11/03/2017

Núpcias marinhas (Conto), de Virgílio Várzea


Núpcias marinhas
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I 
O pequeno arraial da Ponta Grossa, nessa clara manhã de janeiro, despertara alegre e ruidoso, como nos dias de grande pesca, pelo tempo das tainhas, ao cair das primeiras geadas. Na praia recurva, de areia alvíssima, estendendo-se na distância de um quilômetro, desde o tabuleiro dourado do longo pontal ao sul, até a crista de rochas negras e altas ao norte, onde o mar sacode, noite e dia, em vagalhões espumosos, largas barras de prateada escumilha — remadores das redes, em camisa e calcas arregaçadas, grandes chapéus de palha à cabeça, fumavam e palravam rusticamente, de pé, em volta de duas imensas canoas de voga, alcatroadas de novo, que, postadas sobre grossos rolos de madeira, de proa para o mar, e palamentadas, os beques finos erguidos, esperavam, prontas a investir contra as ondas.

Era o casamento da filha mais nova do Rufino Bastos, a Rosinha, com o João Aguiar, um belo rapaz — vigoroso, Patrão de uma das redes do pai: esse ato ia efetuar-se na igrejinha de Santo Antônio, uma freguesia pitoresca e agreste, que ficava do outro lado, à margem esquerda do Ratones, cortando ali as terras com o seu largo estuário. Devido a esse embaraço do rio e à pobreza do arraial, que nem ao menos possuía uma capelinha — antiga e única aspiração daquela boa gente adorável! —os consórcios e batizados faziam-se sempre por mar, em magníficas monções, sob um tempo límpido e calmo, o que não evitava, entretanto, um ou outro desastre, de longe em longe, quando sobrevinha inopinadamente algum temporal.

O risonho préstito compunha-se de duas ou três numerosas famílias do lugar — a gente do noivo e da noiva, e mais amigos, conhecidos e compadres caminhando alegremente, posto que um pouco contrafeitos naquelas roupas das festas, mas em agradável e animada palestra. À frente de todos vinha a Rosinha, pelo braço do pai, formosa e tentadora, a boca rubra, os pestanudos olhos baixos, as faces vivamente, coradas, e a fronte virginal inclinada sob o véu fino de tule. Seguiam-se as pessoas que iam testemunhar o noivado — pela Rosinha, o tio João Luiz e a tia Ana Mafra, um casal já idoso, com a cabeça alvejada do decorrer dos anos; pelo João Aguiar, o Jacinto Cunha e a esposa, robustíssimo par de lavradores, ainda moços, louros, com um rosto cor de lacre; e as irmãs dos nubentes, as primas e camaradas —um bando de moças, dentre quinze e vinte anos, graciosas, alegres, inefáveis. Mais atrás, num grupo de rapazes, na sua maior parte companheiros de rede e seus íntimos, vinha o noivo, marchando feliz, com os ombros enormes muito apertados num fraque novo de pano, a gravata alva confundindo-se com a camisa tesa de goma, a alta cabeça erguida, os lábios risonhos, os olhos reluzindo, negros, na pele queimada.

Quando chegaram à praia, os tripulantes, que olhavam atentamente o desfilar do cortejo desde o alto da estrada, entraram a botar as canoas para baixo. Então, de popa para terra, palpitando já sobre as águas balouçantes, as embarcações começaram a tomar os convidados. E logo após, sob a força possante dos remos, se afastaram ao largo.

II 
Do alto do morro, no parapeito branco do vasto terreiro murado, onde alvejava, caiado de fresco, o frontal largo e acaçapado da casa do Bastos, com as suas cinco janelas abertas aos ventos do mar, deixando entrar amplamente o sol e todos os aromas e rumores da Natureza em volta — pessoas da família, que tinham ficado arrumando tudo para as bodas, olhavam, debruçadas, e num grande enternecimento, o afastar lento e saudoso do cortejo marinho sobre a planura verde e mansa das águas. Dentre elas — na maior parte mulheres e crianças, porque os homens tinham ido todos no préstito — se destacava, venerativamente numa atitude dolente e nostálgica de Mater Dolorosa, a Maria Bastos, a extremosa mãe da Rosinha, que, muito comovida, o rosto rosado e moço apesar dos anos, espiritualizado numa vaga saudade, acompanhava, alheada de tudo, o espumante singrar das canoas. Não sabia bem por que, mas sentia agora como um aperto, um peso enorme oprimir-lhe o coração, ela tão alegre até ali com o casamento da filha. Era inexplicável! Tinha um vago pressentimento de que iam sobrevir grandes tristezas, lutos, uma imensa desgraça... E aquilo a invadira inopinadamente, à maneira dessas trovoadas súbitas; que toldam de repente o puro azul dos céus de verão. Por mais que fizesse, não podia sufocar semelhantes ideias que a deprimiam, a esmagavam angustiosamente. Ninguém mais do que ela desejava aquela união, pois fora a bem dizer pelos seus esforços que conseguira o “sim” do marido para o João, quando este lhe escrevera pedindo a mão da Rosinha. Porque o Rufino, a princípio, ignorando o namoro de ambos, e depois contrariando-o sempre que podia, declarara-lhe logo “que não”. Reconhecia que o rapaz era bom, honesto, vivo, trabalhador, mas não tinha meios e estava ainda muito novo. “Não! que esperasse melhor ocasião”. E calara-se, franzindo os sobrolhos, numa austeridade de velho marítimo, duro e carrancudo como um leão. Ela, porém, a esposa, que sabia do profundíssimo amor que se votavam as duas criaturas, desde os mais tenros anos, e que bem via que aquilo podia talvez trazer a infelicidade para o seu lar, sempre tão cheio de serenidade e doçura, entrou a pedir constantemente, carinhosa e suplicante, o consentimento do esposo, que afinal acedeu, marcando tudo para aquele ano. E fora uma grande alegria para todos!... No entanto, agora, sem saber como, invadia-a estranho pressentimento... Que estaria para suceder, santo Deus?...

As embarcações, vogando paralelamente, separadas por pequena distância, voltavam agora o pontal, caindo no amplo estuário, onde a corrente impetuosa do rio, lutando com o mar invadido, erguia grossos frisos ondulantes de espuma. Os seus cascos, esguios e negros, desenrolando pela popa fora duas imensas faixas de escócia alvadia, iam-se ocultando, pouco e pouco, na sombra de duas ilhas altas e frondentes, emergindo em linha do espelho azul do oceano, como duas esmeraldas gigantes.

As mulheres e crianças, não podendo distinguir mais as canoas naquela posição, já muito diminuídas ao longe, tinham deixado o parapeito e volviam nesse instante à lida da casa, que se enfeitava toda para a volta dos noivos. A Maria Bastos, porém, não despegara, um momento só, do pequeno paredão; e, triste e lacrimosa, isolada e só, perdida nas delicadezas do sublime e inefável afeto de mãe, com o filhinho mais novo ao colo, um bebê lindo e risonho que se lhe debruçava sobre o ombro — olhava ainda aquele “noivado da sua alma”, que lá ia boiando, boiando...

III 
No entanto, no cortejo além, sobre o mar, todos iam alegres. Parolava-se vivamente da abundância das culturas e da riqueza da pesca. O ano que findara havia sido, como poucos, da mais ampla fartura. Provera a Deus que o mesmo acontecesse com aquele, cujos primeiros dias iam decorrendo venturosos, com prenúncios de felicidade!

Na canoa grande — a melhor e a mais segura das que faziam o serviço das redes na Ponta Grossa, onde se acomodara o Rufino, com os padrinhos, os noivos e mais pessoas da família, o João Aguiar, que por ingenuidade e acanhamento fora sentar-se quase junto aos bancos de proa, não cessava de contemplar a Rosinha, com os seus belos olhos castanhos, deliciado e feliz, num embevecimento. Ela, por sua vez, olhava-o também, venturosa e cheia de ternura, mas timidamente, furtivamente, a face muito rosada sob o tecido tênue do véu, descendo-lhe pelas costas em longos pregas de bruma. Essas duas almas cristalinas, simples, adorativas e cândidas, que se alvoroçaram uma só vez ao jorrar da primeira paixão, e que viviam sempre, desde a infância, uma pela outra batendo, docemente, ininterruptamente — cruzavam-se em silêncio, nos meigos olhares de ambos, dando-lhes um mútuo e perenal encanto, traspassando-os de um gozo leve e suave, à maneira de um doce fluido magnético, que vibrasse, com igual propulsão, entre os seus peitos amantes. Agora, que iam para sempre unir-se, num mesmo contato e numa mesma palpitação, parecia que se diziam mudamente, numa emoção deliciosa: — “Enfim!... Enfim!...” Por sobre eles rumorejava prazerosamente a voz rouca e grossa dos velhos, em alegre expansibilidade, e estalava sonoramente, em esfuziadas límpidas, o coral de risadas tilintantes das raparigas em festa.

Na outra embarcação, havia também um contentamento ruidoso, sacudindo as almas de bendito esplendor, como os pequenos vagalhões do estuário sacudiam as canoas. E até os remadores — uns oito homens robustos, quase todos rapazes, de tronco atlético e pescoço de touro, o rosto tinto pelo sol do mar — riam-se esplendidamente, com os seus dentes muito alvos, o coração saturado da alegria das coisas, o corpo metricamente balançado no movimento vivo e contínuo dos remos.

IV 
O sol já ia alto quando as canoas chegaram à praia, uma longa faixa de areia finíssima, fulgurando numa poeira dourada. As casas de Santo Antônio, beirando em linha ao longo da costa, à pequena distância, estavam fechadas e como adormecidas sob a luz escaldante. No porto, àquela hora batido por uma fraca brisa do norte soprando levemente, não se via vivalma. Tudo permanecia em paz, apesar da gloriosa radiação do céu, sob o silêncio adormecido e vasto dos meios dias nos sítios. As vendas, onde se bebe e algazarra tranquilamente, estavam vazias; e só ao longe, num recanto onde o sol faiscava deslumbradoramente, em escamas de ouro vívido sobre a planície líquida, um grupo de homens se destacava, movendo-se lentamente, na faina da pescaria.

O desembarque efetuou-se magnificamente, e o noivado foi subindo a pequena rua que vai dar num grande largo gramoso onde se acha ereta a igrejinha da freguesia, recolhida e humilde, despida de torres, com o seu frontãozinho amarelo, ao lado direito do qual se erguem toscos paus ao alto, encimados por um travessão, de onde pende um sinozinho.

Ao rumor do préstito atravessando por entre as casas, aqui e ali, cabeças curiosas assomavam às janelas. Um ou outro transeunte parava, pasmando os olhos ingênuos e doces naquele grupo festivo. E magotes de crianças, que costumam vagar pelos caminhos em correrias contínuas, surgiam pouco a pouco, incorporando-se ao cortejo, em zurzinada vivíssima.

Na igreja, o noivo, a noiva e os padrinhos tiveram de aguardar, durante muitas horas, com certa impaciência revelando-se nos semblantes a que a viagem dera um ar de fadiga, a chegada do vigário, um velhinho gordo e catarroso, de cabeça alvadia, que usava óculos, e que era agora, em todos os atos do culto, um retardatário remisso. Os outros, enquanto isso, erravam dispersos pela nave, parando junto às paredes muito caiadas, de queixo erguido, a contemplar, admirativamente e com grandes olhos deslumbrados, os vários Santos mal esculpidos, metidos nos seus nichos, a tábua dos altares, os ramos, os registros coloridos, as toalhas de renda, as flores murchas e os castiçais dourados...

Quando ocorreu a cerimônia era quase meia-tarde. O sol entrara a esmaiar para um amarelo frio, de ocre. Ao sul, sobre as montanhas do Cubatão, grossas nuvens de trovoada começavam a se adensar vagamente num fundo azul esfuminhado e sombrio; e pelo alto do céu, ainda muito transparente e nítido, flutuavam já grandes flocos de algodão, delgados e felposos como longas brochadas de tinta. Eram os conhecidos rabos de galo, que anunciam aos marítimos a iminência de pampeiros terríveis.

Todos, então, sobressaltados com a súbita mudança do tempo — tão comum naquele lugar durante o verão — dirigiram-se para a praia, numa marcha batida. Os intrépidos remadores, que desde muito observavam a aproximação da tormenta, os esperavam já, postados aos remos, prontos a largar ao primeiro sinal. E o embarque realizou-se, numa pressa agitada e confusa, em que as moças, sentiam como uma vaga inquietação, ouvindo os homens gritar pressagamente:

— O pampeiro! O pampeiro!

V 
Na Ponta Grossa algumas redes que cercavam, apressavam nesse instante os lanços, receando a fúria do mar, que era ali, sob os tufões, de um efeito extraordinário, porquanto a praia corria em leve curva enviesada, totalmente exposta aos ventos rijos do sul, e os vagalhões, batendo de través, adquiriam sempre proporções brutais. Daí os inúmeros naufrágios que se davam e que tão temida tornava essa ponta de rochas às embarcações do tráfego, cruzando frequentemente aquelas paragens.

Grupos de pescadores, junto aos ranchos de palha, observando o lento condensar da tormenta nos ares, comentavam auguralmente uma má volta para o noivado; e alguns espíritos mais apreensivos exclamavam, abanando a cabeça, como numa previsão de desastre:

— Ora queira Deus que aquela tardança das canoas não desse em alguma desgraça! Também não sabiam o que é que o casamento esperava, que nem sinal!

O temporal estava por um triz! Se eles não abrissem os olhos, tinham que passá-la boa!... Quem sabia o que aquilo ia dar? Logo nesse dia... Pobre do João Aguiar, coitado!...

Mas outros, menos receosos, afirmavam virilmente:

— Que não! Talvez não desse em nada... A trovoada era muito capaz de se desmanchar para longe como tantas vezes se dava também a gente que lá estavanão era “ova”! E depois com o Rufino Bastos... Qual! Eles não largavam do porto sem ver primeiro no que aquilo parava! Estavam bem seguros, deixassem lá!...

E olhavam o mar onde as canoas, nas evoluções do último lanço, giravam com rapidez. Achavam-se ali à espera para recolher as redes, porque naquele dia estava tudo acabado. Fora uma asneira andar a lancear com as águas assim paradas e calmas, pois não haviam conseguido matar nem um peixe!

Nesse momento, no alto da encosta, cercada das pessoas de casa, a Maria Bastos, debruçada de novo ao parapeito do terreiro, numa aflição e quase a chorar, examinava o tempo que escurecia cada vez mais. Tinha o coração, agora, pejado de imensos temores, batendo com pulsação desmesurada. Sentia mesmo, por vezes, como uma ânsia, uma vontade louca de gritar. O rosto, tão fresco horas antes, perdera o seu colorido habitual, mostrando-se profundamente abatido e cavado; e os olhos, com uma luz desvairada, voavam incessantemente, para além, sobre as águas...

VI 
Mal as canoas deixaram Santo Antônio, puxando para o largo a fim de montar o pontal, o cordão lívido do vento sul desenhou-se ao longe, nas vasas. Por sobre os píncaros austrais da Serra do Mar o céu tornara-se de um azul apertado e de aço. Nuvens negras e espessas, de bojo carregado, corriam para o norte num turbilhão colossal. Fuzis irrompiam além, dantescamente, em ziguezagues rútilos. O sol desaparecera de todo, sob os primeiros panejamentos da borrasca. Uma luz álgida e sinistra aproximava as perspectivas, dando às coisas em volta um aspecto fantástico. E sobre a vasta superfície do mar, ainda em calma, pesava a solenidade augusta de um silêncio formidável, como se de repente toda a Natureza fosse entrar para sempre na pacificação do Nada!

As embarcações singravam, entretanto, serenamente no meio da grande calina. Pareciam voar, arrancadas possantemente pelos pulsos infatigáveis dos seus tripulantes. A em que vinha o noivado, um pouco sobrecarregada, deixava-se distanciar pela outra, que ia adiante, já quase a dobrar o pontal: muito metida de popa não podia desenvolver maior velocidade; e por isso, os valentes remadores cada vez se esforçavam mais, impulsionando-a a gigantescas remadas. À ré, sobre o vasto paneiro solto, as moças, posto que nervosas e assustadas, mantinham-se contudo em silêncio, todas aconchegadas. Numa das extremidades, a Rosinha, que ficara sentada ao lado do noivo, junto ao grupo onde estavam os padrinhos e o pai, muito pálida e temerosa de algum desastre, levantava a cabeça, de vez em quando, acima da borda, para olhar o mar que cada vez enegrecia mais. O João Aguiar, então, com a sua imensa calma de pescador, criado a labutar dia e noite nas ondas, pegava-lhe carinhosamente das mãos, dizendo-lhe:

— Que aquilo não era nada, que não tivesse medo, pois estavam a chegar...

O pai, ao lado, falava-lhe também, animando-a. E o patrão, um homem baixo e entroncado, ainda moço, a fisionomia rija e grossa de lobo do mar, de pé, ao leme, não cessava de investigar o quadrante do sul, onde crescia a tempestade. De instante a instante, os seus lábios rudes descerravam-se e o seu vozeirão rouco passava:

— É aguentar, rapazes, que o pampeiro não tarda! É preciso montar o pontal quanto antes, senão temos trabalhos!...

Ao vibrar destas palavras, como sob o ferro de um aguilhão, os braços remavam com maior possança e a canoa levava uma impulsão a mais.

Mas, de repente, um siflar monstruoso como uma orquestra de demônios num sabat infernal, explodiu sobre as águas, sublevadas de súbito em vagalhões altos, que se entrechocavam espumando numa fúria inelutável. O oceano cerrara-se em torno. Os fuzis intenseavam medonhamente, abrindo na atmosfera hieróglifos de fogo. Trovões consecutivos rolavam no ar, aos estouros; e um pesado aguaceiro violentamente jorrou do céu bravo.

O patrão, ainda de pé à popa, mandava largar uma das velas menores para fugir às vagas colossais que se quebravam de encontro à canoa sacudindo-a numa dança macabra. As raparigas, tomadas de pânico sob o temporal desfeito, soltavam gritos contínuos, agarradas umas às outras: “Nossa Senhora!... Nossa Senhora!... Que horror!...” Os homens, com a coragem e o sangue-frio dos pescadores, procuravam acalmá-las com palavras animadoras. A embarcação, a borda inclinada, rolava vertiginosamente no torvelinho espumoso. De vez em quando, uma ou outra mareta maior galgava-a, coma sua coroa de rendas. E, hora a hora, o pampeiro aumentava desoladoramente...

Transida de susto, a Rosinha, as vestes amarrotadas e ensopadas da chuva, agarrava-se ao noivo chorando. Ele, forte e valoroso em meio ao vendaval, enlaçava-a meigamente, enchendo-a de consolações que serenavam, por vezes, como uma força salvadora. Era a primeira vez que a sentia toda entregue a si, vencida e humilde como uma corça; e por isso tinha os olhos úmidos de emoção, estreitando-a nos braços, em meio a tempestade.

A canoa não parava um instante, numa singradura louca, toda alagada dos novelos espumosos das ondas. Dois homens no esgotadouro, trabalhando com as duas cuias grandes, já não davam vazão à água que penetrava pelos bordos, pela popa e pela proa. Os paneiros, no fundo, começavam a nadar...

As moças, agora, invocavam com mais ardor os Santos, cujos nomes irrompiam tumultuosamente, às sílabas despedaçadas, de seus lábios brancos; engrolavam rezas confusas na agitação do pavor. Era uma cena angustiosa e tremenda. E o mar, doido e epiléptico, atirava-se subversivamente num estranho clamor!

Ao dobrar o pontal — o lugar mais perigoso da costa, sob as tempestades — o tufão, numa refrega indômita, partiu e arrebatou a vela nos ares. Então, uma horrível confusão espalhou-se por todos. A embarcação entrou a rolar, sem governo no seio da cólera espumante das vagas. Ninguém mais se entendia. E, agarrados uns aos outros na força instintiva do perigo, aflitos e assaltados pela alucinação, começaram a gritar num delírio:

— Socorro!... Socorro!...

Estavam já próximo à Ponta Grossa; mas em meio aos turbilhões da borrasca, ninguém os ouvia. E, de repente, uma volta de mar gigantesca, sinistramente envolveu a canoa que, adornada, revoluteou bruscamente, num reencontro terrível das ondas.

Uma hora depois a tormenta amainava. E os tripulantes, que eram grandes nadadores, apareceram sobre o casco negro da canoa boiando agora, desoladoramente, como um esquife medonho. As moças haviam perecido todas. Os noivos, esses, se afundaram abraçados, unidos indissoluvelmente para toda a Eternidade. Filhos de pescadores, quis o Destino que fosse seu leito de núpcias o oceano revolto.

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