11/26/2017

O escravo (Conto), de Lima Barreto


O escravo
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Desde que o negreiro o deixara pelas praias próximas do Rio, nunca mais os seus olhos se viram frente a frente com a natureza. Desembarcado no barracão, espécie de mercado de escravos de primeira mão onde fora adquirido, muito molecote ainda, pela família onde se criara. E, aos poucos, ao crescer, sobre sua viagem se aumentavam perguntas.

Forçava a memória. Voltava-se todo aos seus primeiros anos; e o esforço era vão. As reminiscências que lhe ficaram chegavam à consciência nevoentas, nubladas, confusas. Não sabia donde provinha.

Um dia, não sabia por quê, amanheceu entre uma porção de gente, negros como ele muitos, outros mais claros, que pareciam mandar. Andavam de sol a sol, quase sem descanso. Às vezes davam-lhe um punhado de farinha. A que horas? Quem lhe dava, não sabia bem.

E a memória só lhe trazia isso. Da viagem por mar, nada, nada. Parecia-lhe agora que viera acorrentado dentro de barricas, não sabia bem como fora.

Procurava reforçar as suas recordações, indagando dos mais velhos coisas de sua terra.

— De que nação é?

— Cabinda d’água doce. Lá também há bois, gatos; é quase como aqui.

— Lá há casas de pedra?

— Não; são de palha. No porto, sim, há.

— E padre há?

— Não, não... há sim, mas não como os daqui.

E não se contentava com as informações do pai Matias, procurava indagar da sinhá-moça, que achava notícias de matéria. Guiava-o numa interrogação.

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