaria. Trazia aquela meia-dúzia de lencinhos, desculpasse. Nízia foi lá dentro e voltou, feliz duma vez, com o cachenê feito por ela na mão. Seu Lemos agradeceu e achou que estava muito bonito. Estava. Era pardo, todo com listas pretas, barra de lã-com-seda.

Seu Lemos levou uma semana sem aparecer. Só na outra terça-feira estourou na chacrinha, muito afobado, apenas tivera tempo pra arranjar aquelas cravinas, de tão atrapalhado que andava, desculpasse. Saíra a nomeação, e no dia seguinte tomava posse.

— Custou mas enfim!...

— Quem espera sempre alcança.

— É mesmo mas custou. Já ia desanimado.

Seu Lemos estava mais tagarela. Nesse dia sapatinho de lã não entrou na conversa, era só serviço ruim do Correio, serviço bom da Secretaria, ordenado bem melhor, seu Chefe de seção, “me disseram” e outras coisas nessa toada.

Nízia escutando. As palavras caíam dentro dela talqualmente flor de paina, roseando a alma devagar. Foi-se embora mais cedo? Não fazia mal! Nem soube que eram nove horas, que eram dez e muito mais, ficou sozinha no trabalho, sem saber que trabalhava, acabando carreira numa conta, acabando sapatinho, acabando outro sapatinho, escutando. Não tinha nem bulha na noite fora. Os homens estavam dormindo em São Paulo. Nem poeira nem grilo nem vento, que nada! um silêncio de matar gesto do braço. Nízia tricotando sem saber. A luz do lampião mariposava em volta da cabeça dela e, no calor seco da sala, as palavras de seu Lemos se pronunciavam ainda, sonorosas de verdade, como afago doce de companheiro. Nízia sofreu que você não imagina. Sofreu aquele sapatinho de lã; sofreu por causa de prima Rufina que estava envelhecendo muito depressa; sofreu aqueles vestidos de cassa eternamente os mesmos, carecia fazer outros; as toalhinhas de crochê não ficaram bem lavadas; ela era um poucadinho bem mais gorda que seu Lemos; também prima Rufina nunca trouxera uns pés de cravina pra plantar no jardim! flor tão bonita...

Todas essas infelicidades que nunca sentira, e que doem tanto pra quem não pode ter outras: era a voz de seu Lemos que trazia, pondo como espelho diante dela o corpo do companheiro. Foi pro quarto e pela primeira vez depois do antraz da preta, não dormiu logo. Pensar não pensou, era também do gênero dos decretos. Como decreto não vinha, ficou espalhada na escuridão, sentindo apenas que vivia, feliz, encostada na vida do companheiro.

Seu Lemos levou duas semanas sem aparecer.

— Puis é! si mecê já tivesse priguntado pra ele adonde que ele mora, eu ia inté lá sabê si é duença...

Numa quarta-feira seu Lemos apareceu. Vinha com barba por fazer e de mãos vazias, puxa! que serviceira! estava arrependido. Depois, tanta responsabilidade!... Entregar carta, a gente entrega e pronto, agora? escreve número aqui, escreve número noutra parte, e não se pode errar porque livro de Secretaria não é coisa que a gente ande rabiscando nem raspando. Depois: ainda não estava bem enfronhado do serviço que barafunda! nunca imaginei que fosse tão difícil!...

O engraçado é que ali mesmo, diante de Nízia, sem se lembrar dela, seu Lemos estava lendo os decretos da cabeça. E não pense que lia todos em voz alta que nem estou fazendo, não! Parava de falar às vezes, e lia só consigo. E que diferença agora a cabeça de seu Lemos! Antigamente era um vazio grande sem nada, só de três em cinco palitações um decretinho curto. Agora? era ver página do Correio Paulistano "que barafunda!”, como ele dizia... Foi-se embora remoendo decreto sem parada.

Nízia ficou na porta, metade do corpo na noite, metade dentro de casa, partida pelo meio. Bem sentiu que seu Lemos, coitado!

não era por querer, porém, estava escapando dela. Voltou pra dentro, e custava se lembrar do que seu Lemos falara. Quis sossegar-se, coitado! tanta ocupação... Sossegou-se, mas num sossego sozinho, de morte e de desagregação. Quando ficou bem só, não sofreu mais, dormiu.

Seu Lemos só apareceu vinte dias depois, vinha magro, passando. Viu Nízia no portão, parou pra saudar. Tinha que ir ver o protetor, por causa duma embrulhada que sucedera lá na repartição. Ela meia que ficou até espantada com a figura do estrangeiro. Teve uma dor horrível.

— Na volta o senhor entra sempre, seu Lemos?

— Pra falar verdade, dona Nízia, não sei se posso parar, se puder, paro. Mas não se incomode por minha causa não. Passe bem.

— Passe bem.

Seu Lemos tinha revivido nela uma infelicidade pesada. Mas não desejou que seu Lemos não voltasse, como seria melhor pra ela e foi. Seu Lemos não voltou. Padrinho deu o estrilo com ele por causa da tal encrenca, seu Lemos zangou com o padrinho, seu Lemos saiu da Secretaria, seu Lemos banzou sem decretos uma porção de dias, seu Lemos arranjou emprego numa loja de fazendas... O coitado não queria riqueza, queria era sossego... Arranjou uma mulata gorda pra cozinhar, dormiu uma noite no quarto da Sebastiana e depois todas as noites a Sebastiana no quarto dele, que era mais espaçoso. Sebastiana cozinhava, porém não era cozinheira mais: dona-de-casa, sempre querendo chinela nova no pé cor-de-sapota.

Nízia... Teve um homem que veio morar bem perto da chacrinha dela. Não durou muito uma família vizinhou com o tal. E aos poucos foi se fazendo a rua Guaicurus, foi se fazendo mais um bairro desta cidade ilustre. Uns se davam com os outros; uns não se davam com os outros; ninguém não se dava com Nízia; prima Rufina se dava com todos. Nízia serenamente continuava esquecida do mundo.

Deu mas foi pra beber. Banzando pela casa, quis matar uma barata e encontrou debaixo da cama de prima Rufina a garrafa que servia pra de-noite. Roubou um pouco por curiosidade. Muito pouquinho, com vergonha da outra. A primeira sensação é ruim, porém o calor que vem depois é bom.

Não levou nem mês, prima Rufina percebeu. Não falou nada, só que trouxe um garrafão de pinga, e principiaram bebendo juntas, cada mona!... Não digo que fosse todo dia, pelo contrário. Nízia trabalhava, prima Rufina vendia, sempre as mesmas. Trintonas, quarentonas, isto é, prima Rufina, sempre muito mais velha que a outra. Dera pra envelhecer rápido, essa sim, uma coitada que não o mundo porém a vida esquecera, quase senil, arrastando corpo sofrido, cada nó destamanho no tornozelo, por causa do artritismo. Quando a dor era demais, lá vinha o garrafão pesado:

— Mecê tambem qué, mia fia?

— Me dá um bocadinho pra esquentar.

— Puis é, mia fia, beba mêmo! Mundo tá ruim, cachaça dexa mundo bunito pra nóis.

Era dia de bebedeira. Prima Rufina dava pra falar e chorar alto. Nízia bebia devagar, serenamente. Não perdia a calma, nem os traços se descompunham. A boca ficava mais aberta um pouco, e vinha uma filigrana vermelha debruar a fímbria das narinas e dos olhos embaçados. Punha a mão na cabeça e o bandó do lado esquerdo se arrepiava. Ficava na cadeira, meia recurvada, com as mãos nos joelhos, balanceando o corpo instável, olhar fixo numa visão fora do mundo. Prima Rufina, se encostando em quanta parede achava, dando embigada nos móveis, puxava Nízia. Nízia se erguia, agarrava o garrafão em meio, e as duas, se encostando uma na outra, iam pro quarto.

Prima Rufina quase que deixou cair a companheira. Rolou na cama, boba duma vez, chorando, perna pendente, um dos pés, arrastando no assoalho. Nízia sentava no chão e recostava a cabeça na perna de prima Rufina. Bebia. Dava de beber pra outra. Prima Rufina punha a mão sem tato na cabeça de Nízia e consolava a serena:

— E isso mêmo, mia fia... num chore mais não! A gente toma pifão, pifão dá gosto e bota disgraça pra fora... Mecê pensa que pifão num é bom... é bão sim! pifão... pifãozinho... pra esquentá desgraça desse mundo duro... O fio de mecê, num sei que-dele ele não. Fio de mecê deve de andá pur aí, rapaiz, dicerto home feito... Dicerto mecê já isbarrô cum ele, mecê num cunheceu seu fio, seu fio num cunheceu mecê... Num chore mais ansim não!... Pifão faiz mecê esquecê seu fio, pifão... pifão... pifãozinho...

Nízia piscava olhos secos, embaçados, entredormindo. Escorregava. Ia babar num beijo mole sobre o pezão de prima Rufina. Esta queria passar a mão na outra pra consolar, vinha até a borda da cama e caía sobre Nízia, as duas se misturando num corpo só. Garrafão, largado, rolava um pouco, parava no meio do quarto. Prima Rufina inda se mexia, incomodando Nízia. Acabava se aconchegando entre as pernas desta e fazendo daquela barriga estufada um cabeceiro cômodo. Falava “pifão” não sei quantas vezes e dormia. Dormia com o corpo todo, engruvinhado de tanta vida que passara nele, gasta, olhos entreabertos, chorando.

Nízia ficava piscando, piscando devagar, mansamente. Que calma no quarto sem voz, na casa... Que calma na terra inexistente pra ela... Piscava mais. Os cabelos meio soltos se confundiam com o assoalho na escureza da noitinha. Mas inda restava bastante luz na terra, pra riscar sobre o chão aquele rosto claro. Muito sereno, um reflexo leve de baba no queixo, rubor mais acentuado na face conservada, sem uma ruga, bonita. Os beiços entreabriam pro suspiro de sono sair. Adormecida calma, sem nenhum sonho e sem gestos.

Nízia era muito feliz.

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