Um Homem Célebre
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou
Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a
familiaridade: — Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?
Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que
sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar
à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo,
pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo,
Rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e
patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava,
e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876.
Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo
depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso
acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a
quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao
Pestana para um obséquio mui particular.
— Diga, minha senhora.
— É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou
depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem
entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria
nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a
polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia
recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do
assobio e da cantarola noturna.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que
aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa
sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo
rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o
viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele
respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas,
tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele
recebeu-as cada vez mais enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu
licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo.
Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em
sair e saiu.
Rua fora, caminhou depressa, com medo de que
ainda o chamassem; só afrouxou, depois que dobrou a esquina da Rua Formosa. Mas
aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita,
a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em
clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar
caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu
pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o
nosso homem entrou na Rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa, viu vir
dois homens: um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a
mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram
os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado,
corria a meter-se em casa.
Em casa, respirou. Casa velha, escada velha,
um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.
— Não quero nada, bradou o Pestana: faça-me
café e vá dormir.
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a
sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro
d'alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo,
o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo
os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança
aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera
alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto
incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as
bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.
Os demais retratos eram de compositores
clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns
três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de
diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o
altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.
Veio o café; Pestana engoliu a primeira
xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a
executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande
perfeição. Repetiu a peça, depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a
uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e
executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à
segunda xícara de café.
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco
mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os
retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no
teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e
ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas
notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo
viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma
constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança
qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia,
pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a ideia conjugal
tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em
trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o
autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras
clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao
diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?
Às vezes, como que ia surgir das profundezas
do inconsciente uma aurora de ideia: ele corria ao piano, para aventá-la
inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a ideia esvaía-se. Outras vezes,
sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias
brotavam deles, como dos de Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a
imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma ideia aparecia, definida e
bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele
supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir
plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os
olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.
Duas, três, quatro horas. Depois das quatro
foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia
seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.
— Meu senhor quer a bengala ou o
chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações
do senhor eram frequentes.
— A bengala.
— Mas parece que hoje chove.
— Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
— Parece que sim, senhor, o céu está meio
escuro.
Pestana olhava para o preto, vago,
preocupado. De repente:
— Espera aí.
Correu à sala dos retratos, abriu o piano,
sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria,
uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os
anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as
notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um
tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a
bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da
parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera,
sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart.
Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte
perene.
Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu
ainda alguns pontos, quando voltou para jantar: mas já a cantarolava, andando,
na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da
paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras
polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.
— Vai fazer grande efeito.
Veio a questão do título. Pestana, quando
compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu
este: Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos
deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso
do dia, — ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa.
— Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor.
— Não quer dizer nada, mas populariza-se
logo.
Pestana, ainda donzel inédito, recusou
qualquer das denominações e guardou a polca, mas não tardou que compusesse
outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos
que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo
tempo adiante.
Agora, quando Pestana entregou a nova polca,
e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a
primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado.
Era este: Senhora Dona, Guarde o Seu
Balaio.
— E para a vez seguinte, acrescentou, já
trago outro de cor.
Pestana, ainda donzel inédito, recusou
qualquer das denominações compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma
era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa.
Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras
namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para
ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde
logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não
desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a Rua
do Aterrado.
Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de
lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados
o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra
aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos
arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a
quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma
coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser
encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava
naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e
teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da
música fácil...
— As polcas que vão para o inferno fazer
dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.
Mas as polcas não quiseram ir tão fundo.
Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas,
que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las
alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava
nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.
— Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota
ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.
— Vai casar com uma viúva.
— Velha?
— Vinte e sete anos.
— Bonita?
— Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que
ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de
Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale
menos: está tísica.
Os escrivães não deviam ter espírito, — mau
espírito, quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que
lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias
com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a
esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da
esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um
arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora,
sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e
trabalhadas.
Essa esperança abotoou desde as primeiras
horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a
alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos
dias.
Desde logo, para comemorar o consórcio, teve ideia
de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave,
Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não
querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa
difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou
ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns
concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém,
não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno;
não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com
os olhos.
— Acaba, disse Maria; não é Chopin?
Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar,
repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois
de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A ideia, o motivo eram
os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha
cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado
da ponte, caminho de São Cristóvão.
— Para que lutar? dizia ele. Vou com as
polcas... Viva a polca!
Homens que passavam por ele, e ouviam isto,
ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado,
eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao
chegar à porteira da estrada de ferro, teve ideia de ir pelo trilho acima e
esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou
a si e tornou a casa.
Poucos dias depois, — uma clara e fresca
manhã de Maio de 1876, — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito
particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que
tossira toda noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos,
abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar
com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria
não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços
do marido, apavorado e desesperado.
Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um
acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de
suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições
davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos,
adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas
composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na
cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de
lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de Labarraque, saltando sem parar,
como ao som da polca de um grande Pestana invisível.
Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única
preocupação: deixar a música, depois de compor um Requiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de
Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa
que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.
Começou a obra; empregou tudo, arrojo,
paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora,
imitando Mozart. Releu e estudou o Requiem
deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou
o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia
a alma sacra, nem ideia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o
coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluído. Redobrou
de esforços; esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas
agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora
do aniversário veio achá-lo trabalhando.
Contentou-se da missa rezada e simples, para
ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente
aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca
mais tornou ao Requiem.
"Para quê?" dizia ele a si mesmo.
Correu ainda um ano. No princípio de 1878,
apareceu-lhe o editor.
— Lá vão dois anos, disse este, que nos não
dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que
tem feito?
— Nada.
— Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão
dois anos. Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o
preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos
renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições
tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o
resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.
— Mas a primeira polca há de ser já, explicou
o editor. É urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram
chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se:
Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um bom título de ocasião.
Pestana compôs a primeira obra do contrato.
Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a
inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo,
regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas
as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma
entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia,
metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de
brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música,
despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem ideia,
tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.
Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana
dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas
o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a
preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as
alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram
menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da
primeira semana; algum prazer e certo fastio.
Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que
em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe
apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos
conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta
de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu
calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor
obedeceu.
— Mas há de ser quando estiver bom de todo,
concluiu.
— Logo que a febre decline um pouco, disse o
Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O
clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e
despediu-se.
— Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é provável que
eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando
subirem os liberais.
Foi a única pilhéria que disse em toda a
vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e
cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.
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