O Testamento Falso
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Belisario
Sin hacienda, siendo rico!
Yo quiero vengar-me ya
Del passado fraude y dolo!
..........................
Loaysa
Pues primeiro............
Quiero que me perdoneis.
…........................
Belisario
Mas tu tam poco tuviste
Culpa en el mal que causaste,
Pues cobro en esta contienda
Una esposa y una hacienda!
Aguilar. El mercader amante.
CAPÍTULO 1: NOVA FUNESTA
Melicia
Gran secreto es el morir.
Paula
Mas es mucho declarado:
mayor secreto es vivir,
y ser cierto de partir,
y no estar aparejado.
Cada uno está engañado
y confiado
que tiene luenga la via.
Melicia
Ainsi fué la mia madre,
mal pecado.
Gil Vicente
Via-se no largo da Lapa, nesse lindo, aprazível e tão concorrido quarteirão do Rio de Janeiro, em uma noite de inverno, uma casa brilhantemente iluminada; aí reinava a música com todas as suas seduções e a dança com toda a sua bela desordem; — era um sarau em honra da senhora do dono da casa.
Anselmo
Rodrigues estava satisfeitíssimo no meio de seus convivas.
D. Maria
Marcelina recebia mil parabéns pelo seu feliz aniversário. Lisonjeiros e
aduladores vinham aos pares com estudadas finezas significar-lhe o seu prazer
pelas boas disposições que, segundo eles, apresentava a ilustre representante
de meio século; e ela mais desejosa que disposta a viver outro tanto tempo, recebia
essas congratulações com graça que não deixava também de ser estudada.
Bela e
interessante como as meninas aos quatorze anos, Margarida cativava mais que sua
mãe as atenções, e não era para menos por amor daqueles expressivos, negros,
grandes e brilhantes olhos, por amor daquela tez amorenada e corada à maneira
do jambo, por amor daquele andar cheio de movimentos sedutores, por amor
daquele falar meigo mais animoso, por amor daquele rir cheio de suavidade. Não
era em honra dela o sarau, mas as honras da noite lhe pertenciam.
Havia-se já
dançado, e muito, e acerca dela se ocupavam todos; acerca dela, a um canto da
casa, conversava seu pai com Manuel Luís Faria, negociante português,
estabelecido há poucos anos no país, negreiro, contrabandista, ambicioso de
riqueza e ávido de todas as honras criadas pela sociedade e por ela
prostituídas aos sacerdotes de Pluto...
Sem ter
perdido aquelas maneiras rústicas, os modos selvagens, seus ademanes grotescos
contraídos desde o nascimento, procurava contudo polir-se conchegando-se
àqueles cujas maneiras atrativas lhe serviam de estudo; era a bela Margarida o
objeto de sua atenção, e gosto era vê-lo dirigir-se à interessante menina, que
o desdenhava, que o aborrecia de morte.
Queixava-se
agora ao pai por jamais haver conseguido dançar com ela, porque sempre a achava
premunida de par, de maneira que via-se obrigado a valer-se da autoridade
paterna.
Aí veio cair
a conversa depois de haver versado sobre a beleza da menina tão gabada por
Manuel Luís, ou sobre a educação planejada por Anselmo, quando este,
sorrindo-se, acenou para um galante menino, sentado à alguma distância.
Era seu
filho, o último com que o céu abençoara a sua união; falou-lhe ele ao ouvido, e
o pequeno foi direito à irmã que passeava pelo braço de Henrique, a quem muitos
davam antecipadamente o título de doutor.
Margarida
dirigiu-se imediatamente a seu pai; Henrique acompanhou-a.
Manuel Luís
levantou-se, inclinou-se, arrastando os pés; levantou a cadeira em que estava
sentado à cima de todas as cabeças, atirou com ela, não sem estrondo, em frente
da cadeira de Anselmo Rodrigues.
— Ora aqui
está um assento, disse ele.
—
Agradecida, respondeu Margarida escusando-se.
— Margarida,
espero um favor de ti.
— Mandais,
senhor, e não pedis.
— Hoje peço.
— E se eu
jamais pude negar-vos um favor, meu pai, quanto mais hoje.
— Bom, bom!
acrescentou Faria esfregando as mãos, estou servido!
E pôs-se a
calçar umas luvas.
— Espero que
danceis como Sr. Manuel Luís.
Margarida
calou-se e Henrique sorriu-se malignamente.
— Ó diabo!
exclamou Luís admirado que as luvas estivessem tão justas.
— E então?
disse o pai.
— Tenho par
para contradanças sem conta, que, segundo penso, não se dançarão hoje.
— Agora com
quem danças?
— Com o Sr.
doutor, respondeu Margarida referindo-se a Henrique.
Henrique
corou, titubeou, quis falar e nada disse. O velho deu mostras de impaciência.
— Eu cedo,
disse Henrique esforçando-se sobre si. Margarida deu-lhe leve cotovelada.
Manuel Luís
inclinou-se batendo com as mãos nas coxas.
— E eu estou
pronto.
E vendo que
as luvas se tinham aberto, pôs-se admirado a olhar para as mãos.
Margarida e
Henrique puseram-se a rir. A orquestra deu sinal para a valsa.
— Vamos,
disse Manuel Luís oferecendo o braço a Margarida.
— Ainda é
cedo, respondeu Margarida, não ouvis o sinal para a valsa?
E começou a
música.
Henrique
tomou Margarida pela cintura, pegou-lhe da mão direita, e ao som animado da
harmonia de Strauss deslizaram-se unidos pelo salão; eram dois anjos
balançando-se sobre as nuvens, e o pavimento todo coberto de oleado, colorido,
parecia rebentar em flores sob aqueles pés tão delicados, ligeiros e leves.
Manuel Luís
deixou-se cair sobre uma cadeira; a raiva o dominava ao mesmo tempo que a
admiração modificava-lhe a ira; achava-se mistificado, e para ele o negócio era
mais que sério; e contudo invejava a Henrique o poder que lhe dera a arte e a
natureza.
Terminada a
valsa, conduziu Henrique a interessante Margarida para bem distante de Manuel
Luís; ofereceu-lhe um lugar no divã, de bela seda azul, todo brocado de ouro, e
sentou-se a seu lado. Aí conversavam eles havia já alguns minutos, quando a
orquestra deu o sinal para contradança.
— Vão
cantar? perguntou Faria a Rodrigues.
— É o
sinal...
— Ah! é o
sinal, sim, eu não desgosto dessa música.
— Segue-se a
contradança, digo-vos eu, ajuntou Anselmo.
— Sim, em
segundo lugar a contradança, acrescentou Manuel Luís.
Anselmo
riu-se e calou-se; Manuel Luís, percebendo que iam dançar, levantou-se,
dirigiu-se a Margarida e ofereceu-lhe o braço, que ela aceitou sem pronunciar
palavra, e sem que mesmo se dignasse de encará-lo.
Henrique,
que ficara só, ergueu-se, e um amigo veio lhe bater no ombro.
— Então,
vamos?
— Oh! é
verdade, disse Henrique, eu não danço agora.
— E como há
de ser isso?
— Mas
dançarás com o senhor, e servir-lhe-ás de vis-à-vis.
— Sim, Sr.
Dr. Silva, disse Manuel Luís, sirva-me de aviso, que eu cá disso pesco muito
pouco.
— Que diabo
de lapuz é este, Henrique?
— Caluda! É
o noivo de... Henrique aproximou-se e falou-lhe ao ouvido; ah! Margarida ouviu
perfeitamente o seu nome e corou.
— Ora, temos
conversado, disse o doutor, voltando-lhe as costas com o maior desprezo; e
Manuel Luís, mudo e em pé no meio da sala, olhava para todos os lados.
— O que vos
falta, senhor? perguntou-lhe Henrique.
— O aviso.
— Aqui estou
eu.
— Mas não
tendes dama.
— Ser-me-á
fácil achá-la; não há senhora que não me queira para seu cavalheiro.
— Pois então
arranje-se.
Henrique
deixou-o, e Margarida guardou o maior silêncio para com seu cavalheiro.
Tendo a
contradança começado, Henrique foi ocupar o lugar que lhe competia, em frente
de Margarida. Então um sussurro lavrou por todos os dançantes; todos os olhos
se ocupavam do par de Henrique, da bela escolha que ele fizera: era a sua dama
uma horrenda velha, e Manuel Luís mordia os beiços de raiva pelo excelente
aviso que lhe dava o bom do moço.
— Então,
senhor, disse Henrique passando por Margarida no chaine anglaise, não perdemos.
—
Certamente, antes vis-à-vis que par.
— Mas o
Manuel Luís é que se está mordendo de raiva.
— Onde
fostes desencavar essa bruxa, Sr. doutor?
— É uma
noiva para ele.
— Diabo!
murmurou Luís, se eu soubesse não dançava.
E estendeu
as mãos para Margarida; era um tour de
mains.
— Que mãos
de ferro tem esse homem, observou Margarida.
— Dança com
garbo, ajuntou Henrique oferecendo a mão esquerda a Margarida no chaine de dame; olhai como dá com
aqueles cotovelos à modo de caixeiro de taverna que anda pelas ruas às pressas.
— Senhora,
disse Manuel Luís, haveis de consentir que tire as luvas, que estão todas
rotas.
— Ora, essa
é boa, respondeu Margarida, pois não vedes que os vossos calos rasgarão as
minhas como já rasgaram as vossas?
— Sois muito
ríspida, D. Margarida, mas para mim que para um certo sujeito...
— Pois
sabeis disso?
— Sei que...
— Ora,
dizei.
—
Henrique...
— Acabai.
— Empregais
otimamente o vosso tempo.
— E não faço
bem?
— Sim,
porque ignorais quem ele seja.
— Outro
tanto diria ele de vós se eu vos amasse, não sei se com mais razão.
— Se eu vos
amasse, repetiu ele entre os dentes.
— E para que
essas rivalidades?
— Se ele não
fosse um intrigante, se...
— En avant deux, Sr. Manuel Luís,
bradou-lhe o mestre-sala vendo-o parado; e Manuel Luís pôs-se em avant deux quando os outros já atravessavam,
e todos puseram-se a rir.
— Manuel
Luís, murmurou-lhe Anselmo sacudindo-lhe a aba da casaca.
— O que há
lá, que não me deixam hoje com os diabos?
— Não
sabeis?
— O que é,
estais pálido?
— Lourenço
Pinto de Sousa...
— O que tem?
— O que tem?
ajuntou também Henrique atraído pelo nome de seu padrinho.
— Morreu
agora mesmo!
— Morreu!
repetiram os pares que o rodeavam e a nova funesta derramou-se pelo salão.
— E sem
reconciliar-se comigo, balbuciou Henrique caindo sobre o divã.
— E sem ter
feito talvez novo testamento! bradou Luís precipitando-se pelas escadas.
— O meu
vidrinho de sais! gritou Marcelina para suas mucamas, dirigindo-se a Henrique,
porém já lá estava Margarida para chamá-lo à vida com aqueles dois negros e
cintilantes olhos.
Henrique
estava sucumbido por aquele inesperado golpe.
— Que
agouro, murmurou Maria Marcelina consigo, que agouro, logo nesta ocasião!
— Qual dos
dois será o herdeiro? Qual do dois será também o marido de minha filha! Tal foi
o primeiro pensamento de Anselmo.
Pouco depois
uma sege conduzia Henrique para o seu domicílio, e o silêncio da noite veio por
seu turno ocupar o bulício do sarau tão funestamente interrompido.
E tudo
tornou-se trevas.
O sono e o
descanso sucederam ao movimento e aos prazeres; e só dois entes velavam, só
dois entes tão distantes! — se ocupavam com o mesmo objeto; o futuro!...
Só dois
entes: — Margarida e Henrique!
CAPÍTULO 2: QUERO PORQUE QUERO!
— Tudo perdi, desgraçado,
Exclama o moço........
Só nesta alma o seu retrato
Dura com fogo gravado!
Mouzinho
Margarida tinha-se levantado tristonha de seu leito, e assim se conservara todo o dia; sentou-se à noite ao piano e pôs-se a cantar as mais tristes e fúnebres modinhas que possuía.
— Há dias em
que o coração parece que nos adivinha algum mal, disse ela consigo; estou tão
triste e não sei a causa!
Fechou o
piano; chegou à janela. Brilhava a lua e tudo era deserto. Notou no entanto um
vulto que passava em frente da igreja e que se moveu dirigindo-se para o lado
de sua casa.
Margarida
recuou algum tanto para dentro, e ao mesmo tempo sentiu cair na soleira da
sacada, a seus pés, uma pedrinha.
Olhou e viu
que o vulto tomava nova direção; abaixou-se e apanhou um papel atado a uma
pedrinha.
Arremessou a
pedra à rua e escondeu o papel no seio; no mesmo instante uma mão tocou-lhe de
leve no ombro; olhou sobressaltada, e era sua mãe.
— Margarida!
— Senhora.
— São horas
de acomodar-nos; Anselmo parece que faz tenção de se não recolher, nem é
possível que o enterro deitasse para tão tarde.
— Ele não
pode tardar, minha mãe, mas eu também não posso esperar que estou a cair de
sono.
— Assim
também estou eu; ontem tão alegre e hoje tão triste; aquela nova funesta me tem
feito cismar, e bem.
— Tanto
pior; esquecei-a se não quereis que vos seja em tudo sinistra.
— Sim, sim,
mas aí é que está a dif...fi...cul...da...de... disse Marcelina bocejando.
— Talvez que
o sono...
Margarida ia
prosseguir quando lembrou-se de pôr fim à conversação.
— Vou
deitar-me, ajuntou ela, que não posso com tanto sono.
E beijando a
mão da mãe, recolheu-se a seu quarto. Aí, desenrolando o bilhetinho, leu com
avidez e curiosidade devorando as letras:
Senhora. —
Perdoai o meu atrevimento; tinha-me imposto a mim mesmo o preceito de jamais
fazer uso da pena para corresponder-me secretamente com senhora alguma;
obriga-me porém a necessidade a proceder de outra maneira; se me não
perdoardes, não me culpareis daqui em diante, porque espero que seja esta a
primeira e a última vez.
Estou pobre,
desgraçado, que perdi tudo! Chegava ao fim de meus estudos, já no 6° ano de
medicina, e via contente coroados os meus esforços por vossa mão, pagava-me bem
deles com aposse dela, quando a súbita morte de meu padrinho, que me devia
fazer feliz e ditoso constituindo-me herdeiro de imensa fortuna, me deixa para
sempre desgraçado, sem um real de esmola, que toda essa imensa riqueza de
seiscentos mil cruzados foi pouca para premiar a intriga de Manuel Luís!
Amava-vos
ele, e já vosso pai estimava pelos seus haveres; se a avareza não apagou em seu
coração o amor que vos tributava, sua vitória é certa; vossa mão já não será
para mim, homem sem futuro; exigir-vos-ão um sim sem a mínima reflexão, e
vós... Margarida! o passado é sem esperança! As que tínhamos então repousavam
no porvir... como num sonho!
Aos quatorze
anos o coração da mulher somente sabe amar; aos quatorze anos a ambição repousa
nele, como as fezes no fundo de um vaso antes da fermentação; mas lá vem o
tempo em que elas se revolvem, tudo toldando até ganhar a superfície; mas eu,
longe de apelar para ele — ainda tão belo e inocente! — apelo para a vossa
razão, que o futuro não seja para mim um remorso!
Perdi, ainda
no berço, minha mãe; e ainda em tenra idade, meu pai esteriçado num ataúde
parecia-me a mim que dormia; pobre, não fiquei sem amparo; perdi-o porém agora;
e assim vejo fugir a minha esperança! Resta-me a resignação, que esta a tenho
eu, para afrontar os rigores da sorte; mas outro tanto não espero de vós;
associar-vos à minha ventura era o meu pensamento de todos os instantes;
associar-vos à minha desgraça... Oh! nunca!
Segui pois a
vossa estrela; obedecei a vosso pai; amai o homem que vos pode fazer feliz,
amai-o tanto como me amastes, e esquecei-me para todo o sempre, para que no
meio da abundância e dos prazeres não vos venha uma lágrima manchar as vossas
belas faces, lembrando-vos talvez que eu curto as mais pesadas necessidades da
vida.
Eu sim, não
me esquecerei de vós; vossa imagem, gravada na minha mente, será como a
lembrança da bonança na tormenta!
Ah! basta que
haja um infeliz neste mundo; um só, e que esse seja eu!
Sede feliz!
A a bênção divina caia sobre vós! Tornar-nos-emos a ver e a amar; — aonde? Deus
o sabe. Adeus!
Henrique.
Margarida
tinha banhado das letras com suas lágrimas. Tornou a ler, e novas lágrimas
caíram sobre as páginas, como gotas de chuva sobre as folhas da taioba. Queria
decorá-la lendo e relendo ainda muitas vezes, quando sentiu o ruído dos passos
de seu pai subindo a escada e batendo de degrau em degrau com a bengala.
Correu Maria
Marcelina ao encontro de seu velho esposo; e Margarida, amarrotando a carta,
escondeu-a ligeiramente sob o travesseiro.
Anselmo
Rodrigues, à proporção que entrava, ia fechando as portas sobre si, até que
recolheu-se a seu aposento, vizinho ao de Margarida.
Franco por
demais, não era muito para segredos; havia pois por costume de muitos anos
trazer sua esposa inteirada de tudo quanto tinha feito, fazia e tencionava
fazer: pôs-se pois a conversar com sua mulher.
Margarida ao
ouvi-lo como que pronunciar seu nome, correu para junto da porta que comunicava
um quarto com outro, mas que não era de estilo abrir-se, e escutou.
— Ora, eu
tinha cá meu receio que o homem já não quisesse, pois que mudaram-se as
circunstâncias.
— Sim,
Anselmo, mudaram-se as circunstâncias, e é por isso que eu mudo também de
parecer; agora, sim, consinto eu que Margarida se case com Faria; mas a dúvida
já não é minha senão dela. Quererá?
— E que
remédio terá senão estar pelo que quisermos? Porventura tiveste tu querer
quando te fui pedir a teu pai?
— Eu recebi
educação diferente, e bem te hás de lembrar que a primeira vez que te vi foi na
igreja, pois que pelos quícios das portas e orifícios das fechaduras mal te
podia distinguir; os tempos são idos e hoje em dia...
— E hoje em
dia os pais têm o mesmo direito que nos tempos de dantes.
— Mas ela
ama a Henrique, tem-lhe decidida inclinação; e quem sabe se ele...
— Ora, pelo
amor de Deus, não me fales nesse moço; ficou sem um vintém, e no entanto que
Manuel Luís está senhor de seis milhões! O padrinho que tal fez é certo que bem
o conhecia; quando não, repartiria a herança por igual.
— E nesse
caso o que vemos? Que as intrigas de Manuel Luís prevaleceram.
— Não tanto
assim; ambos se guerrearam a mais não poder, ambos tinham suas dívidas para com
o velho Lourenço Pinto, porém o tal Henrique mais que o outro; Manuel Luís
sempre é homem estabelecido, negociante...
— Mas sem
educação e completamente bruto, ignorante e...
— Não
importa, como tem dinheiro todo o mundo o há de aturar e até mesmo poli-lo; e
eu o que desejo é fazer o futuro de minha filha.
— E eu
também.
— Pois bem,
estamos concordes, e por todo este mês há de efetuar-se o casamento.
— Então é
necessário cuidar do enxoval.
— Em nada;
tudo será pronto; quem tem o seu condão em seis milhões, que mais necessita que
acenar?
— Seis
milhões!... repetiu a mulher.
— Seis
milhões! disse ainda Anselmo metendo-se na cama.
Ah!
Margarida estava traspassada pelas palavras que ouvira; traspassada pelas
palavras que ouvira; traspassada como se fosse por agudas espadas!
Infelizmente
para ela não era um sonho.
— Minha mãe,
minha mãe! disse ela arremessando-se no leito, e também vós!
Dormiu, mas
que sono! Todo ele agitado; e pela manhã, ao beijar a mão paterna, foi
inteirada por Anselmo de seus desígnios.
Consultada
sobre o casamento, respondeu-lhe que não tinha vontade própria.
— Estranho
sobremaneira, lhe disse o pai, essa vossa resposta.
— Pois bem,
respondeu Margarida, um sim ou um não não será o mesmo para quem está
disposto a obrigar-me a casar, não com Henrique ou Manuel Luís, mas com seis
milhões?
— E são para
mim que os quero, minha filha!
— Não, meu
pai, são para mim; o casamento está concluído: aqui está minha mão! A venda
está feita, aqui está a escrava!
— Margarida!
disse asperamente Marcelina, que tom é esse? Não falas com teu pai?
— Se vos
ofendo, perdoai-me, mas esse tom imperioso não o teria eu, tê-lo-íeis vós,
minha mãe, se ainda advogásseis a minha causa.
Marcelina
calou-se; Anselmo, pronto para sair, bateu com a bengala de rijo no pavimento,
como que firmando sua vontade, o seu quero porque quero, a despeito dos bons
desejos de sua filha, e desceu pausadamente a escada.
Então o
pranto desatou-se daqueles olhos tão negros e belos; e abraçada com sua mãe
viu, não sem consolação, que as lágrimas maternais também corriam.
Mas tudo em
vão!
E no entanto
quantas moças não lhe invejariam sorte?
Assim é tudo
neste vale de lágrimas!...
CAPÍTULO 3: O CASAMENTO
To mourn
him?
Pierpont
Todo o largo da Lapa e suas ruas imediatas apresentavam o aspecto de um dia de festa; as carruagens paradas à porta de Anselmo Rodrigues tinham atraído a atenção da vizinhança; as janelas estavam guarnecidas de moças cheias de curiosidade e também de inveja.
Era o dia
aprazado para o casamento do Sr. Comendador Manuel Luís de Faria, cujas
maneiras delicadas no trato de cortesão haviam sido adquiridas na contagem de
seiscentos mil cruzados!
Pomposa
carruagem, tirada por uma quadriga de urcos, parou à porta de Anselmo; pajem de
rica libré azul com vivos dourados desceu pressuroso a abrir a portinhola, e um
homem trazendo uma soberba e disforme comenda no peito da casaca, sobre a
algibeira da carteira, saltou e subiu a escada.
— O Sr.
Comendador!... bradou Anselmo para dentro, correndo à escada para recebê-lo com
outras pessoas que se achavam em sua casa.
Manuel Luís
foi introduzido na sala com os maiores cumprimentos, sem dúvida devidos ao
sinal característico de sua casaca, emblema de suas riquezas.
— Então a
menina ainda não está pronta? perguntou ele.
— Ela não
tarda, Sr. Comendador! está bela como uma noiva, que noiva é.
— Pois vamos
aviar que o sol não tarda a recolher-se, disse o Comendador.
— Que terá o
sol com o casamento? Murmurou um dos convidados cujo negro bigode sobressaía à
tez alva do rosto.
— Falai mais
baixo, que ele pode ouvir, Rafael.
— Sem
dúvida, ajuntou o Dr. Silva, estou enganado; trata-se talvez de um batizado.
— Isso é
para mais tarde, respondeu Rafael; o Sr. Comendador espera um baronato, para o
que...
— Para o que
já tem despendido algumas boas somas.
— Se lhe
derem...
— Ora, se
lhe darão! pois já não teve a Comenda de Cristo?
— E o que
fez para isso?
— Ora o que
fez? Fez todo o possível. Deu os passos precisos e alcançou-a.
Maria
Marcelina apareceu na sala acompanhando a sua filha. O Comendador correu a
cumprimentá-la, e Rodrigues deu o sinal para a partida.
— Esperai,
meu pai, disse Margarida; há um dever a cumprir ainda: não sairei senão com uma
condição.
— Minha
filha! bradou Marcelina como que inquieta e indignada.
— Minha mãe,
eu tenho direito a ser ouvida e muito mais atendida, e espero sê-lo. Sr.
Comendador, acrescentou ela dirigindo-se para Manuel Luís, é de vossa bondade
que espero me presteis toda a atenção.
— Eu vo-la
prestarei, senhora; podeis falar com toda a liberdade.
Esta cena
tinha tomado um caráter sério e atraído todas as atenções; nunca o Comendador
se havia saído tão bem; e Margarida, sem se perturbar, meteu a mão no seio e
tirou de um papelinho.
— Há um
homem, disse ela, que deve de hoje em diante ser esquecido por mim; não que
seja de rigoroso dever para uma mulher deslembrar-se, só por casar-se, até
daquele que foi o primeiro a ocupar um lugar em seu coração, mas porque ele
exige, para minha completa ventura, que me olvide dele. Desgraçado, teme que a
lembrança de suas misérias venha turbar o brilho de meus prazeres! Assim, eu
quero que ele também esqueça-se de mim para sempre; que quando sinta o punhal
do infortúnio enterrar-se-lhe pelo peito não exclame: “Ela nada na abundância,
e eu sofro!”
— Pois bem,
disse o Comendador, dar-lhe-emos algumas mensalidades.
— Nem eu,
nem vós, senhor; que ele as receba sem que saiba de quem.
— Tanto
melhor.
— Muito bem:
já que sois generoso, sabei mais que pagais generosidade por generosidade; aqui
tendes e vede, senhor, como Margarida o amando vai entretanto ante o altar
dar-vos a sua mão.
Margarida
entregou a carta de Henrique a Manuel Luís, que parecia devorar as letras com
os olhos.
— Ela honra
a Henrique, disse o Comendador dobrando a carta; tive um rival assaz generoso!
— E
procedeu, ajuntou Margarida, como muitos não se haveriam em seu caso.
— Pois bem,
dar-lhe-ei mensalmente mil cruzados para ajuda de seus estudos.
O espanto
foi geral. O Comendador meteu a carta na algibeira e todos os olhos o
acompanharam; pensaram todos, talvez, que tanta prodigalidade era inspirada
pelas boas e bem empregadas expressões de Henrique; nem mesmo Margarida o
compreendeu, apenas um homem alto e magro, com a cara amorenada e coberta de
escaras que lhe deixaram as terríveis bexigas, penetrou-lhe no fundo do
coração, e viu os efeitos da causa fatal que mais tarde também viria por seu
turno pedir contas à sua nova vítima.
E esse homem
estremeceu.
Manuel Luís
dirigiu-se a Rafael, murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido, e o moço fez
sinal afirmativo com a cabeça.
— Agora,
disse Margarida, podemos partir.
Metidos em
seus carros, segundo o cerimonial observado nessas ocasiões, caminhou o
brilhante préstito pela rua do Passeio e foi parar junto à sacristia da igreja
de São José, que se erguia de novo sobre suas velhas ruínas.
O recinto da
capelinha estava atopetado de curiosos, atraídos uns pelo ruído dos carros,
outros pela fama da riqueza de Faria, cuja boa sorte a muitos maravilhava, pois
há um mês que o traficante de negros novos se elevava de tão humilde e
desprezível estado às mais altas condições da sociedade.
Manuel Luís
apeou-se rapidamente e veio oferecer a mão a Margarida, que saltou trêmula e em
extremo corada; abaixou os olhos e caminhou guiada por sua mãe, sem ousar olhar
em torno de si.
Um murmúrio
desprendeu-se de todos os lábios!
— Que pena,
disseram uns, tão bela e ainda tão mocinha, para semelhante rústico!
— Que homem
feliz, disseram outros, boa herança e boa moça!
— São duas
fortunas que quase sempre se ligam, observou um velho.
— Falta a
terceira, que quase sempre falta, que õ possuidor digno delas, acrescentou um
jovem.
Chegou o
sacerdote; vinha todo paramentado de novas vestimentas, lembrança feliz que lhe
inspirara a esperança de uma boa espórtula.
A capelinha,
iluminada, mostrava perfeitamente todos os olhos fixos em Margarida.
Às
expressões claras e sonoras do vigano sucedeu a sua voz trêmula e sumida, que
sem dúvida se perderia se o maior silêncio não lhe reinasse em torno.
— Sim,
balbuciou ela, e as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos.
— Chorará
por ele? murmurou Faria consigo.
E um ai
surdo e abafado como que lhe respondeu. Assim também sibila a viração, assim
responde o eco por quebras do monte.
Terminada a
cerimônia, seguiu Margarida conduzida pelo braço de seu marido;
acompanhavam-nos as testemunhas e convidados. Passou por um jovem que ali
estava de joelhos, que lhe pegou na fímbria do vestido de branca seda e
beijou-a furtivamente no meio da confusão.
Deixou-lhe
ela um raminho de flores de laranjas que levava no peito; emblema de castidade
e pureza, como talvez penhor de seu amor platônico; e o jovem não a
compreendeu, que murmurou consigo:
— Para mim
as flores, e para ele tudo! Maldito Lourenço Pinto de Sousa!
E saiu.
— Coitado!
disse um sujeito bem trajado, alto, de rosto trigueiro e coberto de escaras de
bexigas, testemunha até então muda de todo este ato; tanto se amavam e eu
fi-los para sempre desgraçados! A um a herança! A ambos o amor!...
Era o
escrevente de um tabelião.
Henrique
entrou em casa de seu amigo o Dr. Silva, cuja bolsa lhe havia sido aberta
franca e generosamente desde que seu padrinho Pinto de Sousa lhe suspendera a
mensalidade que lhe dava, proibindo-lhe a entrada em casa.
Sentou-se
junto de uma mesa em que costumava a escrever, aflito e acabrunhado, e por
acaso deparou com a nota da carta que dirigira a Margarida; quis despedaçá-la;
conteve-se, porém, e começou a lê-la.
Recordando-se
de seus protestos de resignação, acalmou-se, e não chegava ainda ao fim, quando
sentiu baterem à escada.
— Entre quem
é, disse ele largando a carta e dirigindo seus olhos para a porta de um escuro
corredor.
Entrou um
pajem negro de rica libré azul com vivos dourados.
— O Sr. Dr. Henrique?
— Sou esse.
O pajem
entregou uma carta volumosa que tirou da algibeira, entregou-a, e saiu
imediatamente sem que ele desse por isso.
Abriu
Henrique a carta, achou uma porção de notas, e leu com espanto:
“Doutor,
“Estude para
completar a sua carreira; aí vai o dinheiro para o que necessitar; e igual
remessa ser-lhe-á feita mensal e pontualmente, sem que jamais se exija de vossa
senhoria outra paga que o proceder franco e leal de homem honrado”.
Henrique,
absorto, contou as notas, e achou que perfaziam a quantia de quatrocentos mil
réis.
Procurou
pelo pajem e não teve mais notícia dele; reuniu todos os dados para saber de
que parte lhe viria semelhante donativo, mas nem pelas feições ou libré do
pajem, nem pela letra ou estilo da carta, o pôde saber; todavia todas as suas
presunções tinham seu grau de certeza.
— Nunca a
fortuna me desamparou, disse ele a rir-se tristemente; é a estrela de Margarida
que ainda luz para mim! é a voz de Lourenço Pinto de Sousa que ainda me socorre
do fundo do sepulcro!
E
reanimou-se, mas Margarida já não podia ser sua!
Felicidade,
ó sonho incompleto da vida! não te possui por certo quem ainda deseja!
CAPÍTULO 4: CINQUENTA CONTOS DE DOTE
Que quereis, señor, que diga?...
pero dejame topar con ela.
Lope de Rueda
Havia mais de ano que Margarida tinha-se ligado a Manuel Luís; levada a todos os divertimentos, nem por isso lhe era dado alegrar-se; mortal melancolia se apoderara de seu coração desde a morte de sua mãe, que se finara balda de cismar com a nova funesta do dia de seus anos; vivia pois triste e reconcentrada no fundo de seu coração.
Também
Manuel Luís por seu turno, não era o mesmo homem; magro e abaçanado,
adivinhava-se-lhe o próximo fim, e entretanto a ambição das honras e grandezas
o acometia desordenadamente. Preparava a sua casa para esplêndido baile, a fim
de comemorar o seu baronato, graça que acabava de obter e que ainda lhe trazia
as despesas do título de grandeza que ficara para ocasião mais azada, sem
dúvida quando provasse evidentemente que a tinha.
Estava pois
o Sr. Barão do Engenho Queimado todo preocupado com os preparativos e
disposições do baile, queria ele, para prova de seu mau gosto, que a casa fosse
preparada como as nossas igrejas ou confeitarias pela Semana Santa, e da
altercação que teve com o armador, encolerizou-se bastante; apareceu-lhe a
tosse, e um escarro com seus laivos de sangue veio patentear por mais esta vez
o pouco tempo que mal tinha que gozar de sua imensa fortuna.
A Sra.
Baronesa, que havia acudido aos gritos com sua excelência queria convencer o
armador de seu bom gosto, ordenou imediatamente que fosse uma cabriolé buscar o
Dr. Silva, médico da casa.
Era Manuel
Luís um desses homens que não sucumbe facilmente a ideia da morte; no entanto
ataques sobre ataques complicavam os cuidados que prodigalizava a Baronesa;
felizmente, porém, para ela, o doutor apeava-se poucos momentos depois à porta
de sua casa, na bela e espaçosa rua de São Joaquim.
— sua
excelência não deve enfezar-se, disse o doutor, nem eu consinto que se inteire
de seus negócios; e demais, ajuntou ele olhando para Margarida, tem quem os
dirija tão bem, que não deve ter motivos para amofinar-se.
Pegou depois
da pena e receitou-lhe; deixou-o repousando sobre um leito de palhinha, e
retirava-se quando a Baronesa veio-lhe ao encontro:
— Então, Sr.
Dr. aquilo é coisa de cuidado?
— Eu não
faço, disse o doutor, mais que cumprir o meu dever receitando, porém o seu mal
já não tem mais cura; é uma tísica pulmonar que se agrava mais e mais, e que
está prestes a despenhá-lo no sepulcro.
— Porém tem
caminhado tão rapidamente!
— Agora
ainda mais, que vamos passar ao verão.
— Senhora
Baronesa, gritou o mordomo do Barão, outro ataque!
A Baronesa e
o doutor se dirigiram para a câmara do enfermo.
O doutor
tomou-lhe o pulso, e a Baronesa vendo que esse socorro lhe era improfícuo,
chegou-lhe com um vidrinho de sais ao nariz, e pouco e pouco começou o Sr. do
Engenho Queimado a recuperar os sentidos, e o doutor declarou à Baronesa que o
seu doente corria grande perigo, que devia mudar de ares quanto antes; e a Baronesa
prometeu-lhe que passava a dar todas as ordens para que seu marido fosse
transportado para as Laranjeiras, já que tanto distava a sua Fazenda do Engenho
Queimado, mas que devendo o baile ter lugar nessa noite, não o poderia efetuar
senão pela volta da madrugada do dia seguinte, pois que ele insistia em dar o
baile.
O doutor
retirou-se, e o mordomo, que era um antigo boleeiro cativo, homem pardo,
circunspecto e honrado, e a quem Manuel Luís prometia as honras da liberdade,
anunciou a chegada do Sr. Dr. Henrique.
A surpresa
desenhou-se nas feições empalidecidas de Margarida.
— Que entre,
murmurou o Barão com voz sumida.
Margarida,
dissimulando, retirou-se para um gabinete vizinho, donde, sem ser vista, podia
a salvo saber o objeto da visita de Henrique.
O jovem
doutor entrou sem que visse Margarida, e tomou assento ao pé do leito em que
repousava Manuel Luís.
— Senhor
Barão...
— Meu caro
doutor.
— Então como
ides? acho-vos macilento, no entanto que tendes as faces coradas.
— Isto não
está bom, disse o Barão esforçando-se sobre si mesmo e sentando-se.
— Não tendes
gozado de vossa fortuna, adoecestes logo, e...
— Doutor,
interrompeu o Barão, deixemos isso, vamos ao que serve; tais recordações me
penalizam, me ralam, me matam ainda mais que esta febre que me escalda e me vai
minando a existência. Mandei chamar-vos porque tenho que oferecer-vos uma
proposta; e graças a Deus, ninguém nos ouve, acrescentou ele olhando em torno
de si.
— O que
será? foi o pensamento rápido de duas imaginações ardentes.
— Logo que
cheguei ao Rio de Janeiro, prosseguiu o Barão, travei-me de amores com uma
linda menina...
Margarida
suspirou inquietando-se.
— Ela era
linda, sim, bem linda... e eu despenhei-a na sepultura! Ainda agora ouço a voz
terrível que me amaldiçoa do fundo do sepulcro! Enganei-a; tirei-a de casa de
seu pai que ma recusara... sem dúvida por ignorar o que eu ainda seria um
dia... e quando a mísera pensava que eu a conduzia à igreja, eu a arrastava
para o leito de minha concupiscência!...
Margarida
estremeceu, como tocada pela chama elétrica.
— Cecília
foi o fruto desse amor desgraçado, herdeira do nome de sua infeliz mãe, e
banhada com as lágrimas de seus olhos; a quem fiz educar no Recolhimento, e a
quem, finalmente, acabo de dotar com 50.0000000 rs.
Margarida
estava fria como um cadáver; e Henrique, mergulhado no mais profundo silêncio,
esperava impassível a proposta do Barão.
— Sois jovem
e solteiro, disse o Barão depois de tão longa pausa, e os bons casamentos hoje
são raros, raríssimos. Uma insignificante rivalidade nascida entre nós, vos
privando de parte da herança, me constituiu o único herdeiro de Lourenço Pinto
de Sousa; prestes a deixar o mundo, eu quero conciliar-me convosco e fazer-vos
ditoso; Henrique, fazei também ditosa a minha filha!
Henrique
conservou-se mudo até nos gestos.
— Meditai
bem, acrescentou o Barão cravando-lhe os olhos como que para ler no fundo de
seu coração.
— Mais do
que tenho meditado? perguntou Henrique.
— Olhai que
são 50.0000000 $ e uma linda menina.
— Não importa,
eu não me vendo a uma mulher, ou não a recebo com indenizações; só me casarei
com aquela a quem eu amar.
O Barão
mordeu os beiços e deixou cair a cabeça, como quem pensava, e largo suspiro
rompeu-lhe dos lábios. No entanto que Margarida se animava e procurava não
perder uma só palavra desta interessante entrevista.
— Tendes
razão, disse o Barão com voz firme e animada, vós deveis amá-la antes, e para
amá-la é necessário que a vejais; ocorre-me uma ideia...
E passou a
mão pela testa.
— Ocorre-me
uma ideia, prosseguiu ele; esta noite deverá ter lugar em minha casa um sarau
que solenize o meu despacho; vireis a ele e aqui encontrareis Cecília.
— Pois sim,
respondeu Henrique, a quem um pensamento luminoso acabava de despertar, estou
pronto.
— O Sr. Anselmo
Rodrigues, anunciou o mordomo.
— Meu pai,
murmurou Margarida correndo-lhe ao encontro.
— Pode
entrar, disse o Barão, e estendendo a mão a Henrique pediu-lhe as suas ordens.
— Até
amanhã, Sr. Barão.
— Sem falta,
disse ele.
— Sim,
respondeu Henrique, e saiu.
Anselmo e
Margarida penetraram no aposento.
O Barão
ergueu-se e veio-lhes ao encontro movendo-se vagarosamente como um espectro que
se levanta do sepulcro, e caminha, e caminha...
— Então,
Barão, disse-lhe o sogro, não estás melhor?
— Não, respondeu
ele, estou pior.
—
Agoniou-se, meu pai, e o resultado foram dois ataques sucessivos.
— Mau, disse
Anselmo consigo.
— Nada é;
amanhã um baile, depois um casamento... e depois o testamento e a morte!
— Ora,
Barão, esquece-te disso. — Ah! meu sogro, ela é certa.
— O mal não
é sem cura; tens os melhores doutores do Império, e cedo...
— À
sepultura!
— Como estás
desanimado!
— Prouvera
não; ele já morreu! murmurou o Barão sentando-se na poltrona e deixando cair a
cabeça sobre o peito.
A Baronesa e
Rodrigues depois de se olharem, arrastaram cadeiras e sentaram-se junto a seu
lado.
— Ele?
interrogou Rodrigues.
— Não vos
lembrais, disse o Barão (ainda não há dez meses que o viste) de um homem magro,
alto, moreno, com a cara toda cheia de sinais de bexigas, e que todo vestido de
preto nos acompanhou de nossa casa à igreja, na tarde do meu casamento?
— Tenho
algumas reminiscências.
— Apanhou um
resfriado no mesmo dia que eu, na mesma ocasião que eu, e pelo mesmo motivo que
eu; pois fomos a um enterro em Santo Antônio, e quando descíamos a ladeira, a
chuva que caía a cântaros...
— E depois?
— Ele tinha
consumido tudo quanto era seu; e desamparado de todos, não teve outro recurso
que a Santa Casa de Misericórdia! Meu Deus! tua justiça não é uma quimera,
ajuntou ele escondendo a cabeça entre as mãos.
Anselmo
julgou dever calar-se; Margarida, com os olhos fitos em seu marido, procurava
penetrar a misteriosa causa de súbitas exclamações, ou de horrendos pesadelos;
e o nome de Cecília, fixo em sua imaginação, parecia guiá-la em suas pesquisas.
O velho
interrogou a filha com um olhar expressivo.
— Prossegui,
disse ela a seu marido, ávida de penetrar-lhe os segredos.
— Esta
manhã, continuou ele, fui, segundo a minha devoção, à Santa Casa de Misericórdia,
por ser sábado; ouvi missa, e depois visitei as enfermarias; corri todos os
leitos um a um, consolando os pobres enfermos com minhas esmolas, já que não
lhes podia dar a saúde, bem que só sabemos o que vale quando já não a podemos
alcançar!
— É verdade,
ajuntou Rodrigues lembrando-se de suas dores reumáticas.
— E logo que
entrei na enfermaria dos tísicos, ele se me apresenta!... Estendeu-me a mão, já
mal falava; o capelão à sua cabeceira, esperava o seu último instante. Imóvel,
como os olhos fitos em seus olhos, eu lia em sua alma, e meus joelhos se
dobraram insensivelmente.
— Um Padre
Nosso por sua alma, bradou o capelão.
— Ele tinha
expirado, e aqueles olhos voltados e ainda abertos para mim, e aquela boca, não
fechada de toda, com que ainda me falava... Oh! que tudo isto me comoveu
bastante!
— Mas quem
era esse homem? em que se ocupava ele que foi a morrer a um hospital? perguntou
a Baronesa.
— O fosso
dos desgraçados o encerra para sempre; a terra da vala comum o cobre; e eu
ainda o vejo, e eu ainda escuto a sua voz rouca e solene a bradar-me lá da
eternidade:
— E também tu,
também tu, Manuel Luís!
— Mas para
que pensar nessas coisas? disse o sogro.
— Sim, eu
quero me distrair; e é por isso que insisto contra o parecer da Sra. Baronesa
em dar o sarau, e que ele seja hoje.
— Mas há
tantas outras distrações, ajuntou Rodrigues.
— Já agora,
disse Margarida, deixai que ele satisfaça o seu gosto; quer que haja baile,
pois haverá; não tomará parte nele como eu não tomarei, mas ao menos terá a satisfação
de ver aqui reunidos todos os seus amigos. Não é assim, Sr. Barão?
— Sim,
respondeu ele sem notar na súbita mudança da opinião de Margarida.
— Pois muito
bem, acrescentou Margarida; agora que sei a causa de vosso mal, aprovo as
distrações; elas vos convêm; não pouparei pois todos os meios de procurá-las; é
o moral e não o físico que sofre!
—
Agradecido, balbuciou friamente o Barão reclinando a cabeça no espaldar da
poltrona.
— Meu pai,
ele quer dormir.
— Pois então
deixemo-lo sossegar.
Soaram duas
horas no relógio do salão.
— Daqui a
seis horas! murmurou Margarida consigo.
E saíram
ambos.
CAPÍTULO 5: VER E AMAR
— Este amor
De terna loucura.
Só louca ternura
M'o pode pagar.
— Pois bem, serei louco...
João de Lemos
Vasto salão, tapizado tal qual se a terra lhe rebentasse em flores; papel tingindo azulada seda achamalotada, e claro teto de estuque dourado e recamado de arabescos; portas e janelas guarnecidas de cortinas de ricas cambraias; majestosos tremós, belas e soberbas cadeiras de polissandra, divãs e poltronas de molas, e mil luzes em profusão pendentes do teto e presas às paredes; eis o recinto onde reinava o prazer e a alegria, a música e a dança, a esperança e também o — remorso!...
A orquestra
parara; e após a primeira contradança que tivera lugar, seguiu-se essa confusão
tão bela e interessante, em que grupos e grupos de cavaleiros e damas se
encontram em todos os sentidos, passeando pelo salão.
— Senhora
Baronesa, Deus vos salve! disse um jovem que trazia uma linda menina pelo
braço.
— Deus vos
salve, Sr. doutor! respondeu a Baronesa.
— E também,
ajuntou o doutor, a vosso marido.
— E também,
acrescentou a Baronesa, a vossa noiva.
Henrique
prosseguiu com a linda menina, cujas faces se enrubesceram como duas pétalas de
rosa, e Margarida, conduzida pelo braço do Barão de Itaíba, penetrou por entre
a confusão e foi procurar um assento ao lado de seu marido.
— Já vos fiz
a vontade, disse ela; dancei, e não dançarei mais.
— Pudesse
eu! exclamou o Barão.
— Senhor
Barão, disse Margarida batendo-lhe de leve no ombro, há aqui pessoas que não
convidadas.
— São
agregadas aos convidados; isso acontece nas grandes reuniões; acodem ao cheiro
da festança; querem folgar e dançar, e como se lhes proporciona a ocasião...
— Sim, mas
aqueles que vêm para estar amuados e tristes a um canto da casa?
— Gostam de
ver!
— Oh! antes
ficar em casa... Vede aquela menina que nem sequer sabe dar uma palavra, e que
está tão admirada de tudo quanto vê, que creio que tem contado todas as luzes.
— É que
nunca viu tanta gente, disse o Barão dissimulando.
— Senhora,
disse Henrique aproximando-se da Baronesa, se vossa excelência ainda não tem
par... e se me dá a honra...
— Não danço
mais, respondeu Margarida abaixando os olhos e deixando-se trair pelo colorido
das faces.
— Como ainda
há pouco a vi...
— Dancei
para satisfazer a meu marido, o Sr. Barão.
— Doutor,
disse o Barão, a senhora não quer dançar; mas não faltam pares: olhai, vede
aquela menina como está ali tão sozinha.
— Talvez não
saiba dançar, disse Henrique.
Margarida
ergueu os olhos e fitou-os em Henrique que sentando-se ao lado do Barão, ficou
entre ele e a Baronesa.
— Sim, não
saberá, respondeu o Barão; mas o que é a dança para uma senhora tendo um bom
cavaleiro? Eu que nunca soube dançar, observava os pares marcantes, fazia o que
via fazer, e ainda assim a dama me guiava, pois deixava-me ir como que
distraído.
— Pois bem;
vou explicar-lhe essa boa lição, e veremos como ela se sai.
Henrique
aproximou-se da senhora, que não teria mais que quatorze anos, pálida, e cujos
olhos grandes nada tinham de brilhantes e expressivos; falou-lhe, e ela,
imediatamente abaixando os olhos, fez sinal negativo com a cabeça.
O doutor
sentou-se e continuou a falar-lhe, e a pálida mocinha ergueu os olhos e os
dirigiu para o lado do Barão.
O Barão,
como que compreendesse o que lhe estava a dizer o jovem doutor, acenou-lhe com
a cabeça afirmativamente.
Margarida
não deixou escapar esse movimento.
— Não há
dúvida, disse ela consigo, é Cecília.
A orquestra
deu o sinal para a contradança; Henrique ofereceu o braço à sua nova dama, e um
sorriso de alegria derramou-se fugitivamente pelas faces do Barão; a Baronesa
que observava tudo atentamente ergueu-se, e caminhava, quando um jovem bacharel
lhe veio oferecer o braço.
— Onde
quereis que vos conduza, excelentíssima senhora?
—
Passearemos e sentar-me-ei depois junto de D. Carolina, que segundo todas as
aparências...
— Acabai,
disse o bacharel deixando-se conduzir pela Baronesa e sem mais saber o que lhe
devia dizer.
— Ela vos
ama, disse Margarida afetando pouco interesse.
O bacharel
calou-se, e Margarida lançou rápido olhar pelos pares postados em seus lugares
à espera que a orquestra começasse.
— Aqui,
disse ela sentando-se numa cadeira e agradecendo ao bacharel o seu favor.
— Logo aqui,
disse uma linda menina, de pé, à sua frente e ao lado de seu cavaleiro.
— Sim, D.
Carolina, respondeu a Baronesa; não estou bem? Talvez que vos incomode, não?
— Em quê,
Sra. Baronesa?
— Porque o
vosso par já não é o mesmo, e...
— Oh! percebo!
se percebo! Maliciosa!
— Tendes uma
penetração...
— Melhor é a
vossa; ainda agora era eu noiva do doutor Henrique, e já agora sou do meu
cavaleiro, não?
— Não.
— E então?
— Eis aí a
prova de que não tenho penetração; e não me enganei? Vede o doutor com sua
noiva, que estreia agora na dança e que tem cinquenta contos de dote, e
entretanto que...
— Quem,
aquela menina?
— D.
Cecília.
— De que
família?
— Veio do
Recolhimento.
— E tem
cinquenta contos de dote?
— Se
Henrique se casar com ela; outro qualquer não.
— A
contradança começa, Sra. Baronesa, disse Carolina, dirigindo-se ao encontro da
outra dama, tão confusa porém, que levou a confusão aos seus vis-à-vis, que se
recolheram aos seus lugares sem saber o que dançavam. Rindo-se por dissimulação
do mal que causara, volveu a bela menina os olhos e buscou a Baronesa que se
havia retirado; percorreu o salão e viu-se sentada por detrás de Henrique que
conversava risonho com Cecília.
— Ah! ela o
desfruta, e mofa de mim ao mesmo tempo!
— Senhor doutor,
disse Margarida à Henrique, eu vos dou os parabéns, sois um excelente mestre de
dança.
— São lições
antes de vosso marido, o... o Sr. Barão, ajuntou Henrique, não sem malícia.
— Ai!
exclamou Cecília pisando na fímbria de seu rico vestido de seda e rasgando-a,
foi-se o meu vestido novo!
— Continuai,
disse Henrique, não façais caso, que ides muito bem.
— Doutor,
disse a Baronesa, logo que termine a contradança, tende a bondade de conduzir a
vossa dama ao toucador.
— Sim,
respondeu Henrique, é necessário.
Margarida
correu a esperá-la, e finda a contradança, Carolina, conduzida pela braço de
seu cavaleiro, passou junto de Henrique.
— Deus salve
a vossa noiva, disse ela; não é a Baronesa, sou eu que vo-lo digo, Sr. doutor!
Henrique
empalideceu; e oferecendo o braço a Cecília conduziu-a até a porta do toucador.
— Ide
depressa, Sr. doutor, murmurou Margarida aproximando-se da porta, que o
bacharel Segismundo trata de vos roubar a bela Carolina, e menina dos olhos do
Sr. de Itaíba.
Henrique
voltou; trazia gravadas no pensamento as palavras com que Carolina saudara a
sua noiva e as palavras da Baronesa, e achou-se já enredado nessas intrigas sem
conhecer-lhe o manejo; Segismundo estava sentado ao lado da filha do Sr. de
Itaíba, rico negociante de carne seca, num tête-à-tête, e a Baronesa, que
ficara à espreita, retirou-se para dentro do toucador, certa de seu triunfo.
Dirigiu-se
então Cecília, à que estava a mirar-se num elegante e soberbo tremó;
imprimiu-lhe um beijo nas pálidas faces, tomou-a pela mão, e empurrando sobre
si uma portinha que à primeira vista mal se conhecia, forrada de papel como a
parede, levou-a para um quarto escuro como a noite.
A Baronesa
carregou sobre a mola de um vaso, e luminosa chama derramou a claridade do dia
pelo pequeno aposento; pegou de uma palmatória e acendeu a vela da chama, que
cessou de brilhar, o que encheu de pasmo a Cecília, e colocou depois a
palmatória sobre um guéridon.
—
Sentemo-nos, disse ela oferecendo um lugar numa conversadeira.
Cecília
lançou os olhos em torno de si e sentou-se, ficando face a face com a Baronesa.
— Sabeis
quem eu sou? lhe perguntou ela.
— Não,
senhora.
— Pois igual
ignorância é a minha a vosso respeito; sou a dona desta casa, vós uma visita, e
entretanto não nos conhecemos! Com quem viestes?
— Eu tive
ordem para vir; meteram-me numa sege e conduziram-me para aqui.
— Donde
viestes?
— Do
Recolhimento.
— Mas não
vos disseram nada, não vos explicaram coisa alguma?
—
Disseram-me que era para ver um moço que deseja casar-se comigo.
— Quem é
ele?
— O Dr.
Henrique.
— Gostais
dele?
— Não,
senhora.
— Pois não é
um moço elegante?
— Muito.
— E então?
Cecília
calou-se.
— Amais a
alguém? Dizei-o sem vexame.
Cecília
corou, e Margarida como que vitoriosa respirou largamente.
— Amais, eu
sei: ele está aqui, não?
— Está,
respondeu ela abaixando os olhos e apertando as mãos.
— Como se
chama?
— Rafael.
— E vos ama?
— Não.
— E então?
— Mas...
— Pois bem,
eu farei a vossa felicidade, D. Cecília; mas é necessário que faleis ao Sr. Barão
como me falais; se responderdes que amais a Henrique, sereis mais desgraçada do
que foi a vossa mãe.
— Minha mãe!
repetiu Cecília em seu coração, essa palavra tão mágica!
Margarida
pregou a barra do seu vestido com alguns alfinetes, e disse-lhe que podia sair.
Um moço
alto, de rosto claro, que contrastava com negro bigode e que passava,
ofereceu-se para conduzi-la.
— Dançareis
comigo, D. Cecília, disse ele.
— Sim, Sr.
Rafael, respondeu ela corando e abaixando os seus amortecidos olhos.
Margarida veio
sentar-se junto do Barão. Henrique aproximou-se.
— Então,
doutor? interrogou o Barão.
Henrique
sentou-se a seu lado; a Baronesa, desviando os olhos, prestava todavia atenção
à conversa que se ia travar.
— Nada sabe
deste mundo; é simples, mas cândida, e essa candidez...
— Estais
meio tentado?
— Sim, meio
tentado.
— Pelos
cinquenta contos, murmurou o Barão consigo.
— Pelo pouco
que já mereço de Carolina, disse também Henrique em seu pensamento.
— Pois é
preciso, ajuntou o Barão, que não haja demora; quero tirá-la quanto antes
daquela casa, a cujo regime tem se sujeitado há tanto tempo sem queixar-se, e
que não é lá dos melhores.
— Sim, é
preciso.
— E será a
vós que deverei tamanho favor, doutor!
— Mas que
não pagarei jamais os que mensalmente recebo de vós!
— De mim?
exclamou o Barão, e retorceu-se na cadeira como se uma punhalada o tivesse
ferido.
— Sim, vossa
generosidade é grande para que possa se esconder, ela é como a luz do sol que
se não oculta.
— Bem, disse
o Barão dissimulando a dor que sentia, pelas vossas expressões fico certo do
vosso desígnio.
— Ficai.
— Então até
amanhã.
— Até
amanhã, excelentíssimo.
Ergueu-se o
Barão vagarosamente e retirou-se para o seu aposento, seguido de Anselmo
Rodrigues e do Barão de Itaíba, e Margarida acompanhando-os tornou a voltar daí
a alguns instantes. Dançava-se já pela última vez, e Cecília era a dama de
Rafael; Margarida, conduzida pelo braço do bacharel, que outras honras não
almejara durante essa noite, passou por junto dele.
— Rafael,
disse ela baixinho, eu te preciso falar.
— Quando,
senhora?
— Hoje
mesmo, depois de tudo concluído.
— Em que
lugar?
— Aqui.
— Então...
— Deixa-te
ficar. A Baronesa prosseguiu.
— Senhora,
disse o bacharel depois de longo estudo, sois muito perspicaz; adivinhais.
— Vejo,
acudiu a Baronesa.
— Ela me
ama, e eu ainda não o sabia!
— Bom,
murmurou consigo Margarida, e dirigindo-se a Segismundo, acrescentou:
— E vós,
senhor?
— Eu também
amava-a, mas temia dar-lhe a saber isso mesmo.
— À mulher a
dissimulação, ao homem o atrevimento, Sr. Doutor.
— É verdade.
— Pois
casai-vos quanto antes; é bela e rica... ora, filha de um Barão... e de nossa
terra!
— E eu
também tenho alguma coisa, ajuntou o bacharel.
— E podeis
ser também Barão, não é assim?
— Ao menos
já tenho o Hábito da Rosa, disse o bacharel mostrando a fita rosada da casaca,
e Margarida sorriu-se ligeiramente. Chegados de junto a Henrique que se
recostava sobre o divã, a Baronesa agradeceu ao espirituoso bacharel, que se
pôs em procura de Carolina, e sentou-se ao pé do jovem doutor.
— Ver e
amar! disse ela.
— Vi e
amei-vos também, repetiu ele.
— Pedi a
Deus que outro vo-la não roube.
— Como
roubaram-me a outra para fazerem-na Baronesa.
— Título
vão, e bem vão! repetiu ela suspirando e deixando cair uma lágrima.
Henrique
suspirou, mas ah!... ele não a compreendeu!
CAPÍTULO 6: RAFAEL E CECÍLIA
N'ayons à deux qu'un espoir!
V. Hugo.
Já todos os convidados se haviam retirado, e Rafael, em frente de Cecília, aguardava a Baronesa que havia acudido ao chamado do Barão, que assaz se lastimava da indiferença com que havia sido tratado pela aristocracia, pois que apenas o Sr. de Itaíba, Barão sem grandeza, havia comparecido.
— Já não
falo, dizia ele, dos aristocratas soberbos de o serem pelo seu nascimento ou pelos
serviços prestados à pátria no tempo da independência; porém esses que
alcançaram o seu título como eu, oh! é muito...
— Eles se
chegarão, respondeu a Baronesa, tão depressa junteis ao título as honras de
grandeza.
— Eu não as
quero mais; ambicionamos, fazemos sacrifícios por elas, mas afinal o que são
essas honras, o que valem essas grandezas? A sociedade que sabe a maneira
porque elas se generalizam, também sabe dar-lhes o devido desconto. Meus
hábitos, minhas comendas, meu baronato, tudo isso dava eu de boa vontade pelo
que eles não me podem outorgar: — a saúde!
— Essa virá
pouco a pouco.
— A morte,
sim, disse o Barão deixando cair a cabeça sobre o travesseiro do leito em que
pousava.
— A
apreensão é que vos mata.
— Cecília
ainda está aí?
— Quem?
disse a Baronesa dissimulando.
— Uma pobre
menina do Recolhimento, de quem sou padrinho, e que fiz comparecer neste baile
para... para desenvolver-se.
— Aí está.
—É tarde
para partir; deve dormir conosco e ir amanhã; já dei as minhas ordens ao nosso mordomo
para que a sege esteja pronta.
—Nada mais
quereis?
—Não,
Baronesa, senão que a tua melancolia se dissipe como esta noite... Estavas tão
animada, tão alegre!
—As
distrações...
— Nem sempre
elas triunfaram da mortal melancolia que te acompanha, como hoje. Mas ainda bem
que a esperança te volta; eu só tenho uma página no livro da minha vida, que só
me restaler o terrível fim! Vai ver Cecília, e que não parta sem a minha
bênção.
— Não partirá mais.
— Como
assim, Margarida?
— Simpatizei
com ela; fiquei-lhe querendo tanto bem... e demais, é tua afilhada... Tenho já
o que tanto desejava: — uma companheira.
— Como
quiserdes; mas nesse caso convém dar as providências necessárias para que o
consinta o mordomo da Santa Casa.
— Rafael se
entenderá com ele, amanhã, da vossa parte.
— Muito bem.
A Baronesa
saiu, chegou ao salão, tocou num timbre, e a sonora pancada se repercutiu pela
casa: apareceu uma negra.
— Apronta
depressa uma cama no meu quarto de dormir para a Sra. D. Cecília, e dize a
Isabel que me venha falar.
Sentou-se a
Baronesa no divã assaz fatigada; acenou para Cecília, e fê-la sentar-se ao seu
lado.
— Senhor
Rafael, disse ela, amanhã dirigir-vos-eis ao quarto do Barão a receber as suas
ordens a respeito da Senhora. Sabe, Cecília, disse ela com suavidade carregando
neste nome, Cecília, pois que de hoje em diante serás minha filha, sabe que
esta casa é tua, e que nunca mais sairás daqui senão para casar.
O semblante
de Cecília resplandeceu de alegria, mas duas lágrimas se deslizaram pelas suas
pálidas faces:
— Sei,
continuou a Baronesa, que ser-te-á dolorosa a lembrança de tuas amigas, mas a
vida enfadonha que ali se passa far-te-á com que delas te esqueças por melhores
amigas.
Isabel
apareceu.
— Aqui está,
acrescentou ela, uma mucama para te servir; amanhã terás um aposento teu na
nossa casa das Laranjeiras, onde encontrarás tudo; mas eu espero de ti um favor
em paga de tudo isso.
Margarida
acenou para a escrava que se retirasse.
— Falai,
Sra. Baronesa, disse Cecília.
— Sim,
dar-me-ás esse tratamento; és uma afilhada de meu marido, e podê-lo-ás dizer a
todo o mundo; e em tempo mais conveniente instruir-te-ei da história do teu
nascimento.
— Ela o
saberá por mim, murmurou Rafael consigo.
— Quer o Sr.
Barão casar-te, mas contra a tua vontade; amas a Rafael, e é Henrique que te
destinam para esposo; se lhe disseres que não queres, é uma declaração de
guerra; ver-te-ás de novo encerrada entre as paredes do Recolhimento que nem
uma emparedada; se lhe disseres que sim, esposarás o homem que não é da tua
afeição, e deixarás Rafael, que te ama, privado de tua mão e para sempre!
— E nesse
caso o que cumpre fazer, Sra. Baronesa? interrogou Rafael.
— Ninguém
melhor do que vós, Sr. Rafael, que viveis em contato com o Barão, que sois o
seu guarda-livros, sabeis o que é mais conveniente.
— Ganhar
tempo?
— Sois muito
perspicaz, e até demais! Cumpre pois que sejais também em demasia prudente.
— Sê-lo-ei,
excelentíssima senhora.
— Pois sim.
Percebes, Cecília? disse ela voltando-se para a menina.
— Otimamente.
— Bem.
Margarida
colocou o dedo sobre a mola do timbre, e o som argentino repercutiu-se pelo
salão: apareceu a mucama.
— Acompanha
a senhora moça para o meu quarto.
Cecília saiu
seguida da negra, cumprimentando ligeiramente a Baronesa e Rafael.
— Mordomo!
— Ele dorme
ali no corredor sobre o banco.
— Pobre
velho! ajuntou Margarida; fazei o favor de acordá-lo, e dai ordem que se
apaguem estas luzes, e que a condução esteja pronta amanhã às dez horas, para
nos levar à chácara.
Margarida
saiu, e Rafael acordou o velho pardo, que veio ajudar-lhe a apagar as luzes, e
deixando apenas uma, retirou-se com ela para o seu aposento, que ficava vizinho
ao do Barão; o guarda-livros foi arrojar-se ao seu leito, todo preocupado de
Cecília.
— Para
Henrique, dizia ele consigo, que não para mim, senhor de seu segredo, que pago
por minha mão uma mensalidade pontualmente destinada para ela! Que procurei
amá-la, que busquei ser visto por ela através das grades de uma janela,
passando todas as tardes pelo Recolhimento! Para Henrique! que nunca a viu, que
nunca soube da existência de semelhante criatura! Que mistério se envolve nesse
projetado casamento! Henrique foi seu rival, e prestes a despenhar-se na
sepultura, é quando o Barão ainda se lembra dele para casá-lo com sua filha!
Não contente com a pródiga mesada que dá para nutrir-lhe o ócio, para
alimentar-lhe a mania pelo jogo, para sustentar-lhe os vícios, ainda a filha e
cinquenta contos de dote, e talvez o reconhecimento, e depois metade de toda
essa imensa fortuna!
Por outro
lado desconfiava Rafael da proteção da Baronesa, ela que havia amado Henrique!
Conjecturava e pouco depois pensava que o ciúme ainda lhe abrasava o coração, e
que o Barão era igualmente afetado do mesmo mal.
Lembrava-se
de uma conversa que tivera com Henrique acerca de seu amor para com Carolina, e
não podia compreender a súbita mudança senão encarando o atrativo do dote e a
ideia de uma herança ainda maior; a esperança de ver-se na posse das riquezas
com que sonhara outrora.
E nestas alternativas
adormeceu.
CAPÍTULO 7: UM RAPTO
Asi, que fiandome yo de un hombre de tanta
honra,
me haya enganado tain malamente! Ah! don traidor.
Lope de Rueda.
Há três dias que o Barão habitava na espaçosa casa das Laranjeiras; há dois dias porém que o mal se lhe agravara de uma maneira espantosa: estava prostrado em seu leito, e já não se levantava, e na razão que a enfermidade progredia, que o receio e o pavor da morte se lhe iam diminuindo, Margarida não se tirava de seu lado, e o Barão tinha por mais de uma vez lhe pedido que fosse dispondo tudo para que se fizesse o seu testamento.
Sem filhos,
ela temia que metade de sua fortuna caísse nas mãos de Cecília, pois que Manoel
Luís não tinha herdeiros, a menos que não quisesse lembrar-se de remotos
parentes, cuja ausência tão prolongada os tinha lançado em esquecimento; e
ajudada por seu pai, pretendia distraí-lo, dando-lhe esperanças de próximo
restabelecimento.
Havia o dia
amanhecido em extremo belo, e Margarida distinguiu pela janela do Barão,
através dos arbustos floridos do jardim, a figura elegante de Henrique, o qual
entrou e foi conduzido ao quarto do Barão; e cumprimentando-o sentou-se junto
do leito do aristocrático enfermo.
— Como vos
achais?
— Não estou
bom, disse o Barão apontando para a escarradeira; neste instante deitei algumas
golfadas de sangue. E vós, doutor?
— Graças a
Deus, vivo na melhor disposição possível.
O Barão
suspirou profundamente.
— Doutor,
disse ele, isto está por um fio; seria bom ultimarmos o nosso negócio.
— Essa é a
minha intenção.
— Sim, a
dúvida não é vossa, mas a menina...
— Não quer?
— Nem o
deixa de querer, vaga numa alternativa completa; ainda não a compreendi.
— Talvez que
se eu lhe falasse...
— Vou
mandá-la chamar.
— Não: eu
queria particularmente...
— Proporcionar-vos-ei
ocasião; jantareis conosco, e à tarde passeareis com ela pelo jardim.
— Pois bem.
Anselmo
Rodrigues entrou com o seu estudado bom modo.
— Ó meu
excelente sogro!
— Meu Barão!
Margarida
ergueu-se para beijar-lhe a mão; Anselmo sentou-se, um pouco retirado, em um
sofá de palhinha.
— Pensava em
vós.
— É porque
estava a entrar em vossa casa.
— Não: é
porque ia falar de meu testamento.
— Ora,
deixai isso para a velhice.
— Essa já
não me apanha cá.
— Não se
perde nada, disse Henrique; é coisa que depois se reforma; eu sempre recomendo
aos meus doentes que se reconciliem com Deus e façam as suas disposições,
porque elas não matam e devemos estar sempre prontos para morrer.
— Amanhã,
disse o Barão, devo me confessar; já dei ordem para que o Frei José de Santa
Genoveva seja avisado.
— Lá isso,
observou Anselmo, é caso diferente.
— Mas seria
bom que eu sempre fizesse o meu testamento, ponderou o Barão: o Dr. Silva que
me disse que podia e era bom que me confessasse, também achou que o deveria
fazer.
Rafael
entrou depois de haver pedido licença, e dirigiu os seus cumprimentos.
— Deveis
fazê-lo, ajuntou Henrique, tanto mais que...
— Que Rafael
ama à Cecília, disse a Baronesa a Henrique em voz muito baixa, debruçando-se
sobre a cabeceira do Barão, fingindo endireitar-lhe os travesseiros que
apoiavam-lhe a cabeça.
Henrique
empalideceu.
O Barão
olhou para a Baronesa com interrogação.
— Eles se
amam, murmurou ela.
O Barão
fitou expressivo olhar em Rafael, a Baronesa saiu; e Anselmo seguiu os passos
da filha.
Rafael como
que fulminado por um raio, lia a cólera nos olhos do Barão, e não podia
compreender o que se passava em torno de si.
— Senhor
guarda-livros! tendes abusado excelentemente da confiança que depositei em
vossa mão. Senhor de meu segredo, amais a minha filha, captais-lhe o amor,
talvez sonhando que metade de meus bens passarão a vosso poder.
— Senhor
Barão...
— Eu não
admito a menor reflexão, interrompeu o Barão metendo a mão por baixo do
travesseiro e tirando de uma chavinha.
Rafael
estremecia de raiva.
— Fazei o
favor de abrir aquela secretária. O moço tomou a chave e abriu-a.
— Bem, disse
ele, nessa primeira gavetinha do lado esquerdo tem uma carteira com dinheiro.
O
guarda-livros entregou-lhe a carteira; o Barão contou algumas notas do tesouro
e entregou-lhe.
— Aqui
tendes o vosso ordenado, Sr. Rafael, que ainda há de vencer no fim deste mês.
— Então
estou despedido? perguntou Rafael deixando cair algumas lágrimas.
— Sim,
respondeu o Barão friamente, e Deus queira que vos aproveite a lição. Adeus!
Rafael saiu.
— Bom, disse
a Baronesa que nada tinha perdido desta cena, tudo caminha à medida de meus
desejos; e tomando o desconsolado guarda-livros pela mão, conduziu-o para uma
saleta, onde Anselmo a esperava.
Poucos momentos
depois Henrique meteu-se em sua sege e partiu.
— Onde irá
ele? disse a Baronesa.
— Sem dúvida
vai buscar o tabelião e as testemunhas para o testamento.
— Meu pai,
disse Margarida, aqui só há um meio para salvar-nos.
— E qual?
perguntou Anselmo.
— Não há nem
um, respondeu Rafael, porque vossa excelência acaba de divulgar tudo.
—
Salvei-vos, disse ela, perdendo-vos.
— Como
assim, senhora?
— Chama-me o
Barão, disse a Baronesa ouvindo o timbre e correndo para o quarto.
— Quero um
caldo, estou muito abatido, murmurou ele.
— Bem.
Margarida
tocou a campainha, a que acudiu um pajem negro.
— Um caldo
para o senhor.
O pajem
saiu, e voltou daí há pouco com o que se lhe pedira.
— Henrique?
perguntou a Baronesa.
— Foi buscar
um tabelião; quero fazer minhas disposições.
O Barão
tocou de leve na chávena e largou-a.
— Não quero;
tudo me enjoa, disse ele escarrando e retirando os olhos da escarradeira com
aflição.
— O que
tendes?
— Sangue!
Sempre sangue! murmurou ele, e calou-se por algum tempo; no entanto que
Margarida ardia no desejo de voar ao encontro de Rafael e seu pai.
— Cecília?
interrogou o Barão.
— Borda.
— Rafael?
— Creio que
saiu, e, se me não engano, ia chorando.
— E teu pai?
— Eu vou
chamá-lo.
Margarida
precipitou-se na saleta onde Rafael e Anselmo a aguardavam na maior ansiedade.
— Não tenho
tempo que perder, disse ela; o tabelião não tarda, e o Barão não me quer senão
a seu lado; é preciso que adoteis uma resolução.
— Mas qual?
interrogou Rafael. E demais, se Cecília não se casar com Henrique, como me
prometestes, que medo tendes do testamento?
Margarida
estremeceu; seu olhar rápido e brilhante penetrou no fundo do coração de
Rafael, e viu toda a sua imensa ambição.
— O Barão,
acudiu ela, compenetrada de uma ideia que lhe veio em socorro, quer que o
casamento se efetue depois do testamento; e hoje mesmo Henrique deve esposá-la;
Cecília, que ainda não sabe que é sua filha, não se há de recusar a isso quando
ele lhe fizer saber que parte de tanta fortuna lhe deve pertencer; ele já perguntou
por ela, sem dúvida porque a quer ter presente no ato do testamento para a
consultar.
—
Certamente, afirmou Anselmo, admirando mais e mais a habilidade de sua filha.
— Eu vos
garanto cinquenta contos de dote, Rafael, disse Margarida; mas é necessário que
fujais com Cecília, e já.
— Como?
— Na sege de
meu pai; e deveis depositá-la em ua casa no largo da Lapa, onde ele vos irá
encontrar daqui a instantes; dareis todos os passos, e antes da noite devereis
estar casados.
— Sim, disse
Anselmo ainda mais admirado, é a única resolução que temos que tomar.
— Já agora
eu me submeto a tudo, disse Rafael, as cumpre que Cecília queira. Quererá?
Soou o
timbre.
— Oh! é
verdade, disse Margarida: meu pai, o varão vos deseja falar.
Anselmo
chamou o seu boleeiro, murmurou-lhe em voz baixa algumas palavras, e dirigiu-se
para o quarto do Barão.
— Agora,
disse Margarida a Rafael, vou falar a Cecília; esperai aqui.
E pouco
depois partia a todo galope o carro de Anselmo, levando o tejadilho erguido e
as cortinas caídas.
CAPÍTULO 8: QUERO FAZER TESTAMENTO!
Margarida
entrou no aposento do Barão e olhou para seu pai, que compreendeu perfeitamente
a expressão de seus olhos.
— Se eu
pudesse dormir! disse o Barão.
— E por que
não dormes? perguntou Anselmo. Queres que feche a janela? Talvez que a
claridade...
— Não, eu só
desejo sossego, mas ele me foge; o ar me falta, não posso respirar.
— Não tendes
tomado alimento algum; estais muito debilitado.
— Ah!
Margarida, o que hei de eu tomar se tudo me sabe mal? Dá-me água com açúcar.
Margarida
apresentou-lhe o copo, e o Barão sorveu algumas gotas e largou-o logo;
voltou-se para a parede e tranquilizou-se algum tanto.
— Dorme?
perguntou Anselmo.
— Não,
respondeu Margarida que estava debruçada à sua cabeceira, está mais tranquilo,
porém não dorme.
O Barão
soluçou; Margarida fitou os olhos em seu pai; Anselmo, levando o dedo polegar
aos lábios, fez um ligeiro sinal; e Margarida, aterrada, veio sentar-se a seu
lado.
Havia já uma
hora que Henrique tinha partido, e a demora era apreciada por Margarida, quando
ouviu-se o ruído de um carro que parava à porta.
Depois
entrou Henrique com mais três homens, que vinham como ele, vestidos todos de
preto.
— Licença,
Sr. Barão.
O Barão
voltou-se. Margarida procurou dissimular a sua perturbação.
— Oh! Sr.
Anselmo, ainda por aqui!
— Pois
então, meu caro doutor, contáveis-me já no número dos ausentes? tornou-lhe
Rodrigues com cerimônia.
— Não é
porque vos não deseje aqui.
— Pois
pensei...
— Mas sim
porque encontrei o vosso carro perfeitamente fechado, e ainda mais, com toda a
velocidade, levando caminho da cidade.
— Estais
enganado, disse Rodrigues, ocultando a satânica alegria que se apoderava de seu
coração.
— Qual
enganado; e tanto assim é que me admiro de vos ver aqui, não estando à porta o
vosso carro.
— Falais
sério ou gracejais?
— Pois
averiguai o caso.
— Eu bem vos
entendo, disse o velho mordendo os beiços, e saiu.
— Esta é
célebre! disse o Barão.
Henrique
sentou-se, e o mesmo fizeram aqueles que o acompanhavam.
— Cecília?
interrogou o Barão.
— Vou mandar
chamá-la, respondeu a Baronesa ocultando a sua perturbação.
Margarida
pôs o dedo sobre o timbre, que soou; chegou à porta e disse algumas palavras a
alguém que acudiu ao reclamo.
— Senhor
Barão, Sr. Barão, entrou gritando Anselmo, e que tal?
— O que
houve?
— É verdade,
meu pai? interrogou a Baronesa.
— Coisa
célebre! O carro foi-se; e sabeis com quem? com Rafael e Cecília!
— E Cecília!
repetiu o Barão fazendo grande esforço para sentar-se.
— E Cecília!
repetiu também Henrique.
— Senhora
Baronesa, que contas me dareis de Cecília?
— Que
contas? perguntou Margarida em pé, apoiando-se por detrás de uma cadeira, que
contas?
— Não estava
ela confiada à vossa guarda, Sra. Baronesa?
— Senhor
Barão, vós bem podíeis ver que, quando uma mãe mal guardou sua própria filha,
porque vós a seduzistes, a enganastes, e prometendo conduzi-la ao altar, a
arrastastes para o leito da vossa concupiscência, menos eu poderia guardar a
filha dessa mulher, que foi vítima da brutal paixão de vossa alma.
— Margarida!
bradou o Barão desfalecendo sobre suas almofadas.
A Baronesa
voltou-se em seu socorro; e Henrique começou a empregar todos os esforços para
chamá-lo à vida.
—
Emprestai-me o vosso carro, disse Anselmo para o doutor; quero ver se ao menos
posso remediar o mal.
— Ide,
respondeu Henrique.
O Barão deu
ligeiros sinais de vida.
— Ele
respira, bradou a Baronesa.
— Tanto
melhor, ajuntou Rodrigues precipitando-se pela porta fora.
Henrique
estava pálido e seus lábios se contraíam de raiva.
— Cecília!
balbuciou o Barão como que da eternidade onde quase que o arrojara a síncope.
—
Retirai-vos, disse Henrique para os assistentes, bom é que ele não tenha novos
motivos para afligir-se.
— Eu fico,
respondeu a Baronesa com altivez.
— Não foi a
vós que me dirigi, Sra. Baronesa, redarguiu Henrique com azedume.
Os
assistentes saíram, e o Barão começou a recuperar os sentidos.
— Ainda não
veio? foi a sua segunda pergunta.
— Meu pai
saiu em sua procura.
— Há tempo
já?
— Sim.
— Tranquilizai-vos,
Sr. Barão; não vos lembreis mais disso: ao depois, ao depois.
— Ao depois,
quando já não for tempo!
Calou-se o
Barão, e pareceu sossegar algum tempo: estava prostrado de fraqueza, e
Margarida à sua cabeceira, e Henrique, sentado em frente, no pequeno sofá de
palhinha, o contemplavam pensativos.
Tinha
volvido largo espaço no maior silêncio, quando o velho pardo, a quem o Barão
dava o título de seu mordomo, pediu licença, entrou e entregou a Margarida uma
carta.
— Quem
trouxe?
— Um
boleeiro do Sr. Anselmo que acaba de apear-se neste instante.
Margarida
rasgou a obra, e leu em silêncio.
— Está bem,
respondeu ela ao velho, que saiu.
— É de vosso
pai? perguntou-lhe o marido.
— Sim, Sr.
Barão.
— E que
notícia nos dá ele de Cecília?
— Escutai.
E Margarida
leu:
Minha filha,
Minha filha,
Cecília
acha-se depositada em minha casa...
O Barão
respirou largamente; Henrique deu mostras de curiosidade, e Margarida
prosseguiu:
Rafael dá
todos os passos necessários para que seja hoje mesmo celebrado um casamento,
que, conquanto não seja talvez do gosto de vosso marido, é todavia dos noivos,
que muito se amam.
Henrique
deixou cair a cabeça sobre o peito.
— Prossegui,
disse o Barão tristemente.
Margarida
leu ainda as seguintes linhas:
Eu, longe de
me opor (o que seria uma sem razão da minha parte), apresso-me em comunicar a
meu amigo que darei todas as providências a fim de que se realize esse
casamento, única maneira de salvar as más aparências desse rapto.
Até à noite.
— Pois bem,
disse o Barão, ninguém perdeu senão eles. Meu Deus, que a tua vontade seja
feita!...
— Quereis
tomar alguma coisa? perguntou-lhe Henrique.
— O que há
de ser, doutor? Ide antes jantar com esses homens que vos acompanharam, e
podeis certificar-lhe da minha parte que estou resolvido a morrer sem
testamento.
Henrique
retirou-se.
— Margarida,
disse o Barão, fostes bastante áspera para comigo! Oh! como soubestes o meu
segredo?
— Da vossa
própria boca, de vossas exclamações, de vossos sonhos, de vossos pesadelos.
— Pois hem,
perdoai-me; vós me haveis de perdoar, não?
Margarida
calou-se.
— Nem
respondes! Cecília é minha filha natural; se eu a reconhecesse, parte dessa
imensa fortuna era para ela; fora isso porém premiar-lhe a desobediência que
praticou para comigo, e realizar os sonhos de Rafael, que tanto abusou da
confiança que nele depositei; porém vós a dotareis com cinquenta contos de
réis.
Margarida
fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Tenho
ainda outra disposição que cumprireis: o meu mordomo ficará forro, que não
quero que sirva a mais ninguém.
Margarida
inclinou ainda a cabeça.
— Dareis
esmolas aos pobres e aos enfermos da Misericórdia, e às órfãs e viúvas, segundo
a vossa generosidade; mandareis dizer missas por minha alma, e tudo o mais será
vosso, tudo o mais, perto de seis milhões! Viúva aos quinze anos, bela, nobre e
senhora de tanta fortuna, achareis mil pretendentes à vossa destra, e fareis a
felicidade de um homem que virá ocupar o meu lugar! Aos quarenta anos eu baixo
à sepultura, tendo tanto para gozar o mundo e sem poder! Ah!... Só Deus sabe o
porquê!...
Margarida,
enternecida, levou o lenço aos olhos para limpar as lágrimas que lhe caíam.
— Margarida,
prosseguiu o Barão, vós chorais? Bem, é que vossa alma é boa e sensível; é que
sois generosa, e a prova me haveis de dar. Quero uma promessa, e uma promessa
solene! É na hora da morte que vos peço, e aos moribundos se não falta!...
Margarida
estremeceu.
— Não
casareis... disse o Barão, e interrompeu para encará-la.
— Tremeis,
Baronesa!... disse ele com um acento terrível. Ah! como nossas almas se
compreendem! Sempre dele!...
O Barão
tocou no timbre e apareceu um pajem.
— O Sr. Dr. Henrique?
disse ele.
— Está à
mesa, respondeu o pajem.
— Dize-lhe
que mudei de tenção: quero fazer testamento.
O pajem saiu
e a Baronesa, abrindo uma portinha que comunicava o aposento do Barão com o
seu, retirou-se; e ganhando o corredor, deteve o pajem quando passava.
— Não digas
nada, disse-lhe ela ao ouvido.
E veio
sentar-se à porta do quarto onde estava o Barão.
Pouco depois,
Henrique, o tabelião e as testemunhas vieram-se despedir.
— Silêncio,
disse a Baronesa, ele dorme.
E eles
saíram pisando sobre as pontas dos pés.
CAPÍTULO 9: OS DOIS
Arcades ambo
O Barão,
estranhando a demora de Henrique, tocou o timbre; a Baronesa que se havia
postado de sentinela à porta de seu aposento, entrou trazendo um não sei quê de
confusão no olhar, que facilmente lhe traía o coração.
— Um
obséquio, Sra. Baronesa, disse ele para Margarida, tocai essa campainha.
A Baronesa
obedeceu; e o pajem que devia acudir àquele reclamo, se lhe apresentou.
— O Sr. Henrique?
— Já saiu.
— E os
outros senhores que jantavam com ele?
— Também
saíram.
— Saíram
todos! Não lhe deste o meu recado?
O pajem
conservou-se calado, e Margarida, dissimulando, deu alguns passos e postou-se à
cabeceira do Barão.
— Não lhe
deste o meu recado? insistiu o Barão com acrimônia.
Margarida
fez um sinal negativo para o seu escravo.
— Não,
senhor.
— E por quê?
tornou o Barão com aspereza. Margarida fez segundo sinal.
— Já tinha
saído já, sim, senhor, meu senhor, respondeu o pajem.
— E
entretanto nada me vieste dizer! Quem viu um viu todos!... Canalha!... Chama-me
cá o meu mordomo.
— Quereis
alguma coisa? interrogou Margarida.
— Quero
escrever.
Retirou-se o
pajem e veio logo o mordomo; e o Barão mandando aproximar uma mesinha pediu-lhe
que lhe desse tudo quanto fosse necessário para escrever; e o velho pardo
arrastando para o leito uma dessas ligeiras mesas de pé de galo, trouxe-lhe os
aprestos precisos.
— Que irá
ele escrever! murmurou Margarida consigo.
O Barão
forcejou, ajudado por sua esposa e pelo mordomo, para sentar-se, e começou a
escrever. Tremia-lhe a mão, e os caracteres grandes e trêmulos eram avidamente
lidos pela Baronesa.
O Barão
dobrou o papel e entregou-o a seu mordomo.
— É a
liberdade, ajuntou ele.
Daniel,
banhado em lágrimas, atirou-se de joelhos a beijar-lhe as mãos.
— É a
recompensa de muitos anos de bons serviços; mas isto não quer dizer que te vás
desta casa;ficarás até que eu morra... e isso será breve! Mas ao menos a mais
ninguém servirás!
—
Agradecido! agradecido! repetiu o mordomo.
— Meu bom
amigo, continuou o Barão, tu me serviste na vida como ninguém, e servir-me-ás
ainda na hora da morte.
Daniel só
respondia com soluços.
— Ninguém tenho
por mim senão tu, e se me deixares nesta hora, morrerei... Deus sabe como!
O Barão
volveu-se, e viu que a Baronesa chorava.
— A mulher
chora quando quer, disse ele consigo, misturando algumas lágrimas com as de
Daniel, que lhe umedeciam as mãos ardentes, e calou-se.
Margarida
compreendeu que o Barão necessitava falar a sós com o seu mordomo, e retirou-se
prontamente.
— Ninguém me
ouve? perguntou o Barão debruçando-se do leito.
O mordomo
ergueu-se e dirigiu-se para a porta que Margarida tinha fechado sobre seus
passos.
— Ninguém,
disse ele.
O Barão
apontou para a porta do seu aposento que comunicava com a da Baronesa.
O mordomo
encaminhou-se para ela.
Margarida
afastou-se, escondendo-se por detrás das cortinas de seu leito.
— Ninguém,
respondeu de novo o mordomo.
— Pois bem,
senta-te aqui.
O velho
sentou-se junto do Barão, que tornou a recostar-se nas suas almofadas.
— Hoje ou
amanhã, ou quando muito depois, disse o Barão, tudo se terá concluído; uma das
catacumbas do Convento da Lapa do Desterro, de que sou irmão confrade, bastará
para o palácio do teu Barão; tu ficas livre, e eu dou essa secretária com tudo
o que nela houver; a chave ser-te-á entregue sem que ninguém ouse abri-la para
examiná-la, ou que a examinem bem pouco se me dá. Ouves?
O mordomo
inclinou a cabeça levemente.
— Abre-a,
ajuntou o Barão dando-lhe uma chavinha.
O mordomo
ergueu-se e abriu-a.
— De um lado
e outro está cheia de gavetinhas; puxa a última. O que tem?
— Papéis,
muitos papéis.
— De nada
servem; agora fecha com força.
— Senhor,
ela tornou-se a abrir, e veio com ela...
— O quê?
— Outra
gavetinha, disse o mordomo admirado.
— É o
segredo; tem aí um maço envolto num papel impresso atado por linhas?
— Sim,
senhor.
— Pois põe
tudo como estava.
O mordomo
compeliu a primeira gavetinha sobre a segunda, que ganhou a sua misteriosa
colocação.
— Do outro
lado há o mesmo segredo, ajuntou o Barão; mas é necessário carregar na
gavetinha com mais força, porque a outra está cheia de barras de ouro, mas a
mola que a empurra é assaz forte para deixar de obedecer à mão que souber do
segredo.
— Tu o
dizes, Barão! murmurou Margarida.
— Todo esse
ouro é teu, que dou-to eu; aquele maço de papel, porém, esse me pertence; morto
eu, ele deve acompanhar-me à sepultura, e tu o queimarás sem que ninguém o
veja, nem jamais o saiba.
—
Obedecerei.
— Bem; agora
tu irás num carro meu, sem que a Sra. Baronesa nem de leve o suspeite, à
cidade, avisar o tabelião, que já aqui esteve com o Sr. Dr. Henrique, que
amanhã hei de fazer testamento.
Margarida
deixou o seu aposento.
Ouviu-se o
ruído de um carro que parou à porta, e pouco depois soou a campainha da
cancela.
O mordomo
correu a ver quem era, e voltando anunciou ao Barão a chegada do Sr. de Itaíba.
— É o único
que não me esquece, murmurou ele.
— Meu caro
Sr. Barão de Itaíba, há muito que não nos vemos.
— Não há
tanto assim, pois que não há oito dias que tive o prazer de dançar com a Sra.
Baronesa.
— É verdade.
— E como vos
achais? Eu tenho constantemente mandado saber da vossa saúde.
— E vo-lo
agradeço; a vela está a apagar-se.
— Não
falemos nisso, pelo que vejo estais mais disposto...
— Para a
morte.
— Pior!
O Sr. do
Engenho Queimado sorriu-se ligeiramente. O mordomo trazendo um candelabro com
velas acesas, colocou-o sobre a mesazinha dando as boas-noites.
— Senhor,
ajuntou ele, não há condução para que eu parta a cumprir as ordens que me
destes.
— Como
assim? interrogou o Barão.
— Um carro
saiu às ordens da senhora, o outro está aí...
— E então?
— Porém as
bestas ao prenderem-se a ele, soltaram-se e lá vão desencabrestadas pela
estrada fora.
— O meu
carro está às vossas ordens, disse o Barão de Itaíba.
— Obrigado,
respondeu o doente; já agora far-me-eis o obséquio de avisar ao tabelião, meu
vizinho na cidade, para vir amanhã fazer o meu testamento.
— Bem, como
quiserdes.
A Baronesa
entrou saudando o Barão de Itaíba, e perguntando por sua família sentou-se; e o
mordomo retirou-se.
— Senhor
Barão de Itaíba, disse a Baronesa, fala-se muito num próximo casamento, no
entanto que andais tão reservado para conosco...
— Não sei,
respondeu o Barão, no que me falais.
— Dizem,
prosseguiu a Baronesa, que a vossa filha D. Carolina estava pedida pelo
bacharel Segismundo...
— É-me
inteiramente estranho isso, senhora, e até é a primeira vez que tal ouço.
— Eu ouvi
antes dizer, ajuntou o Barão do Engenho Queimado, que o Dr. Henrique tinha suas
pretensões.
— Sim,
fala-se nisso.
Margarida
perturbou-se, mas dissimulando ajuntou:
— E era uma
feliz aquisição.
— Pobre
moço, disse o Barão de Itaíba.
— Mas que
tem excelentes qualidades, acrescentou o enfermo; outrora fomos inimigos; porém
graças a Deus, todas essas rivalidades pueris desvaneceram-se.
— Sim, nada
tem de seu, replicou o Barão de Itaíba referindo-se a Henrique.
— Porém pode
ter; e se eles se amam, bom é fazer-lhes a felicidade; quanto daríeis à vossa
filha de dote?
— Eu cá sei,
homem?
— Cinquenta
contos de réis?
— Vá lá.
— Pois eu
dou outro tanto a Henrique para que ele se case com a vossa filha.
— Deveras,
Sr. Barão?
— Sim, Sr.
Barão.
— Ora, essa
na verdade é que é grande e me faz maravilhar!
— Como
assim?
— Pois dais
a um estranho tanto quanto eu dou a minha própria filha?
— Eu vos
explico; há um motivo pois que parte de toda esta minha herança devia pertencer
a Henrique, a não serem nossas rivalidades, e eu por comiseração...
— Ah! ah!
agora sim vos compreendo perfeitamente; pois o negócio não é mau quanto ao
presente, mas para o futuro a menina há de ter mais...
— Tanto
melhor; e esses cem contos terão rendido alguma coisa.
— Pois vá
lá; casemos, eu a minha filha, e vós o vosso afilhado.
— O que
quiserdes que seja; então falai-lhe nisso.
— Pois logo
eu?
— Falai-lhe
da minha parte, e hoje mesmo.
— Talvez
fosse melhor mandá-lo chamar.
— Hoje?
— Sim.
— Pois então
ordenai.
O Barão do
Engenho Queimado tocou no timbre, e apareceu o prontíssimo pajem.
— Manda vir
o meu boleeiro, disse o Sr. de Itaíba.
O pajem
saiu, e Margarida abrindo a porta que dava para o seu aposento, sentou-se junto
de uma comodazinha, tomou um palito, e roçando-o pela parede, inflamou-se todo
de azulada chama, deixando como que um froco de lume na parede, que se
esvaeceu; acendeu uma vela e pôs-se a escrever.
— Ele há de
surpreender-se, disse o Barão de Itaíba.
— É uma
indenização dupla, tanto pela parte do casamento como pela do dinheiro, ajuntou
o Sr. do Engenho Queimado.
O Sr. de
Itaíba deu com os ombros, como mal percebendo o que dizia o seu colega; e o
boleeiro entrou batendo com as esporas no pavimento.
— Tira a
besta da montaria do carro e vai a toda a pressa à casa do Sr. Dr. Henrique, e
dize que o Sr. Barão do Engenho Queimado lhe deseja falar, e que não deve
passar de hoje.
O boleeiro
ia saindo, quando Margarida dobrando o papel ligeiramente em que tinha escrito,
foi ao seu encontro.
Havia um
corredor escuro onde ela o aguardava, e ela o pressentiu pelo tinir das
esporas.
— Mestre,
disse a Baronesa, sabes a casa do Dr. Segismundo?
— Sim,
excelentíssima, respondeu o boleeiro reconhecendo a voz doce e harmoniosa de
Margarida.
— Aqui tens
um bilhete para ele, que deve ser entregue sem falta agora mesmo; mas se queres
a recompensa do teu trabalho, é preciso que façais ainda mais...
— sua
excelência ordene, respondeu ele em tom capadoçal.
— Vás à casa
do Sr. Dr. Henrique, não?
— Sim, Sra.
Baronesa.
— Se ele não
estiver em casa, darás o recado do Sr. Barão; se estiver, dirás que é para
amanhã, hein?
— E se meu
senhor...
— Eu
respondo por tudo, mestre; avia-te; adeus.
O boleeiro
desapareceu e Margarida recolheu-se a seu aposento.
— Talvez
tudo perdido, murmurou ela consigo, e entretanto a vitória parecia ganha!
CAPÍTULO 10: ESPERANÇA
Valerian
De mis esperanzas buenas
Si las logras...
Elvira
Qué he de hacer
Para eso?
Valerian
A tu, señora,
Este papel.
Guillén de Castro
Havia já hora e meia que o boleeiro partira com o recado do Barão; quando regressou, e ao entrar no aposento do nobre enfermo, Margarida, tremendo que ele lhe quisesse certificar da entrega do bilhete que mandara a Segismundo, dirigiu-se com disfarce para o seu aposento.
— O Sr. Dr.
Henrique não estava em casa; deixei o recado, mas há de recolher-se tarde, pois
que foi ao teatro.
Margarida
respirou; e ambos os barões se olharam.
— Está bem,
disse o Sr. de Itaíba, o que não tem remédio remediado está.
O boleeiro
retirou-se e Margarida foi encontrá-lo.
— Então,
mestre?
— Tudo como
vossa excelência recomendou-me; aqui está a resposta.
A Baronesa
recebeu um bilhete da mão do boleeiro, retribuindo-lhe com uma nota.
—
Obrigadíssimo, respondeu o capadócio sem compreender qual tinha sido a sua
missão.
A Baronesa
dirigiu-se para o seu gabinete, e aí leu:
Exma. Sra.
Hoje mesmo,
neste mesmíssimo instante, vou esperar o Barão de Itaíba; no entanto que corro,
aproveitando-me da sua ausência, a informar a D. Carolina do que se há passado.
Não há palavras com que eu possa agradecer-lhe um tamanho favor.
Beijo as
mãos de vossa excelência
Vosso
obrigadíssimo criado,
Segismundo.
Guardou
Margarida o bilhete na sua secretária, e veio colocar-se ao lado de seu marido.
— Já vejo,
disse o Barão de Itaíba, que por hoje nada podemos fazer; amanhã de manhã
procurarei o doutor, e lhe comunicarei tudo da vossa parte.
— É o
melhor.
— E por hoje
basta de visita; estais doente e assaz tenho abusado de vossa bondade.
— Não, Sr. Barão,
tenho passado mais dis... tra...í...do, disse o Barão do Engenho Queimado a
bocejar.
— São horas;
até amanhã.
A Baronesa
ergueu-se, conduziu o Sr. de Itaíba até à porta, e voltou para o lado de seu
esposo.
— Quereis
alguma coisa? perguntou-lhe ela.
— Nada,
respondeu ele secamente.
O Barão
guardou por muito tempo o mais profundo silêncio; a Baronesa tomou um livro e
pôs-se a ler. Ouviram os tiros dos vasos de guerra surtos no porto: eram oito
horas, e anunciou o velho mordomo a chegada do Dr. Silva.
O médico
entrou, e depois de tomar-lhe o pulso, passou a examinar a escarradeira.
— Não tenho
cessado, disse o Barão interrompendo o silêncio, de escarrar sangue, que não
sei como ainda o tenho; mas o que a mim mais me incomoda é essa falta de sono que
me atormenta, no entanto que já me custa a estar deitado.
— Quereis
dormir um pouco?
— Se eu
pudesse!
O doutor
dirigiu-se para uma cômoda coberta de vidros com tinturas e óleos e de vasos
cheios de medicamentos; tomou de uma chávena, e pôs-se a preparar uma tisana.
— Bebei,
disse o doutor, apresentando-lhe a chávena.
— E
dormirei?
— Alguma
coisa.
O Barão
tomou até o meio e repugnou o resto.
— Bem, é
bastante, disse o médico.
— Mordomo,
balbuciou o Barão.
— Daniel,
bradou Margarida.
O mordomo apareceu,
e o Barão apontou-lhe para a cadeira, e Daniel sentou-se.
— Enquanto
eu dormir tu velarás.
— Pois
dormi, disse o doutor retirando-se e pondo a chávena sobre a comodazinha.
— Senhora, o
chá está na mesa, disse o pajem.
— Já sei,
respondeu Margarida.
E
aproximou-se do Barão.
— Está quase
a dormir, disse Daniel.
— Tanto
melhor; o que resta é que o enfermeiro não durma também.
— Não,
senhora.
— Queres o
teu chá?
— Se a minha
senhora faz o obséquio, quererei antes uma xícara de café.
— Pois eu to
mandarei.
A Baronesa
saiu; e ao passar pela comodazita levou consigo a chávena que ali deixara o
doutor.
Pouco depois
o pajem apareceu, voltando com uma xícara de café, que entregou a Daniel.
— Hoje está
péssimo, disse ele sorvendo a última gota, que o tal cozinheiro sem dúvida está
de mofa.
A Baronesa
voltou e já o Barão dormia, e o mordomo, recostado à cadeira com os braços
caídos, roncava em profundo sono.
Margarida
meteu a mão com destreza por baixo dos travesseiros do seu marido e tirou de uma
avinha.
— E também
tu!... e também tu, Manuel Luís! balbuciou o Barão.
A Baronesa,
que se encaminhava para a secretária, estremeceu e deteve-se.
— O papel
queimarás e as barras de ouro são para ti, murmurou o mordomo.
— Eles
sonham, disse Margarida dirigindo-se para a secretária.
Abriu-a,
calcou sobre uma gavetinha, e esta, contida por sua mão, abriu-se brandamente
por si, trazendo outra ao lugar que deixava.
Abriu a
segunda gavetinha, achou um maço de papel embrulhado num impresso e atado por
uma linha, e meteu-o no bolso do vestido.
Compelindo
da mesma maneira outra gavetinha abriu o outro segredo, que estava recheado de
barras de ouro.
Margarida
tirou-as uma por uma até cinquenta, e fechando a secretária de novo, pegou da
chavinha e foi colocá-la em seu lugar; apagou a luz e dirigiu-se para o seu
aposento, guiada pelo pálido clarão da lamparina, que lá bruxuleava.
Depositou
todo o ouro num segredo de sua secretária, rasgou o papel que envolvia o maço
que subtraiu, e nele achou algumas folhas de papel cozidas outrora, lacradas e
com linhas rotas presas ao lacre.
Abriu e leu
com a maior surpresa, e a palidez da morte pintou-se em seu rosto; dobrou de
novo todas aquelas folhas e meteu-as entre o colchão e a cama, e pôs-se a
pensar.
— O mordomo,
disse ela, responderá a seu amo por ele e pelo seu ouro: miserável! confiava o
segredo ao escravo, e temia-se da esposa; pois bem!...
O Barão
bradou pelo seu mordomo.
— Será
sonho? disse Margarida.
Tornou a
bradar.
A Baronesa
acudiu com a luz: o mordomo dormia.
— Adormeceu,
disse a Baronesa.
— Velho e
cansado, ajuntou o Barão.
— Mas eu,
acrescentou a Baronesa, nunca durmo, e no entanto não me quisestes hoje a vosso
lado!
— Até agora
éreis uma, agora sois outra.
— Enquanto
não soube dos vossos segredos, não é assim?
O mordomo,
esfregando os olhos, admirou-se da tenacidade do sono, que mal o queria
desamparar; e o Barão para evitar que a troca da palavras entre ele e sua
esposa se azedasse, pôs-se a mofar do velho pardo.
Bateram de
rijo na porta.
— Quem será?
disse o Barão.
— Que horas
são? interrogou-lhe o Barão.
— Dez horas.
— Não é
tarde.
— O boleeiro
do Sr. Barão de Taft deseja falar meu senhor, disse uma voz à porta.
— Que entre.
Entrou o
boleeiro, e metendo a mão na algibeira de sua comprida sobrecasaca de largos
cabeções, tirou de uma carta que entregou ao Barão.
— Está bem,
disse ele depois de havê-la procurado ler por muito tempo; assim havia de ser!
Henrique há de ser infeliz toda a sua vida! Má estrela presidiu o seu
nascimento.
O boleeiro
retirou-se marcando cada passo com o tinir das desmarcadas esporas prateadas.
— Alguma
desgraça? perguntou a Baronesa com dissimulação.
— Não
havíamos tratado aqui ainda há pouco de um casamento para Henrique?
— Sim; e
então?
— Desta vez
não teve por contendor a Rafael, as sim a Segismundo; o Barão apressa-se em dar
arte para que não vá eu falar a Henrique em coisa que já não tem lugar. Seria
melhor que o mandasses avisar do que ter pressa em dar tal notícia.
— Pensou que
fazia hem; e se ele vier...
— Não há de
vir; manda-lhe dizer logo pela manhã que já não necessito mais.
— Pois bem.
— Aquele
homem! Vê como sua alma é mesquinha! Achou um casamento com mais dinheiro, e
lamenta-se então que a culpa é da filha, dizia o Barão entregando a carta à
Baronesa.
Margarida
devorou rapidamente as letras da mal ortografada carta do Sr. de Itaíba, e
exultou de prazer.
— Já uma
vez, disse ela, Segismundo teve préstimo nesta vida!
— E como as
coisas se combinam! replicou o Barão; aqui a conversarmos sobre um objeto, e lá
Segismundo cuidando da mesma coisa, que nem que ele tivesse aviso ou
adivinhado.
— E agora
que fareis a Henrique?
— Isso é o
que me mata; e vós, Margarida, não compreendeis o meu coração, e eu leio no
vosso. Tudo, tudo é à medida de vossos desejos, como se o céu...
O Barão
interrompeu-se.
— O que
tendes? perguntou Margarida vendo o seu olhar fixar-se no mordomo.
— Coitado!
disse o Barão a rir-se; tornou a dormir, e em pé!
— Foi sempre
assim...
— Só o meu
sono foi tão curto e agitado; dormi para sonhar, e que sonhos!
— E o que
sonhastes então?
—
Extravagâncias, sonhos, puros sonhos... nada... coisa nenhuma.
— Coisa
nenhuma! Sempre o remorso, repetiu a Baronesa consigo.
— São horas;
ide ver se dormis, que por agora nada quero de vós.
A Baronesa
chamou o pajem para substituir o mordomo, a quem mandou deitar-se, e pediu ao
Barão que à menor novidade a fizesse chamar.
— Graças a
Deus! murmurou ela, tudo não está perdido!
CAPÍTULO 11: MAL POR BEM
— Mordomo,
disse a Baronesa ao erguer-se do leito, o Sr. Barão passou a noite
malissimamente.
— E eu,
senhora, que dormi como nunca; foi um sono pesado!
— É quase o
teu costume.
— Sim
senhora, durmo a todo o instante, mas tenho um sono muito leve.
— A todos
quantos procurarem o Sr. Barão vir-me-ás dar parte, visto que ele não pode
receber visita alguma.
— Porém
talvez que ele...
— Sempre
tens observação para me fazer!
— Perdoe,
minha senhora; o Sr. Barão porém deseja saber quem entra e quem sai, e era isso
que eu lhe ia dar parte da visita do Sr. Henrique.
— Eu vou
recebê-lo.
A Baronesa
entrou na sala de visita, onde Henrique, em pé, de costas para ela, examinava
um bordado de tapeçaria.
— Que tal,
Sr. doutor?
— Oh!
excelentíssima senhora., tendes muito bom gosto, se o desenho é vosso; e bordais
excelentemente em ponto de marca, se o bordado é de vossas mãos.
— São
lembranças do tempo de solteira.
— Feliz
tempo!
— Aqui estão
estas pombinhas; separam-se ambas levando no bico o extremo de uma fita que tem
um laço no meio; quanto mais se apartarem tanto mais apertarão o nó.
— É bem
ideado!
—
Separam-se, continuou Margarida, mas o laço da união se aperta mais e mais.
— Falta o
quer que seja aqui, observou Henrique, para tornar o quadro fiel.
— Como
assim?
— Falta a
causa desta separação.
— Tanto
melhor, ajuntou Margarida.
— Ao menos
sejam elas ditosas, e jamais um caçador ou qualquer laço que seja lhes estorve
a união que tão docemente gozam.
— Pelo quê?
pois há quem faça isto?
— Pois não
sabeis? E quase sempre o mal nos vem de onde desejaríamos o bem.
— Tanto pior
para se chorar; porém há males que vêm para bem; verdade é que nem todos
refletem no provérbio quando sofrem, que se refletissem...
— Mas nem
todos, disse Henrique, querem estar por isso; se Pope acredita nele, Voltaire
sorri-se impiamente, que não vê a bondade na maldade dos acontecimentos.
— E vós?
— Eu penso
que quem faz mal não nos deseja nem um bem.
— Mudareis
de opinião, e talvez mesmo agora, sabendo que Segismundo casa-se com D.
Carolina.
— Já o
sabia.
— Ora eis aí
como sois levado de mistificação em mistificação! Fui amada por vós, e Manuel
Luís obstou que nos casássemos; pretendíeis a mão de Cecília, e fostes
indeferido por causa de Rafael; agora Segismundo por sua vez vos rouba o
coração de Carolina que parecia já vos pertencer.
— E não
tendes concorrido para tudo isto? — E não tendes compreendido tudo isso?
— Como?
— Desejais
falar a meu marido? Ele não vos pode falar: pretendeis alguma coisa? Dizei.
— Eu vinha
saber o que pretendia de mim pelo recado que recebi ontem; verdade é que hoje
recebi contraordem, contudo sou-lhe grato... antes não fosse!...
A Baronesa
deixou escapar um sorriso maligno.
— Sorri-vos?
— O Barão,
disse a Baronesa, nada tem convosco; o que pretendia de vós já não deseja:
tomai este quadro de pombinhas, levai-o para casa e refleti bem nele! Doutor,
se o compreenderdes, ponde aqui um raminho de violetas já murchas e umas flores
de laranja, que não terão ainda desbotado!
— Que
mistério, disse Henrique, se encerra em vossas palavras!
Margarida
calou-se.
— Senhora!
bradou o pajem, o Sr. Rafael e a Sra. D. Cecília pedem licença.
Henrique
empalideceu
Doutor,
disse a Baronesa, escondei-vos nesta saleta, e logo que eles tiverem passado,
saireis; quereis não vos ocultar dele?
— Lede no meu
coração, Sra. Baronesa.
— E sei o
que vos atormenta, o que desejais e o que não alcançareis.
Henrique
recolheu-se à saleta; a Baronesa fez sinal ao pajem que abrisse a porta.
Cecília, com
as faces tintas de pudor; e Rafael, já sem aquele negro bigode que tanta graça
lhe dava, penetraram na sala.
Margarida,
que veio ao seu encontro, os conduziu para uma varanda que dava para um dos
jardins laterais da casa.
Henrique
saiu ruminando as palavras da Baronesa; tinha ela a ousadia de dar a conhecer
as suas mais íntimas intenções, mas sabia igualmente confundi-las com frases
que não eram para ser compreendidas facilmente, e muitas vezes só para
destruírem o efeito de outras.
— Ela parece
que me fala no futuro, dizia Henrique, porém não me disse ela: Eu sei o que vos
atormenta, o que desejais, o que jamais alcançareis?
O jovem
doutor montou em seu fogoso cavalo, e seguiu a trote largo para a cidade,
entregue a tais pensamentos.
Entretanto a
Baronesa sentada na varanda ao lado de Cecília, opunha-se fortemente a que ela
falasse ao Barão.
— É meu pai,
disse Cecília, e não há forças que me privem de lhe falar.
— Senhor
Rafael, disse a Baronesa, tenho bastante ouro para pagar o dote que vos
prometi; não é isso o que quereis?
— Não; vós
sabeis que desejo muito conciliar-me com o Sr. Barão, e Cecília deseja pela
primeira vez a sua bênção paternal.
— Mas não há
aí nada que me force a contrariar ordens mui positivas que dei; o Barão não
recebe mais visitas, e, ajuntou Margarida com malícia, já fez testamento.
— Não viemos
cá por isso, respondeu Cecília com enfado.
— Como vos
acho interessante, minha menina! Já não sois a mesma, mudastes de botão para
rosa aberta com incrível velocidade! Pago-vos o dote prometido, e já; mas se
insistis em adiar o seu recebimento com a mira numa herança que nem por sonhos
vos pode pertencer, então o dito por não dito.
— Sois a
senhora mais célebre que tenho visto, ajuntou Rafael; de protetora que éreis,
temos em vós uma terrível contrária, uma completa inimiga.
— Também o
amor que tão puro despontava em vosso peito é hoje pura ambição; bem vedes, Sr.
Rafael, que se protegi um, não posso me decidir por outro.
— Bem; nesse
caso tomaremos o vosso exemplo por nosso guia; protetora, nós vos respeitamos;
por contrária, não queremos senão antepor a nossa força à vossa injustiça.
— Fazei o
que quiserdes; o Barão...
— O Sr.
Barão vos deseja falar, Sra. Baronesa. Margarida correu à voz de seu esposo.
— Mordomo,
direis ao Barão que estamos aqui...
— O Sr.
Barão não recebe visita de qualidade alguma.
— São ordens
dele?
— Não,
senhor; são da Sra. Baronesa.
— Ah! está
bem!
Daniel
retirou-se.
— Vinde,
disse Rafael para Cecília seguindo os passos do mordomo; ele é vosso pai, e sua
porta se abrirá à vossa voz.
Rafael e
Cecília pararam à porta do quarto do Barão.
Chegou o Dr.
Silva, que entrou.
— Dá
licença, Sr. Barão?
O Barão fez
sinal que abrissem a porta.
A Baronesa
opôs-se, e balbuciou algumas palavras ao ouvido do doutor.
— De maneira
nenhuma, bradou o Dr. Silva.
Cecília,
impelindo a porta, lançou-se aos pés do Barão.
— Meu pai!
— Cecília,
disse ele esmorecido.
Rafael
contemplava mudamente o que se passava em torno de si.
— Estas
cenas de comoções são perigosas para o enfermo, observou o doutor.
Cecília
regava de lágrimas as mãos de seu pai, Rafael deixava também cair algumas
lágrimas.
— Que
quereis? disse o Barão, esse pranto me atormenta; não martirizeis os meus
últimos instantes.
— É o perdão
que eu peço.
— É a
herança que eles ambicionam, murmurou Margarida.
O doutor
aproximou-se do Barão e sentou-se a seu lado.
—
Perdoai-lhes, lhe disse ele, e acabai com isso tudo, que nos é doloroso.
— O
tabelião! anunciou o mordomo.
A alegria
satânica brilhou nas faces orvalhadas de pranto de Rafael.
A Baronesa
sentiu um tremor de frio da cabeça aos pés, e saiu.
— Senhor
tabelião, disse ela com voz baixa e aproximando-se dele o mais que lhe foi
possível, o meu marido não pode fazer testamento.
O tabelião
deixou cair os ombros.
— Direis
pois ao Sr. Barão que o não faça, isto é bastante; direis mais que não convém
até para a salvação de sua alma.
O tabelião
olhou espantado para Margarida sem compreendê-la.
A Baronesa
pediu-lhe que a esperasse, e voltando rapidamente entregou-lhe uma nota.
O tabelião
desenrolou o papel, e súbita alegria brilhou-lhe pelas faces.
A Baronesa
entrou para o seu aposento, e passou-se para o quarto do Barão onde penetrou o
tabelião.
— Saiam
todos, disse o Barão, que quero ditar minhas disposições.
— Vós, Sr.
Barão, não podeis fazer testamento.
— Como
assim? perguntou o Barão esforçando-se e sentando-se com o arrimo de suas
almofadas.
— Até,
ajuntou o tabelião, para salvação de vossa alma.
— Para a
salvação de minha alma: repetiu o Barão. Meu Deus! ajuntou ele apoiando a
cabeça entre as mãos, este homem sabe de tudo!... Dar-se-á acaso?... Quem sabe!
— E porque
não? disse Rafael.
— Porque
sim, respondeu o tabelião.
— Basta!
basta! disse o Barão, estou perdido! Saiam todos e deixem-me com o meu fiel
mordomo.
Retiraram-se
todos, e o Barão ordenou que cerrassem as portas.
— Estou,
disse o Barão, estou atraiçoado! Ninguém senão tu sabia dos meus segredos! Tu
me traíste.
— Eu, meu
senhor!
— Pois bem,
disse o Barão, como é então que o tabelião sabe o que só tu poderias saber
depois de minha morte se soubesses ler? Abre aquela secretária.
O mordomo
abriu.
— Carrega
nas gavetinhas de segredo.
O mordomo
carregou.
O Barão
tornou-se lívido e frio.
— Que é do
papel? que é do papel?
— Ainda
ontem aqui estava!
— Enquanto
não sabias dele! e agora que eu queria entregá-lo às chamas! Daniel, tu és um
ladrão!
— Meu
senhor...
— Abre a
outra.
O mordomo
carregou na mola, e a gavetinha secreta impeliu a outra e apareceu.
— Vazia!
vazia! exclamou o Barão com um sorriso de amarga ironia.
O mordomo
estava ferido de morte.
— Daniel!
Daniel! que dizes a isto? Roubaste-me o ouro antes que eu me arrependesse; e o
papel, e o papel, que não sei eu para que o guardava, também desapareceu!...
Pérfido, que é da carta de liberdade que te dei?
— Aqui está,
disse o mordomo debulhado em lágrimas.
— Pois toma,
disse o Barão rasgando e lançando-lhe os pedaços, agora és livre! escravo!
agora... E as golfadas de sangue impediram-lhe o resto; e o doutor acudindo aos
gritos de Daniel, veio em socorro do Barão, e com ele a Baronesa.
— Mande vir
o padre, o Barão não chega a noite; olhai, disse o doutor apontando para a
escarradeira, vede, ajuntou ele descobrindo-lhe os pés que haviam inchado de
uma maneira espantosa.
A Baronesa
lançou um rápido volver de olhos sobre a secretária, e viu os segredos
patentes, e retirou-se.
Poucos
instantes depois o seu carro partia a todo o galope para a cidade.
CAPÍTULO 12: A HORA DA MORTE
...Ali no leito
Jazia um moribundo; em torno os olhos
Cheios de pasmo, de terror volvia,
Bebendo pelos sôfregos ouvidos
Mal sentido rumor!...
G. Dias
O sol descambava no ocidente por entre negras nuvens que ameaçavam muita chuva, quando vieram bater na porta da célula de Fr. José da Santa Genoveva
O bom do
monge, apressando-se em abrir a porta, parou para ouvir o recado que um pajem
lhe vinha trazer.
Era um
negro, trajando uma rica sobrecasaca azul toda agaloada de ouro, colete e
calças brancas, e botas de montar por cima das calças.
— A Sra.
Baronesa do Engenho Queimado, disse ele com essa voz de capadócio que tanto
distingue os nossos boleeiros, manda pedir a Fr. José de Santa
Genoveva o
favor de ir confessar o Sr. Barão, que está em perigo de vida.
— Com que
então não tem tido melhoras? interrogou Fr. Santa Genoveva.
— Não,
senhor: parece-me que não chega à noite, e o Sr. doutor disse que era bom que
se confessasse quanto antes.
— Está bem,
ajuntou Fr. José sorvendo uma pitada de rapé, eu lá vou sem demora.
— Tenho o
carro às ordens de meu senhor.
— Tanto
melhor, disse Fr. José, chegarei lá mais depressa; e, ajuntou ele falando com
seu hábito, em tom de compaixão, não iremos com risco de grande molho.
Cinco
minutos depois saía o gordo monge de seu Convento do Carmo na Lapa do Desterro,
não se esquecendo de sua bela caixa de tartaruga atopetada de louro rapé.
Entrou
vagarosamente no carro, arregaçando o hábito com tanto donaire e graça como a
mais bela menina da nossa corte faria ao seu vestido.
— Vamos lá,
bradou ele.
E o trote
largo das bestas arrastou o carro pela rua da Glória, com direção às Laranjeiras.
Chovia já, e
os raios do sol se refrangendo nesses chuveiros, eram como uma chuva de ouro em
pó que caísse sobre a terra.
As árvores
aqui e ali verdejando pelo meio dos edifícios à beira da estrada, se cobriam de
um esmalte como da esmeralda, despindo-se do manto de poeira que há tanto tempo
as cobria.
Mas Fr. José
não levava na imaginação senão a dolorosa ideia da última hora de seu amigo, e
por mais pitadas de tabaco que tomasse para distrair-se, o instante do
passamento se lhe apresentava à mente.
Parou o
carro e apeou-se ele à porta da elegante casa das Laranjeiras, adornada de um
magnífico jardim à entrada; penetrou silenciosamente, tendo tido o cuidado de
tirar o seu pesado chapéu de largas e enroladas abas.
Tudo era
silêncio; parou na sala, sentou-se, colocou o chapéu sobre uma cadeira e pôs-se
a pensar.
Daí há
poucos instantes veio a Baronesa chamá-lo, e conduziu-o para o quarto do Barão,
e deixando-o a sós com ele fechou a porta.
A Baronesa
trajava um lindo e justo roupão de seda roxa e tinha um não sei quê de triste
na fisionomia que assaz dizia com a simplicidade e cor de suas roupas.
Margarida
sentou-se junto da porta e parecia que aguardava a saída de Fr. José.
O frade
demorava-se, e Margarida se impacientava.
Um quarto de
hora seria bastante para uma confissão; meia hora já lá havia decorrido.
Eram seis
horas da tarde quando entrou o frade, e deram oito horas.
— Há duas
horas! disse Margarida, e nada de novo!...
E o frade
falou algum tanto alto; ouviu-se perfeitamente uma voz trêmula e rouca, e era a
voz do Barão.
— É uma
confissão geral, disse Margarida, uma confissão de ano santo.
O desejo de
espiar pelo orifício da fechadura, de aplicar o ouvido, a arrastava para a
porta.
— É
impossível que ainda se confesse, disse ela; estão conversando.
O frade
bateu e Margarida abriu-lhe a porta.
— Entrai,
excelentíssima Baronesa, que muito necessitamos da vossa presença.
Margarida
pediu luzes; o pajem as veio colocar ante um crucifixo que ela tinha posto
sobre um altar portátil.
— Mandai,
disse Fr. José, chamar o Dr. Henrique a toda a pressa; a sua presença também
nos é necessária.
Margarida
tocou no timbre; apareceu o pajem, e suas ordens foram imediatamente
executadas.
Então o
monge voltando a chave para dentro fechou a porta sobre si.
O Barão
estava meio sentado sobre ricas almofadas de damasco orladas de ouro: seu
aposento respirava uma suntuosidade, que fez com que o frade suspirasse mais de
uma vez.
— Margarida,
disse o Barão.
— Que
desejais?
— Escutai.
Fr. José de Santa Genoveva vai falar-vos, mas antes perdoai-me.
— O quê, Sr.
Barão?
— Chama-me
Manuel, que é o meu nome. Ah! Margarida! nem da mulher com quem vivi sempre,
nem do confessor a quem sempre narrei os meus pecados, confiei jamais o maior
dos meus segredos. Sei que morro, ajuntou ele, e nessa hora solene não quero
levar comigo à sepultura o segredo do meu crime, que em parte... aquele
mordomo... Daniel apressou-me o último instante.
— O
testamento falso! murmurou Margarida consigo.
— Fr. José,
prosseguiu ele, bom e amável, acaba de aconselhar-me acerca a marcha que devo
seguir; resta porém que vós e ele o queiram.
— Fr. José
de Santa Genoveva, acrescentou o Barão voltando-se para o monge, exponde-lhe
tudo; já me rouqueja a voz e me vai faltando de todo em todo; além disso... a
vergonha!... balbuciou ele.
Margarida
estava aterrada; já não havia dúvida para ela.
Fr. José,
sentado à cabeceira do doente, voltou-se para a Baronesa que se apoiava numa
cadeira de braços.
— Senhora,
disse ele, tudo isto quanto aqui está, tudo quanto tendes logrado não vos
pertence, todas estas riquezas foram usurpadas por vosso marido por meio de um
testamento falso!
Margarida
cravou os olhos em seu marido, como que para interrogá-lo.
Manuel
sentiu um não sei quê de terrível pesar-lhe sobre o coração; deixou-se
escorregar pela almofada, pegou do lençol e cobriu lentamente o rosto,
voltando-se para a parede.
— Prossegui,
disse Margarida para o monge, prossegui; a miséria me espera depois de tanta
opulência, porém vós me ensinareis a sofrê-la com resignação...
— Escutai.
Fr. José
sorveu longamente uma pitada de rapé que tinha entre os dedos, e continuou:
— Nada disso
é vosso, tudo tem um dono que ignora, na melhor boa fé, que, senhor de tanta
riqueza, viveu sempre, e ainda vive, sem fausto, à mercê das esmolas de vosso
esposo!
— Meu Deus!
vós me despedaçais o coração!
— Havia um
homem nessa nossa cidade do Rio de Janeiro, rico e sem filhos e herdeiros, e
como fizesse tenção de constituir por seus herdeiros a dois de seus afilhados, aconteceu
que o vosso marido promoveu os maiores enredos para se fazer único dono de
tantas riquezas!
O outro
afilhado procurou destruir suas intrigas, e por isso lançou mão de todos os
recursos.
O primeiro
cuidado do nosso homem foi de empregar a um no comércio, e o outro mandou
estudar na Academia de Medicina; dando ao primeiro alguns contos de réis, que
ele empregara em especulações.
Viviam eles
em casa do velho, que se tinha retirado do comércio, entregando suas casas a
seus caixeiros e felicitando-os; mas eles aborreciam-se de morte, e no entanto
mostravam viver na mais perfeita harmonia.
Tinha
Lourenço Pinto de Sousa em sua casa uma órfã, uma moçazinha, a quem
prodigalizava todos os carinhos, em falta de um filho que os recebesse, se é
que não era sua filha! Requestavam-na ambos, e isso deu motivo a que o velho
negociante os!despedisse; fechou-lhes a sua porta, mas não a sua bolsa:
continuou a prodigalizar-lhes favores, tendo tido o cuidado de evitar uma
terrível desgraça.
Pensou, mas
não o conseguiu; a moça desapareceu, e Henrique fez recair todas as suspeitas
em seu companheiro.
O velho
Lourenço Pinto de Sousa acreditou ao princípio, porém tendo ouvido a Manuel
Luís, ficou meio abalado, e suspendeu o seu juízo até que o tempo descobrisse o
verdadeiro autor do rapto.
No ímpeto da
cólera, lembrando-se do que lhe dissera Henrique, rasgou o testamento em que
constituía Manuel seu testamenteiro e herdeiro, bem como a Henrique, e
constituiu somente a este, privando aquele de tudo.
Tal foi o que
ele declarou a Manuel no dia em que este lhe veio trazer falsos documentos de
sua inocência, apresentando-lhe um seu antigo caixeiro como autor do rapto da
bela órfã: pobre homem, que por dinheiro a isso se prestara!
Lourenço
voltou-se contra Henrique, e sendo a sua intenção fazer novo testamento no dia
seguinte, foi subitamente acometido de uma apoplexia fulminante.
Correu
Manuel Luís à sua casa com a nova de sua morte; e entre os seus papéis achou o
seu testamento; lembrou-se de seu infortúnio, e quis lançá-lo às chamas, mas
pensando com isso fazer mal a outros que não tinham culpa alguma do que lhe
acontecera, foi levá-lo à autoridade competente.
Aberto que
foi o testamento, lastimou-se este do seu infortúnio; porém o maldito de um
serventuário lhe deu esperanças, lhe acendeu a cobiça arrastado pela avareza.
— Tudo se
arranja, disse ele; registra-se o testamento tal qual, só com a troca de seu
nome, que substituirá o de Henrique; a fortuna toda lhe pertence, menos a ele;
o senhor vai para casa, cuida do enterro, e depois declara e anuncia que perdeu
o testamento, e pede outro por certidão, que lhe passarei.
— Aceito o
conselho, disse Manuel Luís.
Então o
escrivão abriu a gaveta e apresentou-lhe algumas letras.
Ele exigia
vinte contos de réis.
Vinte contos
de réis lhe foram dados em letras por Manuel Luís.
Eis aqui
pois como essa fortuna nunca vos pertenceu.”
— E agora,
Fr. José, o que resta fazer?
— É
entregá-la a seu dono, que não tardará em vir tomar conta dela.
— Porém se
Lourenço Pinto não sucumbisse nessa noite?
— Deus não o
quis. O homem põe e Ele dispõe.
— Fr. José,
exclamou Margarida erguendo-se e olhando para seu marido ainda coberto pelo
lençol, eu tenho um meio para sanar todas estas dificuldades...
— E qual é,
senhora?
Margarida
chegou-se ao ouvido do frade e balbuciou algumas palavras.
— Ele vive,
senhora, exclamou o padre apontando para o Barão.
Margarida
arregaçou o lençol levemente, e um cadáver lívido e frio foi o espetáculo que
lhe feriu os olhos.
— Morto!
exclamou ela deixando-se cair sobre a cadeira em que esteve sentado Fr. José de
Santa Genoveva.
O monge saiu
desesperado, desembaraçando-se de Rafael e Cecília que, parados à porta,
perscrutavam tudo quanto se passava no aposento.
— Senhora,
bradou um boleeiro à porta do quarto, o Sr. Dr. Henrique acaba de desaparecer;
perdeu ontem ao sair do teatro toda a sua fortuna numa casa de jogo.
— Meu Deus!
bradou Margarida prostrando-se ante a imagem do Crucificado que ali estava; e
também Henrique!...
Rafael e
Cecília com os olhos ondeados de pranto penetraram no aposento.
Ouviram-se
soluços de partir o coração de dor. Era Daniel, que não ousava de entrar.
CAPÍTULO 13: JURAMENTO
Num segundo
andar de um prédio da rua do Hospício morava o Dr. Silva, e em seu relógio acabavam
de soar dez horas.
Ouviu que
uma carruagem parava à porta, e depois sentiu bater.
O doutor,
que repousava numa poltrona a ler, veio à escada saber quem o procurava, e
conduziu um moço todo vestido de luto para o seu sofá.
— Pensei,
disse ele, encontrar-vos no enterro; mas enganei-me, e por isso vim.
— Não
costumo enterrar, disse o doutor a rir-se, aqueles a quem mato.
— Para isso
tendes licença.
— Creio que
fostes bem sucedido na missão de que vos encarregou a Baronesa.
— A prova
aqui está, respondeu o moço tirando de um maço de papéis que entregou ao
doutor, despedindo-se.
— Então já,
Sr. Segismundo?
— Tenho
pressa.
O Dr. Silva
que o acompanhou até à escada, dirigiu-se pelo corredor para outra sala, espiou
pelo orifício da fechadura de uma porta que estava fechada, viu a luz e bateu.
— Quem é?
interrogou uma voz doce, mas com acento assaz comovido.
— Abre,
respondeu o doutor.
E ouviu-se o
som áspero da chave rolando sobre as molas da fechadura, e a porta cedeu então
ao impulso da mão de Silva, e tornou-se a fechar.
— Que diabo
de melancolia é a tua? Queres enlouquecer com tanto cismar?
— Devo,
devo, e devo muito, respondeu o moço belo e elegante, e que estava embuçado num
rico robe de chambre de cetim carmesim bordado de fios de ouro.
— Manda
todos esses jogadores para o chefe de polícia, e que vão dele cobrar o que
perdeste.
— Isso era
bom se eu não tivesse assinado letras sobre a fatal mesa do maldito monte!
Vinte mil cruzados em tão poucos instantes!...
— E quando
vencem essas letras?
— Já te
disse que de oito em oito dias, segundo os prazos de cada uma delas, tenho que
dar um conto de réis até o final do pagamento?
— Daqui a
dois meses terás pago tudo.
— Como? com
que dinheiro?
— Eu te
posso emprestar, disse o Dr. Silva olhando para um quadro que pendia da parede.
— Eu não
posso exigir de ti tanto sacrifício.
— Falo-te
com sinceridade, respondeu o doutor com os olhos fitos no quadro.
— Que estás
aí a mirar?
— Este
quadro de tapeçaria, que é novo nesta sala, e coroado com flores de laranjeira
e violetas já tão ressequidas.
— Ah!
bagatelas.
— Bagatelas!
E entretanto dar-te-ia de boa vontade as tuas letras em troca delas.
— Gracejas?
Queres fazer-me rir quando tenho a dor cravada no coração como se um punhal mo
dilacerasse!
— Falo-te
sério.
— Mudemos de
conversa.
— Não; sou
um pouco teimoso, e muito, se não me cedem logo.
— Ora! para
que te havia de dar a mania!
— Queres ou
não? O negócio é sério.
— Só para me
ver livre de ti dar-te-ia o quadro.
— Pois então
aceito-o.
O doutor,
elevando-se sobre uma cadeira, desprendeu o quadro da parede.
— Também
queres as flores?
— Quero
tudo.
O jovem
deixou cair os ombros; sentado em frente de uma mesa, cruzou sobre ela os
braços e encostou a cabeça, olhando para o chão. O doutor depositou sobre a
mesa um maçozinho de papéis, no qual escreveu algumas palavras, e abrindo a
porta, saiu.
O jovem
ergueu-se, fechou a porta, e ao voltar para o seu lugar, deu com o maço de
papéis em que leu as corridas e ligeiras palavras:
Ao Sr.
Henrique: preço de seu quadro”. Abriu-o, e eram as suas letras!
Henrique
estava pasmo; pareceu-lhe um sonho quanto via, abriu a porta e dirigiu-se para
a sala de seu amigo.
O doutor
tinha guardado o quadro, e pusera-se a ler.
— Doutor,
disse ele, não me explicarás todo esse enigma?
— É fácil;
obtive as tuas letras, e em troco delas o teu quadro!
— O meu
quadro!
— É muito
simbólico, e pelo pincel conhece-se que só a mão de uma senhora...
— Entre nós
não há mistérios, disse Henrique sentando-se, e tu sabes que o obtive da
Baronesa...
— E que o
hei de restituir, não é assim?
—
Restituí-lo?
— À
Baronesa.
— Como
assim?
— Não mo
vendestes, homem de Deus?
— Doutor,
estás disposto a folgar à minha custa?
— Se o
queres, dou-te já; mas nesse caso restituir-me-ás as letras.
— Triste
posição na verdade é a minha! respondeu Henrique rasgando entre os dedos as
fatais letras.
Bateram de
rijo na porta, e Henrique estremeceu.
— Não estás
salvo? perguntou-lhe o Dr. Silva, e depois ajuntou:
— Entre quem
é.
— O Senhor seja
nesta casa!
— Um frade!
murmuraram os dois amigos levantando-se com acatamento.
— Desejo
falar ao Sr. Henrique.
— Sou esse.
O monge
inclinou a respeitável cabeça meio encanecida, e fitou os olhos em Silva.
— Podeis
falar, ajuntou Henrique, é meu amigo, um protetor... para ele não tenho segredo
de qualidade alguma.
— Então,
disse o frade, sentar-nos-emos.
— Dar-me-eis
licença, disse o Dr. Silva apontando para o livro que tinha postado na estante
de sua poltrona, que continue?
— Como
quiserdes, disse o frade conchegando-se para Henrique. Doutor, continuou ele
tomando um acento solene, sei que pretendíeis suicidar-vos, e é por isso que
ousei de vir bater à vossa porta.
Henrique
tornou-se pálido como as paredes que o rodeavam; Silva fechou o livro e concentrou
toda a sua atenção nas palavras do monge.
— Depois das
mais esplêndidas, pomposas e douradas esperanças de opulência, vistes-vos
reduzido à miséria; porém o vosso coração ainda era grande e nobre para
sucumbir, e o Senhor conheceu o vosso peso na balança de sua divina justiça
pela vossa resignação; lembrou-se de vós, conheceu-vos na miséria e quis
pesar-vos, não na opulência, mas na grandeza, que muito vos deu Ele; então
mostrastes o que faria de vossa opulência, se a tivésseis herdado, e os divertimentos
e distrações, a concupiscência e os festins, e afinal o jogo, a dissipação, a
ruína, e depois— o suicídio!...
— Meu bom
padre, disse Henrique, falais a pura verdade; a minha alma perdeu-se no caminho
das flores; falho de experiência...
— A experiência
não a dá só a pobreza; vivei, e acusareis ainda ao Senhor, porque diante de
vossos desvarios jamais a colocará: ainda não chegastes ao abismo a que vos
leva o caminho de flores, e já caístes, e hei de ser eu que vos hei de dar a
mão para vos ajudar a erguer, porém para que retrocedais, que não para
prosseguirdes. Dizei-me: tentastes com efeito pôr fim à vossa existência?
— Hesitei
por algumas horas, escondido, envergonhado dos homens.
— E não de
Deus, meu filho!
— Meu
padre!...
— Sois capaz
de ser pobre, mas o vosso coração havia de desvairar-se no meio da opulência;
ressoariam nos vossos salões magníficos e suntuosos os hinos das orgias, e a
lamúria do mendigo seria ouvida como uma importunação, e vê-lo-íeis com seus
andrajos como uma nódoa no vosso solar de mármore e palissandra, de prata e
ouro, de veludos e damasco, de cristais e porcelanas, de tapetes e esteiras, e
estender-vos-ia a mão para receber um vintém, e lho negaríeis colocando sobre
as cartas da fortuna o suor de vossos escravos, as lágrimas do infortúnio de
tantas famílias, ou o cativeiro da tantos desgraçados!
Juraríeis
amar a uma só mulher, e ante a face do altar prometeríeis amá-la como Cristo
amou a sua igreja, e as alcovas de vossas escandalosas concubinas, testemunhas
de vossas lascivas torpezas, ressoariam com os protestos de vossos amores! Ao
grande e opulento cederíeis o passo, inclinaríeis a cerviz arrogante aos de
maiores fortunas do que vós; mas vosso pé, pobre barro que sustenta um ventre
de ferro, um peito de prata, uma cabeça de ouro, esmagaria os pequenos que não
obedecessem ao vosso aceno, que não se dobrassem ao vosso — quero e mando!
— Não! não!
— Quê! já a
experiência amestrou-vos! Deixareis jamais de jogar depois de vos haver deixado
enlevar pela magia das cartas? Ah! que mais lucra a sociedade com o vosso
suicídio do que perde; a moral porém o obsta, que o perde ela; é mais um
exemplo para que o homem se anime a esconder-se de seus semelhantes sem se
lembrar que leva uma alma maculada de tamanho crime Aquele que o criou. Mas,
meu filho, ditoso de quem cedo se arrepende, que para isso sempre é tempo.
Hesitáveis!... É que no fundo de vosso coração ainda ficou alguma coisa de sã;
ele não se corrompeu de todo. Emendar-vos-eis, não é assim?
— Eu vo-lo
prometo, meu padre.
— Pois bem,
bradou o monge erguendo-se, jurai-o sobre a última vontade de um homem, em nome
da Santíssima Trindade!
Henrique e
Silva se levantaram.
O frade,
apresentando um papel todo dobrado, cheio de linhas cortadas presas a lacre
encarnado.
Henrique
prostrou-se com gravidade e deu solene juramento com a sua mão direita sobre
ele.
— Pois bem,
Henrique, ajuntou o monge tomando o seu negro chapéu de largas e enroladas
abas, e deixando-lhe o papel nas mãos, lembrai-vos de Margarida!
Olharam-se
os dois amigos com espanto e admiração, e o monge inclinou a cabeça e saiu.
CAPÍTULO 14: GENEROSIDADE POR GENEROSIDADE
I am your
wife, if you will marry-me.
"Tempest".
No dia seguinte, ao amanhecer, meteu-se Henrique num carro e foi apear-se nas Laranjeiras, à porta do falecido Barão do Engenho Queimado.
Bateu, e o
velho mordomo, todo vestido de luto, correu a abrir-lhe a porta.
— Morreu o
Sr. Barão, hein?
— Sim,
senhor; sepultou-se a tarde passada na igreja da Lapa do Desterro.
— E a Sra.
Baronesa está em casa? — Sim, senhor; pode entrar.
Henrique,
trajando pesado luto, mal entrou na sala destinada às visitas, que deu com os
olhos no quadro de tapeçaria que a Baronesa lhe havia dado; lembrou-se das
fatais letras, e compreendeu todo o enigma da reserva de seu amigo.
A Baronesa,
em rigoroso luto, penetrou na sala, pálida e triste como uma rosa branca
cortada e perdida sobre a margem de um ribeiro, e Henrique comovido sentou-se
junto dela.
— Aqui
tendes tudo, tomai posse, senhor, do que sempre vos pertenceu, e que no
entanto...
— Ah! D.
Margarida, disse Henrique enternecido pelas suas palavras, não venho para isso,
e preserve-me Deus de tal; venho apenas para saber o mistério de todo esse
drama.
— Fr. José
de Santa Genoveva nada vos disse?
—
Entregou-me o testamento de Lourenço Pinto de Sousa em que me constituiu de há
muito único herdeiro de todas as suas riquezas.
— Documento
que salvei das chamas, e que, sem que Fr. José soubesse que eu o tinha, lhe fiz
entrega, já por deliberação minha, já por conselho de meu pai, para que fosse
ter à vossa mão;e para salvá-lo comprometi a inocência de um pobre homem, fi-lo
até passar por ladrão, que não queria eu que o desaparecimento tão somente de
um papel fizesse duvidar a sua culpabilidade, e só por amor dele exigiria de
vós um pequeno prêmio.
— Senhora
Baronesa, tudo é vosso, haveis de dispor de tudo como até aqui; eu nada mais
quero que...
— Este traje
diz-me muito bem, disse a Baronesa interrompendo-o com ligeiro sorriso sobre os
lábios e inclinando-se para um lado a fim de ganhar o reflexo de um espelho.
— Ah! por
certo que não!
— Espero
pois, prosseguiu ela, que esse prêmio seja a carta de liberdade que outorgareis
a Daniel com cinquenta barras de ouro que achareis na secretária... que foi
minha; rogo-vos que tomeis conta de vossa casa, pois já é tempo de retirar-me.
—
Retirar-vos? e para onde?
— Para a
casa de meu pai, na Lapa, de onde me arrancou a opulência de Manuel Luís, e a
que me restitui minha pobreza.
— E onde eu
poderei ir buscar-vos, não é assim?
Margarida
compôs o seu negro vestido de longa cauda.
Ouviu-se o
rumor de um carro que parou à porta.
— Ah! é meu
pai, bradou ela correndo para recebê-lo.
Anselmo
entrou; cumprimentou com indiferença ao doutor; e dando a beijar sua mão a
Margarida, imprimiu-lhe um ósculo na testa.
— Vamos.
— Estou
pronta.
Margarida
subiu a uma cadeira, desprendeu o seu quadro, e depois, tomando de uma
campainha, tocou-a por um instante.
Compareceram
na sala todos os seus escravos e mucamas, que silenciosos aguardavam as suas
ordens.
— Aqui
tendes, disse ela, o vosso novo senhor; e ajuntou ela voltando-se para o
doutor:
— Aqui
tendes a vossa casa.
E inclinando
a cabeça, dispunha para se retirar, quando Henrique, acenando para os escravos
que se retirassem, embargou-lhe os passos.
—
Excelentíssima, disse ele, e não me restituireis o meu quadro, as minhas
flores? Já não vos lembrais que tudo isso me foi dado por vós?
— E
esqueceste-vos que o resgatei a peso de ouro? ou pensais que tendes direito a
esse dinheiro por não saberdes que ainda tenho em poder de meu pai cento e
vinte contos de réis de minha legítima materna?
— Pois bem,
não terei direito a todas as usurpações que me fez Manuel Luís, o Barão?
Anselmo
empalideceu.
— Tendes,
senhor, respondeu Margarida com calma; exigis algumas indenizações? Aí tendes
toda a vossa fortuna; talvez seja pouca, mas não podemos dar-vos mais, a menos
que não queirais também a nossa própria miséria; essa a sós nos ficará.
— Quero,
Sra. Baronesa, quero a vossa mão que ele usurpou-me; mas não é o milionário
quem vo-la pede, nem o herdeiro de Lourenço Pinto; é, ajuntou ele metendo a mão
na algibeira e tirando de um papel dobrado e cheio de linhas cortadas, mas
presas ao lacre, e rasgando-o, é, Margarida, o pobre e desgraçado Henrique!
As lágrimas
de Margarida rebentaram em fio; e Anselmo, tocado da generosidade e amor de
Henrique, correu a apertá-lo em seus braços.
— Sois um
homem de bem, balbuciou ele entre soluços.
— Sois por
demais generoso, Sr. Henrique, eu vo-lo agradeço; não posso eu pagar
generosidade com generosidade, mas uma mulher, aos quinze anos, na idade da
ambição e da vaidade, também sacrifica o seu título ao vosso amor! Deixarei de
ser Baronesa, mas serei a Margarida de Henrique, a quem amei sempre. Fiz-vos
mal, estorvei-vos casamentos, urdi enredos contra vós, uns após outros; mas ah!
que foi tudo levado pelo ciúme de vos ver em braços de outra. Pois bem, agora
esqueçamo-nos de tudo e vivamos um para o outro.
— Ouviremos
a missa do sétimo dia, e depois trataremos do nosso casamento.
— Sim,
marcai o dia que vos parecer; sois vós quem mandais e não Margarida.
—
Casar-nos-emos no dia em que se casar D. Carolina; quero provar-lhe que ganhei
mais do que ela.
— E Cecília
assistirá também, para que vejais que eu tinha razão.
— Nesse dia
aconselhou Anselmo, faremos coisa melhor: cumpriremos nossa promessa,
dar-lhe-emos os cinquenta contos de réis de dote, não?
— Sim, disse
Margarida, para que Rafael se apazigue comigo, pois que, instruído pela
narração de Fr. José de Santa Genoveva, quis, mal viu o Barão expirar, que eu
lhe cedesse parte do que avós vos pertencia, ou quando não, que tudo vos seria
divulgado.
— E me
importava? Ele não pensou jamais encontrar um coração como o vosso.
— Nem uma
alma como a de Henrique.
— E Daniel?
interrogou Anselmo.
— Eu vou
dar-lhe a liberdade, respondeu a Baronesa, e bem assim as cinquenta barras de
ouro que o Barão lhas havia dado, não, Sr. Henrique?
— Sim,
Margarida, que tudo podeis dispor, menos, porém...
— De quê,
senhor?
— De meu quadro.
Margarida a
sorrir-se, tanto quanto lhe pudesse dizer com os seus negros trajos,
restitui-lhe o quadro e as flores, e pediu-lhe que todos os dias a viesse
visitar.
Anselmo
ofereceu o carro ao futuro genro, e partiram ambos para a cidade.
— Ah! disse
a Baronesa vendo-o sair, nunca me enganei! Ele foi e será sempre o eleito de
meu coração! Agora, sim, possuo a felicidade completa, que nada mais desejo!
CAPÍTULO 15: O FESTIM
Há oito dias
que Henrique havia desposado a bela Margarida; contente de sua sorte, tinha
disposto tudo para um solene festim que havia terminar com um faustoso
banquete, e para isso convidou a quantos amigos tinha e a quantas pessoas
conhecia.
No aprazível
arrabalde de Botafogo, numa chácara que alugara de propósito para tal, fez levantar
um vasto avarandado em frente da casa, sustentado por cem elegantes colunas,
cujos capitéis eram como cocares de palmeiras; o teto era composto de palmas
verdes de coqueiro que formavam uma abóbada de esmeralda, e da qual pendiam
frutos de ouro; da profusão de arandelas que cingiam as colunas, e dos lustres
que caíam do teto refletiam centenares de luzes; o chão era tapizado de
vistosos tapetes, como se a terra se desabrochasse em flores; de coluna em
coluna prendiam-se gradis enastrados de flores, folhas e frutos naturais
colhidos nas chácaras ou nas florestas do Corcovado; belos divãs de veludo
verde entre pilastras e vasos simulavam assentos de grama; ricas cadeiras de
canas próprias de jardins, soberbos espelhos que ocupavam o vão de uma a outra
coluna, davam à varanda do baile um aspecto de suntuosidade, brilho e luxo de
mistura com a pompa da natureza.
O toucador
destinado para as senhoras dizia com o salão do baile: era como um caramanchão
todo de canas tecidas e entrelaçadas de passiflora com suas folhas acetinadas,
suas gavinhas de froco, com seus maracujás de ouro, seus roxos martírios de
seda; coberto de oleado imitando conchas, com assentos de veludo verde e
iluminado por globos de cores. O toucador propriamente dito, era uma cascata
toda formada de objetos de perfumaria que substituíam as conchinhas e mariscos
com primor e graça; fios de cristal que saíam da urna de um velho que nela se
recostava, e que vinham cair sobre um espelho obliquamente encravado numa
moldura como se fosse mármore, fingiam águas, completavam o tanque.
Na sala do
festim, que era sob uma alameda de mangueiras, o teto era com um dossel de
flores, donde pendiam de envolta com globos coloridos e iluminados, os frutos
que se deviam servir na ceia e esquisitos doces que os imitavam.
Aos ramos
das árvores que se cruzavam estavam ligadas por trancelins bonitas cestas de
palhinha de taquaras cheias de pombinhas brancas, de cujos bicos ondulavam
fitas com dourados dísticos.
A mesa
descansava sobre pilastras, das quais sobejavam vasos de porcelana adornados
com cardamomo, magnólias, dracenias, pulquérrimas, e independências de um
efeito maravilhoso, e figuras como que de alabastro revestiam as cabeceiras. No
meio um repuxo de mármore, de cujas águas refletiam, como que de cristal, as
luzes das arandelas presas aos troncos das mangueiras.
No fundo, no
lugar da cabeceira da mesa, onde deviam sentar-se os noivos via-se um quadro
fingindo uma fonte; no outro extremo, um bosque espesso.
O coreto da
música ocupava o centro de todo o campestre edifício, mas não era visível a
pessoa alguma.
À hora
aprazada começaram a chegar os convidados em carros ou cavalos, e eram
recebidos por Cecília e Rafael, pois que Henrique e Margarida deviam vir por
mar com Carolina e Segismundo e o Barão de Itaíba.
Brilhava a
lua, e sua frouxa e débil luz se derramava como um manto vaporoso sobre a
superfície das águas da baía de Botafogo, com seus montes de verdura e seus
gigantes de granito.
Ouviu-se uma
música bela e longínqua, e pouco depois avistou-se o escaler de Henrique todo
iluminado a espelhar-se na superfície das águas.
Tocou a
orquestra, e os convidados vieram ao encontro dos ditosos noivos.
Margarida,
conduzida por Segismundo, Carolina por Henrique, e Anselmo com seu filho,
penetraram na elegante varanda, recebendo os parabéns de toda a sociedade.
— O tal
Manuel Luís, disse o Sr. de Itaíba para um conhecido seu, não tinha tanto
gosto!
— Quem?
perguntou-lhe o moço.
— O defunto
Barão.
— Ah! pois
bastava-lhe o ser isso!
O Sr. de
Itaíba abaixou-lhe os ombros e seguiu a examinar todos os adornos.
— Que diabo!
murmurou ele, onde puseram a sala de jogo que não há saber dela?
Pouco depois
começaram as contradanças, e a varanda tomou um aspecto esplêndido.
— Não
esperáveis tanta suntuosidade, Sra. Baronesa?
— Ah! Sr.
doutor, disse Margarida, chamai-me pelo meu nome.
— Ainda o
mereceis ser, insistiu o Dr. Silva ao passar por ela num tranversé.
— Mas não o
desejo.
— E que
dizeis de tudo isso?
— Causou-me
suma surpresa, porém os convidados deviam estar à fantasia, trajando roupas de
jardineiros e gentes de campo.
— Seria belo
e até poético.
Henrique
estava satisfeito com o contentamento que lhe testemunhavam seus amigos, e para
ele o tempo corria rapidamente.
O Sr. de
Itaíba apenas roncava meio mergulhado num macio assento de relva aveludado,
aborrecido de não dar com a sala de jogo.
Às três
horas os cavalheiros, conduzindo as senhoras para a sala do banquete, começou a
ceia.
— À saúde,
disse Henrique entregando um papel a Margarida, da Sra. Baronesa do Engenho
Restaurado!
— Oh! oh!
oh! muitos parabéns! bradou o único representante que ali tinha a aristocracia,
o Barão de Itaíba, a erguer-se nas pontas dos pés.
— Hip! hip!
hip! Hurra! Repetiram todos.
— Vai à
inglesa, murmurou Segismundo ao ouvido de sua noiva.
— E
entretanto, redarguiu-lhe ela, que eu, filha de um Barão, nada tive!
— Ao depois,
com vagar, respondeu ele satiricamente; isso se arranja, é um despacho lá para
o futuro que depende do presente de cada um.
Estrondosas
gargalhadas rebentaram do extremo da mesa.
— De que se
riem eles? perguntou Henrique.
— É de um
pobre que brada aí por uma esmola a tais desoras, respondeu um dos criados.
— Um
pobre... um pobre!... murmurou Henrique erguendo-se.
— Dê-me-lhe
lá algum osso, e que se retire, disse Segismundo.
— Não! não!
bradou o novo Barão; faze entrar esse pobre e traze-o até aqui.
O criado
obedeceu.
Um velho,
coberto de sacos e andrajos, com roto e amassado chapéu pardo numa mão, já sem
forma, e um bordão na outra, chegou-se à Henrique e cumprimentou-o.
— Aqui uma
cadeira; comerá a meu lado.
— Ao pé de
minha senhora? perguntou Segismundo.
— Nesse
caso, entre mim e a Baronesa do Engenho Restaurado.
Margarida
afastou a sua cadeira com afabilidade.
O mendigo
agradeceu, e conservou-se de pé. E o silêncio era solene e majestoso.
Henrique,
servindo-se de vinho por suas próprias mãos, apresentou-lhe o copo.
— É de
Lavradio, velho e magnífico; provai-o!
— À saúde,
bradou o pobre, de quem é e será fiel ao seu juramento!
Os convidados
chegaram seus cálices aos lábios em silêncio.
Henrique e
Silva cravaram-lhe os olhos.
Então o
velho mendigo levou a mão aos cabelos e arrancou a cabeleira.
— Um frade!
bradaram todos a um tempo.
— Fr. José
de Santa Genoveva! disse Henrique abrindo-lhe os braços.
O frade
desembaraçando-se de seus andrajos, abraçou o jovem doutor e sentou-se entre
Margarida e Henrique.
— Casei-vos,
abençoei-vos, disse ele; reparti milhares de esmolas que destinastes aos
pobres, e quis também por um instante assistir a vosso festim.
Henrique,
agradecendo-lhe tanta bondade, bateu de leve no quadro que tinha por detrás de
si e que representava uma fonte, e começou a trovejar.
Uma como
chuva de gotas odorosas caía das flores sobre os convivas.
De repente
aumenta-se a trovoada, chovem confeitos como granizo, e se transforma o quadro
no retrato de Margarida todo iluminado e cercado de flores e luzes
brilhantíssimas.
As pombinhas
agitam as brancas asas em seus braços de vimes que se embalançam como que
agitados pelo sopro da viração; miríades de borboletas, trazendo em cada asa
versos alusivos ao festim, adejam e caem sobre os convidados como uma chuva de
flores.
O pano de
fundo, que representava um bosque, se arregaça, e aparece um jardim todo
iluminado; soa a música, e meninos vestidos de jardineiros executam breves e
ligeiras danças.
Os
convidados se erguem e afluem para o encantado teatro, cujas danças dão fim ao
divertimento.
CAPÍTULO 16: CONCLUSÃO
No dia
seguinte o Barão e a Baronesa, acompanhados de Anselmo, embarcavam-se para a
interessante e pitoresca Niterói e partiam para a sua Fazenda do Engenho
Restaurado, do rico município de Campos.
— Que eles
sejam felizes e que Henrique jamais se esqueça de seu juramento! disse o velho
monge recebendo a notícia de sua partida.
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