11/02/2017

O mestre de redes (Conto), de Virgílio Várzea


O mestre de redes

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I 
Ah! é o inglês, o Tagus!

E a voz grossa e rouca rompeu do caminho, rente à praia, dentre piteiras verdes que lançavam ao céu gloriosamente, do meio da corbeille das folhas, as longas hastes finas, lembrando grandes paus de bandeira nalgum chão de cidadela remota, abandonada à beira d'água, invadida pela verdura espessa.

Então de um grupo palrador de pescadores e roceiros que ali se juntavam sempre pelas manhãs de calmaria, quando fora da faina das redes, alguns rapazes se ergueram gritando:

É o seu Santos. Aí vem ele. Está decidida a teima...

E um vulto baixo, reforçado, tisnado, os cabelos alvejantes, apareceu, avançando, trôpego, num movimento balançado de ombros, destacando vigorosamente no descampado da restinga, que se abria, ali, num pequeno planalto gramoso dominando a vasta baía, daquele lado do continente.

Desde muito, aqueles homens, ali reunidos ao amanhecer, esperando o sinal dos vigias, discutiam com ardor, em frases rudes agressivas, às vezes em conjunto, e tumultuariamente, sobre coisas do mar, manobras de navegação, navios que singravam — quando um steamer apontou além, na barra, todo negro sob a neblina argêntea. Alguns, apenas o fixaram, deram-lhe um nome. Mas outros, obstinados, na presunção de conhecer bem os vapores, discordaram, indicando outras designações, soltando nomes em profusão, no enleamento da controvérsia, nomes estrangeiros, confusos e estropeados:

— É o Finance, o Equateur, o Orénoque, o Polosi...

Outros opunham-se, protestavam:

— Que não! Qual! Aqueles transatlânticos eles conheciam bem. Não! Esse que ali vinha era da Mala Inglesa.

Até que afinal o João Bernardo, um pescador e proprietário de redes, considerado, que possuía o sangue calmo, e se conservara até ali calado, imóvel e taciturno como sempre, sentindo-se irritado com “aquelas baboseiras”, resolveu intervir:

— Que diabo estão vocês para aí a dizer? Ninguém os entende. Deixem vir o seu Santos, que lidou no mar, lá por fora. Ele é quem sabe. Para isso ninguém como ele...

Os outros, então, satisfeitos da ideia, num alvoroço, romperam:

— É verdade, o seu Santos é que vai decidir. Que homem! Conhecia os navios como as palmas das mãos, conhecia-os às léguas...

E estranhavam que o homem ainda não tivesse aparecido ali no alto da restinga, onde era sempre o primeiro.

— Talvez estivesse dando a última na rede do Porfírio, a que só faltavam os chumbeiros. Era um tresmalhão de encher. Não havia segunda. Aquilo, lá fora, ia matar muito peixe...

Mal tinham concluído, quando o velho, que de longe ouvira o berreiro e descortinara o vapor, assomou no alto, exclamando:

Ah! É o inglês, o Tagus!

Efetivamente era o Tagus que, agora, mostrava-se em todo o comprimento, monstruoso, bem em frente à restinga, as grossas chaminés fumegantes, aproado para o fundo da baía, mugindo poderosamente num tom vibrantíssimo de basso profundo, chamando as lanchas da visita...

Aquela hora da manhã, nessa véspera de domingo, o sol enchia todo o céu com o seu velário de ouro. Do pequeno planalto avistava-se, aqui e além, todo o longo recorte da costa, numa desenhação muito nítida. Para um lado, ao norte, destacando num relevo alteroso, a Boa Viagem, branquejando ao alto a sua ermida, os morros da praia das Flechas e os menhirs de Icaraí, evocando saudosamente certos recantos pinturescos da Armórica, povoados de rochas druídicas: e a praia imensa, até ao Canto do Rio, resplandecia nos panos cegantes das areias alvíssimas. Para o outro lado, ao sul, faiscando magnificentemente, como topázio e mica, os grandes lagos azuis e dormentes do Saco de São Francisco e Jurujuba, onde começa a rudez do longo costão basáltico de Santa Cruz, com o seu perpétuo estendal de escomilha: e estendendo-se em frente, a perder de vista, o mar, manso, majestoso e profundo, achatando-se numa vastidão infinita.

II 
O seu Santos é um velho marinheiro que rolou dezenas de anos no mar, ora em navios de vela, ora, mais modernamente, em paquetes, em viagens de longo curso, ou na pequena cabotagem. De uma descendência de pescadores e criado à beira-mar, onde nasceu, na curva branca e arenosa da pitoresca enseada de São Francisco, bem tenro ainda começou a lutar contra as ondas, cruzando ao longo das praias em pequenas canoas veleiras. Embarcou, porém, pela primeira vez, para o mar alto, aos doze anos, num antigo patacho — o Jovem Princesa. A viagem era para os Estados Unidos e, metido o carregamento, o navio arrancou, uma manhã, por um ardente e dourado janeiro. À barra, quando o casco aproou para o norte, com todo o pano ao vento, e o mar abriu-se, numa vastidão infinita e deserta, para além, para além, e ele viu, popa afora, à distância, ir pouco a pouco esmorecendo a cidade, as serras e a outra banda em frente, com a sua costa risonha, as curvas brancas das praias onde a sua infância cantara e resplandecera — desceu-lhe uma imensa melancolia, uma nostalgia da família, dos que deixara ali, e desatou a chorar sobre a borda, numa intensa saudade inexprimível, que lhe apunhalava o peito. Mas a faina rija de bordo estancou, dentro em pouco, esses sentimentos, e Santos voltou à sua têmpera resistente, de menino afeito a trabalhos, no meio do rumor das manobras, sob o ranger da cordoalha sonora, nas amuradas balouçantes que as vagas lambiam. Ao anoitecer, toda a longa costa saudosa perdera-se de vista, e o mar e o céu foram-se cobrindo ricamente de um azul ferrete, onde apontava, numa vasta e profusa rutilação, a cravação palpitante das estrelas...

Foi nessa primeira viagem que conheceu todos os furores do oceano bravio, quase perdendo a vida. Havia já três semanas que o navio velejava feliz, desde que deixara o Rio. Porém uma noite, num mar agitado e crivado de ilhas, chamado pelo capitão das Antilhas, um tufão de sudoeste caiu de repente, sob uma trovoada sinistra. A princípio o patacho aguentou-se valentemente nas águas, em meio dos vagalhões que o cobriam. Mas um mastaréu rebentou inesperadamente, numa rajada mais rija. Houve um clamor, imprecações e gritos, e logo após, num tumulto gigantesco, a submersão do navio. Toda a companhia, a bem dizer, perecera, salvando-se apenas ele e dois companheiros, no fim de uma batalha tremenda, a que teriam de sucumbir, se não fora a passagem, no outro dia, de um lúgar inglês, que ia para o Mississipi... Voltara depois ao Brasil, continuando de novo a sua vida de embarcadiço, na boêmia do mar, ora em navios de vela, ora a soldadas por mês, em vapores. Fora também, durante muitos anos, boteleiro, no tráfico do porto, e empregara-se longamente na pescaria, quer fora do barra, quer nas águas da baía. Agora, já velho, com oitenta anos, é mestre de redes, guia todos na grande arte, e vive dessas pequenas parcelas que ainda lhe dá o mar. A sua vida presente é madrugar, levantar-se ainda escuro, na disciplina de marítimo, agravada pela insônia de velho, tomar a sua boa caneca de café na cozinha, olhar a criação no terreiro e fazer algumas braças de rede, logo às primeiras horas do dia.

Sentado num mocho, no vão de uma janela, o cesto dos novelos de fio ao pé, as primeiras malhas presas de um prego no portal, voltado para a luz, com o seu velho cachimbo nos beiços, fumegando e cuspindo, Santos move continuamente a agulha de madeira com uma destreza de artista. E o belo tecido louro, cheirando a gravatá, alonga-se e avulta, de instante a instante, por uma multidão de laçadas que ele faz e arranca à malheira polida, ora vestindo-a, ora despindo-a de fios. Depois, deixando o trabalho, encaminha-se para o mar, para o ponto costumado, um alto de restinga, de onde trilhos de cabra feitos a pés, descem até a praia, em que canoas repousam, puxadas, umedecidas pela maresia. Daí, desse alto, que é seu domínio, o Observatório, fumando e palrando arrastadamente, nada lhe escapa — uma vela que passa, lanchinhas ofegantes, pássaros, a cor do mar, das nuvens, os longes neblinosos e vagos...

Em volta dele reúnem-se logo os pescadores e roceiros vadios, para lhe ouvirem as pitorescas histórias de viagens e os bons conselhos sobre a navegação e as pescarias. Porque o Mestre de Redes é infalível no prognóstico do tempo e faz previsões de dois a três dias.

Quando alguém quer fazer com segurança uma viagem, consulta-o como a um oráculo. O velho responde convictamente, peremptoriamente:

Pode ir à cidade, tem quatro horas; antes disso o tempo não cai.

É de admirável exatidão em coisas marítimas. Conhece bom número de paragens litorais do globo, e retém no espírito, em desenhos vivos e nítidos, paisagens e marinhas encantadoras de vários países, e de toda a costa do Brasil até o Maranhão. As águas e o litoral rendilhado da baía do Rio não têm para ele um só ponto desconhecido, desde as enseadas, os canais, até as ilhas e os rios. De longe, de um só golpe de vista, assinala os lugares, caracteriza-os, estabelece a distância. Nunca se engana.

Mas a nota mais viva, frisante, característica, do Mestre de Redes, é o pendor, a obstinação pela crítica, em matéria da grande arte náutica e em todas as coisas. Tem a observação pessimista para a universalidade do existente, um pessimismo de velho, de profissional antigo, julgando a sua época e a sua pessoa superiores à atualidade. É incoercível e inexorável na análise universal, sempre descontente, ralhando sempre, na sinceridade da sua nobre paixão cândida, na despreocupação da sua alma simples. E exerce a crítica longamente, constantemente, a propósito de tudo, de um modo infinito.

Ora é um escaler que passa, cantando nas toleteiras:

— Não vai lá nem em duas horas... Vão esfregando, vão esfregando... Olha o sebo nesse patilhão e nessa quilha!

Se um bote corre à vela: “Nem bolinar já sabem!”; ou um vapor singra para a barra: “Chega-te bem ao costão, e o resto saberás...”. E firmando a vista: — “Não conheço o casco, mas é francês, é dos novos.” E franze ironicamente os ombros, porque tem um desdém pelos steamers novos.

Todo o dia vive falando para si, resmungando, remoendo as próprias críticas...

Os navios velhos, os conhecidos, são para ele uma boa amizade, porque muito bem os conhece. E mirando amorosamente o Trent: — “É um pássaro, um espagão. Vejam aquelas linhas, aquelas saídas d'água. Aquilo, nem um peixe!” Porque, para ele, os navios possuem um caráter e vida espiritual.

O Mestre de Redes, o Santos, é de um aspecto agradável, sadio ainda apesar da idade, com a barba e os longos cabelos cobertos da neblina, da cerração da velhice. A sua larga fisionomia, de uma estrutura leonina, atrai pela rudeza veneranda das linhas, a pele dourada pelo sol dos tombadilhos, mas enrugada, pelancosa, de octogenário. Tem os olhos apagados, enevoados, dos marítimos velhos, porém cheios ainda de acuidade. E a longa boca rasgada, de lábios finos, dá ainda uma ideia da sua antiga e poderosa energia de lobo do mar. Possui numerosa família, filhas casadas e solteironas, que trabalham por si, lavando e engomando para fora, como mouras; ele pouco pode dar. Mas é extremoso por algumas, e adora os netos principalmente um deles, que fez criar em casa, o João.

Apesar de velho, cansado, as pernas trôpegas e os braços já um tanto delgados pela atrofia dos músculos, atira-se ainda algumas vezes ao mar, correndo a vela, guiando da popa as redes, ou patrolando uma grande canoa que vai, de tempos a tempos, carregar na Capital para uma venda da Jurujuba. E é do mar que ainda lhe vem a vida, sendo o pequeno alto, o Observatório, o seu governo, de onde domina as praias, as canoas, os pescadores e os peixes, na atividade constante dos vigias.

III 
No meio da alegre algazarra dos pescadores e roceiros, companheiros de redes, o Santos foi sentar-se, como de costume, à sombra de umas velhas aroeiras que dominam, a um canto, o Observatório, com os seus rijos troncos torcidos pelo vento, as suas ramas finas, cobertas de continhas de lacre como gotas de sangue vivo. De um lado, touceiras de cardos, gravatás e ananases do mato expõem os seus seios hostis, armados em guerra, como sabres agudos e denteados, e clavas antigas, eriçadas de pontas, numa ferocidade agressiva e áspera ao meio ambiente. E, em toda a extensão da praia, a restinga, unida, de uma só altura, cuidadosamente aparada, por cima, pelo vento, como uma cerca colossal de jardim antigo, clássico, torturada, alinhada pelo decote da cultura, no tempo de Luiz XIV.

E, por instantes, os olhos claros e pequeninos do Mestre de Redes, ficaram parados, luminosamente embebidos na suntuosidade augusta e na majestade serena da baía.

Era pelo meio-dia. O sol, no zênite, vertia a luz a prumo. Pairava no ar morno uma poeirada diamantina. Perto, a praia de Icaraí debruava a água azul com a sua larga barra de giz. Embaixo do Canto do Rio, sobre as rochas alagadas, o marulho, o arfar contínuo da maré viva. Dilatando os pulmões, o aroma salubre da costa, misto de alcatrão, musgo e algas marinhas, nas primeiras lufadas da brisa.

Então o velho gritou para os homens:

— Olha a viração aí. Que belo dia para um bordejo!

Todos concordaram, numa alegria:

— É verdade, belo dia pra uma corrida!

E, desviando os olhos, o Santos pousou-os próximo na longa faixa da praia faiscante, onde uma saia de chita vermelha perseguia uns rapazinhos. E reconhecendo-a:

— Lá anda a Constança às voltas com os filhos, uns demônios, que a martirizavam, com toda a sorte de tropelias! Garotos, não trabalhavam, não iam à escola, só sabiam vadiar pelos caminhos. E a mãe que se escanzurrasse, a mourejar noite e dia. Também desde que lhe morrera o marido que era aquela lida, pobrezinha!

Os outros voltaram-se a olhar a Constança, que se ocultava agora no sopé da restinga, bradando, numa voz chorosa, irada, muito aflita:

— Ó estupores! ó malditos!

Mas um ruído breve e seco de tamancos rebentou na estrada que atravessava o alto para o lado do Saco de São Francisco.

E uma rapariga magnífica apareceu, vestida de chita em cassa, toda rubra do sol, com o pretensioso de um samburazinho na mão. Era a filha do Rego, uma morena carnuda, de amplos quadris, seios túrgidos, virgens, cara larga, poderosa. Parecia um encanto, nas suas vestes simples, roliça e apetitosa ante o olhar aceso da matutada.

Ao aproximar-se do Observatório, colheu-a, festejando-a, uma graçola paternal e petulante do velho:

— Ó Marica! ó feitiço!

— Mamãe está doente, seu Santos.

— De quê? fez o velho.

— Da maldita. Aquilo não a deixa mais...

E passou, na luz forte, na exuberância das suas carnes juvenis, fecundas, deixando no ar uma sublevação de desejos...

O Mestre de Redes voltou de novo a contemplar o mar, quando de repente avistou um bote apontando na altura da Boa Viagem.

Vinha fazendo bordadas na linha do vento, em direção à Jurujuba. Mas manobrava mal, muito metido, carregado de gente. E, por vezes, nas viradas, as maretas mais altas, embatendo de popa, alagavam-no. No entanto, as vagas cresciam, espumavam. O vento, na ponta, dava de rajadas. O latino do bote, muito alto e caçado, vergava, e o casco esguio adornava fortemente, deitando a borda n'água.

O Mestre de Redes ergueu-se, olhando-o sempre; os outros, também de pé, cercavam-no, atentos, fixando igualmente o pequeno casco.

A embarcação agora, na volta de terra, afogava-se numa bolina escassa. Governava mal, às guinadas, e, por instantes, num risco, viu-se-lhe de fora o fundo alcatroado.

O Mestre, então, exclamou:

— Nem sabem dar uns bordos! Já mostraram duas vezes a quilha!...

E à proporção que o bote aproximava-se:

— O bote vira, o bote vira, o bote não aguenta aquele pano! É chegar à ponta e está virado!...

Nesse instante, o bote, em cheio na rajada, voava num turbilhão de espuma. De repente o latino desapareceu nas águas...

O Santos saltou, e numa autoridade:

— Ó gente, vamos lá, vamos ver aquilo!

E descendo tropegamente um dos trilhos de cabra do Observatório com os remadores das redes, tomou uma canoa de voga que estava puxada na praia e, em multiplicadas remadas nervosas, chegaram à ponta, quando já o bote palpitava vencido, afundado até as toleteiras, vazio de passageiros.

A um sinal do Mestre, os homens lançaram-se ao mar e, sufocados, bufando, cuspindo grosso a água salgada, iam jogando para dentro da canoa os náufragos, já desacordados, sob o comentário faceto do velho:

— Escaparam de boas, escaparam!...

Assim retornaram à praia, num total salvamento, com o casco virado a reboque.

E quando, depois de despertos, os passageiros rolavam já num carro em direção a São Domingos, o Santos, do alto do Observatório, cercado de povo, que eletricamente viera saber, ver, se possível fosse, o desastre, as novidades, bramava:

— Não há mais polícia, nem da Capitania do Porto! O que esses remadores do bote precisavam era de uma boa cadeia e muita chibata para cima daqueles lombos!...

A tarde fenecia melancolicamente, na serenidade espiritual de um poente do Norte, coando-se por um vitral gigantesco de igreja. No alto, o Azul, empalidecido e saudoso, parecia feito da seda murcha e gloriosa de um antigo velário. Toda a linha recortada da costa começava a esbater-se docemente numa sombra azulada. O vento forte do largo extinguia-se, amainava pouco a pouco, em bafejos exaustos. E o mar, o vasto mar poderoso e profundo, reluzia olimpicamente, para além, para além, numa pulverização roxa e sanguínea de acaso. 

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