11/03/2017

Wolf, o nadador (Conto), de Virgílio Várzea


Wolf, o nadador 
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Depuis plusieurs dizaines d’années que le célèbre capitaine Webb a traversé la Manche, pour la première fois, de Douvres à Calais, bien des tentatives se sont succédé pour renouveler ce même exploit. Mais, jusqu’à ce jour, ce fut en vain. Par suite de la fatigue, du froid ou des courants contraires, les intrépides nageurs ont toujours été obligés d’abandonner, parfois mème à quelques kilomètres seulement de la côte française, point d’arrivée de tontes les entreprises... Wolff vient de tenter le hasard...

(Le Petit Parisien, supplément illustré, 12 août 1906)


I 
Junho corria muito alegre e suave, nesse ano de 1906, em Dover, na costa sueste de Inglaterra, à borda da Mancha (Oceanus Britannicus, dos Romanos; British Channel, dos Ingleses) bem no antigo Estreito da Gália, hoje Passo de Calais. Dover, não obstante assentar sobre as rochas escarpadas dos montes que atravessam de leste a oeste a parte sul de Inglaterra e vão morrer ao empinado cabo South — Foreland, e apesar dos seus velhos e severos castelos de outrora e das suas modernas e possantes fortificações, sorria primaveralmente pelos seus pequenos mas belos e alcandorados jardins e pomares, descendo em escalões magníficos e artísticos até as brancas coroas revoltas das vagas.

O Royal Victory Hotel — o principal dessa cidadezinha sereia dos famosos Cinco Portos militares ingleses da Idade Média, de que era chefe um lord almirante — transvasava então de milionárias e titulares famílias do high-life londrino, ali estacionando em recreio e a banhos.

A uma dessas fidalgas famílias pertencia miss Ellen Egbert, filha única de lord Charles Egbert, duque de Wessex, político e membro do alto parlamento, descendente do célebre e heroico Egbert, que vencera, em 823, a Baldred, o último rei de Kent, reunindo após, em um só reino, toda a antiga Heptarquia Saxônia da Grã-Bretanha, composta dos Estados de Essex, Wessex e Sussex.

Miss Ellen era noiva de um jovem, belo e também milionário fidalgo londrino, Jappy Wolff, que, quando ainda estudante na Universidade de Oxford, muito dera que falar pelas suas prodigalidades e extravagâncias, como pelos seus modos doidivanas e as suas loucas aventuras, das quais felizmente se regenerara já, só lhe restando agora ama alta paixão por todos os esportes — o que de resto é uma das características predominantes no temperamento inglês — mas especialmente paixão por todos os esportes arriscados e terríveis, entre os quais o mais amado e cultivado por ele era o da natação. Em torneios de natação, no Tâmisa, em Brigthon, e em outras graciosas e aristocráticas cidades balneares de Gales, da Escócia ou da Irlanda e, enfim, em toda a parte das costas britânicas, era sempre o grande vencedor, o forte campeão a quem ninguém, até ali, lograra arrebatar a palma da vitória.

Ora, uma noite de folguedos e festas no salão de honra do Royal Victory Hotel, em uma larga pausa entre concerto e danças, com a lua cheia a iluminar poética e idealmente, do alto Espaço azul ferrete e límpido, as águas ondulosas da Mancha (Moonlight in the Channel) miss Ellen que, numa vasta roda de galantes amigas e belos jovens gentlemen, junto aos balaustres de uma das longas varandas que deitavam para o mar, contemplava embevecida e sonhadoramente o espetáculo delicioso do luar sobre as ondas, a aguardar, suspirosa e terna, o noivo que saíra, havia instantes, com o pai, para o fumoir, ouviu romper de repente, entre os que a cercavam, animada e interessante palestra sobre si, ao presente, havia algum grande nadador que ousasse empreender e realizar vitoriosamente a travessia da Mancha, a nado, dali a Calais, à maneira do insigne capitão Webb, o único dos mais fortes e arrojados campeões desse esporte que isso alcançara brilhante e triunfalmente em começos do século XIX, pelo que se tornara então conhecido e apoteosado em todo o mundo culto, “mais sem dúvida — diziam — que celebrados gênios e monarcas, e mesmo talvez que o próprio NAPOLEÃO I, quando em plena glória e celebridade”.

Miss Ellen, muito interessada e a sorrir, voltou-se logo e entrou na roda, justamente ao momento em que se acendiam já controvérsias sobre os principais nadadores britânicos capazes de semelhante esforçada e dificílima empresa, em que, depois de Webb, tantos e tamanhos heróis da natação, em todo o globo, tinham inteiramente fracassado ou naufragado, na maior parte já quase a alcançar a vitória, a poucas milhas da meta almejada. Citavam-se, com vivacidade e entusiasmo, os célebres atletas do mar que haviam tentado intrepidamente, em várias épocas, repetir Webb, mas saindo-se sempre malogrados, como Holbein, Horace, Mew, Burgesse miss Kellermann, a célebre australiana, tão justa e gentilmente apelidada a “Sereia de Sydney” ou a “Rainha do Mar”. E mencionavam-se também, por entre exclamações de orgulho e encanto, as mui celebradas e queridas aventuras de BYRON que, nesse gênero, eram verdadeiras maravilhas, como, primeiro, a travessia do Bósforo, em 1810, feita por estranha fantasia e inaudito espírito artístico, imitando o simpático e amoroso herói da emocional lenda mítica dos Amores de Leandro e Hero, herói que todas as noites atravessava o Helesponto para ir ver a sua amada e, numa delas, pereceu sob horrível tempestade; depois, as largas e perigosas travessias do Adriático, de Lido à Veneza, a pitoresca “Princesa das Águas”...

E a discussão prosseguia, cada vez mais atraente e renhida, quando miss Ellen, até ali silenciosa, exclamou, com grande alegria e entusiasmo:

— Atravessar hoje a Mancha, a nado, meus amigos, não é, decerto, coisa fácil... Mas há ainda quem o faça, e gente da nossa forte e nobre raça, como Webb, o rei dos nadadores... E não está longe daqui aquele que virá a ser dentro em pouco, asseguro-lhes, o segundo herói dessa façanha, nas águas... Afirmo-lhes sob palavra de honra, que, desta vez, antes de nos recolhemos a Londres, terão a dita, os senhores, de assistir, como eu, a esse raro e esplêndido espetáculo... O novo herói da travessia da Mancha, a nado, será Jappy Wolff, meu noivo...

Todos, numa grande surpresa e vibrados de vivo júbilo pela inesperada revelação de miss Ellen, prorromperam em ruidosa e fraternal aclamação ao camarada ausente:

Hurrah a Jappy Wolff!... Hurrah a Jappy Wolff!...

E lamentavam não o terem lembrado desde o começo da palestra. Por isso, e procurando corrigir de pronto essa involuntária falta, disseram ainda, mui afáveis e lisonjeiros para com a linda filha do nobre duque de Wessex:

— É verdade, miss Ellen, e nós que, sem querer, nos olvidávamos de Wolff, do nosso caro e bravo Wolff! Sim, Wolf poderá, talvez, realizar tão grande e temerária empresa... Se ele quiser, e convenientemente se preparar para isso, virá a alcançar, quem sabe? como Webb, o mais completo triunfo... Mas é difícil, bem difícil, miss Ellen...

E logo, com miss Ellen, entraram a chamar afetuosamente por Wolff, que demasiado se demorava, com o duque, no fumoir.

Wolff apareceu imediatamente, a sorrir, no seu todo alto e atlético, admirável e excepcionalmente atlético, apesar da sua justa mas elegante casaca, traje que atenua ou diminui consideravelmente a corpulência dos que o vestem. E, ao chegar-se à noiva e aos amigos, pediu-lhes desculpa da demora.

— Estivera com o duque assistindo a uma mui disputada partida de whist, entre alguns íntimos, que insistiam com ambos para que esperassem pelo desfecho... Acabada a partida, apressara-se em volver ali, com ansiedade, como era natural... Fora essa a única e verdadeira causa da demora... Perdoassem-lhe...

Os amigos acudiram, em coro:

— Perfeitamente, Wolff, perfeitamente. Tão gentil explicação era, decerto, escusada...

Em seguida, miss Ellen entrou a narrar minuciosamente ao noivo a palestra e discussão em que ela e todos da sua roda tinham andado empenhados entusiasticamente, momentos antes, dizendo-lhe, por fim, que acabara de afirmar a todos que ele seria capaz de atravessar a Mancha, a nado, dali a Calais, contando com todas as probabilidades de êxito, senão com inteiro êxito...

Ele pôs-se a olhar, por momentos, com ar grave e pensativo, a amplidão do Estreito, em cujas vagas o luar fulgurava soberba e magicamente; e, depois, a sorrir e a menear a cabeça, em sinal de dúvida, murmurou, pausadamente, como pesando bem as palavras:

— Sim, Ellen, talvez... Mas é difícil, muito difícil, querida!...

Ela retrucava docemente, a fixá-lo muito com os seus olhos de um ideal azul celeste, vivos, meigos, carinhosos:

— Oh! não, my dear! Difícil, por quê?... Em natação, creio, não há nada impossível para ti. Vá! começa, amanhã mesmo, a ensaiar-te, “treinar-te”, a preparar-te, prévia o convenientemente, em longos cursos de natação pela costa e ao largo — e arroja-te após, brava e decisivamente, à grande travessia da Mancha, da qual, sem dúvida, hás de sair vitorioso... Sim, tornar-te-ás um novo Webb, estou certa, um herói da natação e do Mar... Resolve-te, anda! E promete-me a mim, e a todos estes bons amigos, que farás, daqui a semanas, daqui a um mês, embora, mas antes do nosso regresso a Londres, sim?!...

A roda de misses e children ali presente estreitava-se pouco a pouco em torno a Jappy Wolff, e todos, fazendo coro com Ellen, ansiosos por testemunharem um espetáculo, para eles ainda inteiramente desconhecido e novo, e que talvez não pudessem presenciar jamais, — rogavam-lhe também que se decidisse, de uma vez, a tentar a difícil mas honrosa aventura...

Houve um momento de silêncio. Wolff, numa atitude recolhida, pensava. O leviano, o estroina, o irrefletido de outrora, tinham já, para sempre, desaparecido nele, particularmente agora na “fase do ouro” em que andava — o noivado. Já também orçava pelos seus trinta e seis anos, embora parecesse ter apenas trinta: e nessa idade, nos homens cultos sobretudo, as ações costumam ser, em geral, previamente meditadas para terem realização firme, eficaz... A empresa e aventura a que aqueles íntimos, e principalmente a noiva, tão insistente e entusiasticamente o concitavam, tentavam-no sobremodo, sem dúvida, tanto como à sua vaidade e paixão de bravo e íntegro sportsman, bem assim às suas grandes ambições e aspirações de glória... Entretanto, o empreendimento era difícil, senão impossível... Temia bem um malogro, um fracasso, posto que, se tal porventura sobreviesse, em nada lograsse diminuí-lo, perante si mesmo, perante a noiva e perante a sua roda social... Mesmo que não pudesse levar inteiramente a cabo semelhante tentámen — e o único resultado mais certo seria sem dúvida esse — ainda assim lhe restaria, como sucedeu a muitos outros famosos nadadores, o já não pequeno triunfo de o haver arrojada e heroicamente tentado. Isso, e acima de tudo a impressiva sugestão da noiva, a quem louca e fundamente amava, o decidiram, por último, a aceitar denodadamente a formidável empresa. Voltou-se, então, para a noiva e para os amigos, e prometeu-lhes, formal e solenemente “que, dali a um mês, mais ou menos, depois do indispensável preparo e “trenagem”, tentaria a travessia da Mancha, a nado, de Dover a Calais”.

E logo todos, com Jappy Wolff e a noiva à frente, se precipitaram alegre e ruidosamente no salão, anunciando a “grande nova” à alta sociedade ali presente.

Então os hurrahs ao futuro herói da travessia da Mancha se repetiram geralmente e sem conta, constituindo o grande clou daquela deliciosa noite de danças e cantos, no Royal Victory Hotel, em Dover.

II 
Desde esse dia, Jappy Wolff entrou, com efeito, a “treinar-se” serena e metodicamente, conforme o seu temperamento de inglês e de forte e a sua educação e tirocínio de perfeito sporstman, para o grande feito projetado. O percurso de natação que ia constituir esse feito (percurso a abranger a extensão de trinta quilômetros, que é a distância existente entre as duas cidades Dover Calais), já lhe não era totalmente estranho, desconhecido, o que todos da sua roda absolutamente ignoravam, à exceção do seu bom amigo, o comodore Francis Watchel, ao momento na estação naval da Austrália. Três anos antes, no verão de 1903, quando já recolhida à capital britânica a fina sociedade nessa época aí a banhos, ele e aquele ilustre marinheiro então licenciado, pretextando uma excursão à França, tinham-se passado a Calais, de onde logo volveram, a fim de tentarem ambos a travessia da Mancha, mas de modo inteiramente segredeiro e às ocultas (para que, em caso de malogro, ninguém jamais o soubesse), na primeira noite propícia que se lhes oferecesse, nessa quadra sempre ali a mais favorável do ano. Preparado tudo, os dois, seguidos por uma pequena embarcação de pesca, tripulada por antigos marinheiros de guerra conhecidos de Watchel, e fretada exclusivamente para tal fim, atiraram-se à travessia que, apesar de todos os esforços, ficara apenas em meio, logrando, porém, Wolff ir além do intrépido companheiro cerca de uma milha, mas recolhendo-se ao barco em estado de extrema fadiga. A experiência dessa primeira tentativa, embora frustrada, fora também uma das razões que levaram Wolff a aceitar agora, não sem muito refletir, contudo, o mesmo empreendimento, o qual, entretanto, ia passar aos olhos dos amigos e de todos como inteiramente novo.

Assim, pois, com a grande e custosa experiência que já tinha dos embaraços de toda a ordem a vencer para levar a efeito, com as maiores probabilidades de êxito, o formidando intento, havia ainda que armar-se e precaver-se (já não falava contra a distância, que era em verdade o principal óbice) mas contra as vagas sempre altas e bravias, contra as correntes violentas, contra as várias temperaturas das águas do Canal, além do salitre do mar e do sol intenso, porque devia realizar a travessia durante o dia e com bom tempo, o que lhe era indispensável para afastar a congelação, sempre maior à noite, qual é óbvio, pelo forte abatimento da temperatura e o predomínio dos ventos álgidos de terra e do largo, como sói ser em toda a zona tropical, máxima naquela latitude europeia. Por isso, mandou preparar um óleo apropriado para untar o corpo, calções de flanela leve e uma espécie de capacete de linho branco formando meia máscara à frente, munida de vidros como óculos e estendendo uma pequena capa sobre o dorso, a proteger-lhe as espáduas.

Tais precauções e aprestos haviam sido esforçadamente tomados, unidos a uma constante “treinagem”, executada diariamente, às madrugadas, ao longo da costa e ao largo de Dover, desde as proximidades do South — Foreland, ao nordeste, até quase as imediações de Folkstone, ao sudoeste, em percursos que atingiam, às vezes, dez quilômetros...

Afinal chegara o estio, a estação em que os céus e as águas da Mancha são mais brandas e tépidas, e os ventos menos frios e rijos, como as ondas mais serenas e mansas. A grande travessia devia ser feita nos primeiros dias de agosto.

Na noite de 2 desse mês, como o tempo estivesse magnífico e prometesse aguentar assim toda aquela semana, ficou definitivamente assentado que na manhã seguinte — um sábado — ainda escuro, pelas cinco horas, Wolff, dando começo à travessia, lançar-se-ia a nado em direção a Calais, procurando, quanto possível, para não delongar o caminho, manter-se em reta natatória a rumo de lessueste, sobretudo, às primeiras horas, antes de poder marear seguramente um ponto em terra, em Calais, para sua orientação, embora se fizesse acompanhar — como é indispensável em tais casos — de uma pequena embarcação de socorro.

A embarcação para isso escolhida fora a bela lancha de pesca que tinha o expressivo nome de Hope, esperança. Era tripulada por quatro remadores e um patrão, hercúleos e veteranos marinheiros, perfeitos nadadores, como todo o bom marujo inglês. Sexta-feira, à noite, já esse barco ficara fundeado a poucos metros da ponta sueste da cidade, de onde seria a partida. Tinha a bordo, além da guarnição, tudo quanto, em recursos, fora julgado indispensável ao nadador e à sua empresa — aparelhos de pronta salvação para um caso de súbito delíquio nas águas, remédios e instrumentos cirúrgicos, bem assim alimentos convenientemente preparados para serem tomados à ligeira e jogados ao campeão, por meio de fios de vela, sem lhe interromper ou retardar a marcha, etc.

Com as notícias que se espalharam semanas antes sobre a projetada empresa marinha, tornou-se indescritível, verdadeiramente indescritível, o movimento de Dover, nessa linda sexta-feira de estio, após a chegada do primeiro comboio de Londres e dos primeiros vaporzinhos de Calais, conduzindo multidões de curiosos de todos os pontos da Inglaterra e da França, principalmente das respectivas capitais. Os repórteres da imprensa desses dois países, especialmente de Londres e Paris, invadiam numerosamente o Royal Victory Hotel, a entrevistarem, a todo o instante, Wolff, a fim de comunicarem, telegraficamente, aos seus jornais todas as minúcias e preparativos do grande campeonato. A noite desse dia até a madrugada os hóspedes do hotel a passaram, a bem dizer, em vigília, exceto, talvez, Wolf, que, muito calmo e senhor de si na aparência pelo menos — às 10 horas em ponto depois de despedir-se da noiva e de todos, se recolhera aos seus aposentos a entregar-se ao indispensável repouso do sono, o qual era exata e sistematicamente observado havia já alguns dias, para que pudesse seguramente contar com a perfeita integridade dos seus músculos, da sua intrepidez, durante a enorme travessia.

Mas quem não sossegara nem dormira nessa noite, e com razão, fora decerto miss Ellen...

III 
O grande relógio do torreão central do Royal Victory Hotel batia 4 1/2 da manhã quando Wolff, abotoado num sobretudo de capuz, que lhe ia da cabeça aos pés, e já completamente preparado para dar começo ao seu intento, apareceu no salão, sob uma extraordinária salva de palmas e hurrahs aclamadores, que partiam de todos os hóspedes e dos representantes da imprensa anglo-francesa ali presentes. E o moço nadador, dando o braço a miss Ellen, que já o aguardava no salão em companhia dos pais, desceu as escadas, encaminhando-se para o local da partida. À porta do hotel foi vivamente saudado pela multidão que aí se aglomerava e que, formando longo préstito, o seguiu até a praia. Já aí se achavam, além de outras autoridades menores, o comandante militar, o prefeito da cidade e um novo ajuntamento de curiosos que vinham assistir à partida e que muito o vitoriaram apenas o viram chegar...

A madrugada, límpida e estrelada, parava-se em esplêndida calmaria, só levemente cortada de um sopro de terral. A oeste, a lua, em minguante, como uma solitária e pequenina gôndola de prata na laguna azul do céu, ia a desaparecer no horizonte arrastando ainda poeticamente, no mar, o seu véu de brilhos lácteos. As ondas em bonança da Mancha, não obstante rolando sempre empoladas, permaneciam ainda em sombra, salpicadas aqui e além do clarão dos faróis dos navios de guerra e mercantes ancorados no porto e das luzes miudinhas dos rebocadores e botes do tráfico que se aglomeravam nas águas, em torno da Hope, a qual pairava já sobre remos, pronta a largar, apenas Wolff se jogasse ao mar, dando começo à travessia.

A bordo dessa embarcação de pesca viam-se agora, afora a companha, o capitão-tenente Bath e o Dr. Loke, médico da armada, ambos servindo na Defesa Móvel de Dover, os quais, como amigos de Wolff, tinham ajustado acompanhá-lo — o primeiro para dirigir convenientemente as manobras que se fizessem acaso necessárias, o segundo para prestar quaisquer socorros médicos ou cirúrgicos que porventura se tornassem indispensáveis ao nadador, durante o grande percurso marinho. Além desses, iam dois highlanders escoceses, tocadores de cornamusa, que Wolff mandara vir especialmente para alegrar e suavizar o monstruoso tour de force que ia fazer naquele seu terrível e brutalíssimo esporte.

Eram 5 horas da manhã e apontavam a leste as primeiras barras do dia, quando, após trocaram-se os derradeiros adeuses entre Wolff e os circunstantes, e após aquele abraçar e beijar docemente a noiva, o comandante militar de Dover, almirante Seymour, e o duque de Wessex dirigiram-se com ele para a ponta sueste da cidade, a poucos passos dali. Apenas chegados, ao extremo desse minúsculo promontório, Wolff despiu o sobretudo e, à voz do almirante, dando o sinal de partida, jogou-se imediatamente ao mar, de cabeça, indo surdir já a grande distância, depois de um fundo e longo mergulho...

Todos, em terra, prorromperam, então, num uníssono de hurrahs prolongado e ruidoso, acompanhados pela entusiástica maruja das pequenas embarcações que flutuavam em volta.

A esse tempo, também, embarcados os repórteres dos principais jornais de Londres e Paris, a Hope se fazia ao largo, a remadas espaçadas e lentas, seguindo o jovem e heroico nadador, em rumo certo a Calais.

E um fio da melodia entrou a desenrolar-se pelo Espaço e sobre as águas, aos clarões triunfantes da manhã que subia iluminando tudo. Eram os dois tocadores de big-pipe que Wolff, certamente por fantasia e poesia, contratara para o acompanharem, a bordo da Hope, executando as características músicas populares das suas montanhas da Escócia. Mas não fora somente por fantasia e poesia que ele os mandara vir, senão também “porque — segundo as próprias palavras de Wolff — ninguém fazia ideia do quanto o som daqueles instrumentos amenizava as agruras de semelhantes tentâmens, animando e embalando em suavidades ideais o coração e o espírito dos sportmen do Mar...

A multidão de espectadores de Dover, e principalmente miss Ellen, acharam encantadora a lembrança de Wolff fazer-se acompanhar pelos tocadores de cornamusa...

Mas o sol surgia gloriosamente, cobrindo de uma mágica polvilhação de ouro as águas verdes da Mancha e as altas rochas de Dover, avistando-se então nitidamente toda a larga extensão do Canal até certa altura, e dali por diante nebulosamente a sombra da margem fronteira, onde Calais se mostrava, ou melhor, se adivinhava sob uma névoa longínqua. De vez em quando, grandes steamers, pequenos paquetes e barcos de vela cruzavam ao largo — para o norte, para o sul...

Nesse instante, o valente e atlético nadador estava já a mais de dois quilômetros da costa, vendo-se-lhe apenas, cada vez mais reduzido pelo afastamento e a distância, o capuz de linho branco que, por sotavento da Hope, a singrar a seu lado, a remos, flutuava, flutuava, para além, para além...

A essa hora, miss Ellen, já de volta ao hotel com seus pais, postada a uma das largas varandas do prédio, saudosa e ansiosamente seguia, com o olhar, através de um belo binóculo de alcance, a rota natatória do noivo, o qual, mais por sua causa, quem sabe que por vaidade ou glória próprias, lá ia a braços com o Mar na travessia da Mancha...

Em toda Dover, desde os cais até os mais altos rochedos, a multidão acompanhava também o arrojadíssimo sportman, fundamente sôfrega e curiosa pelo resultado final daquela tremenda empresa.

Mas, pela tarde, a distância e a neblina vieram ocultar totalmente o emocional cenário, o que foi para a formosa miss Ellen um motivo de tristeza, atenuado, porém, pela certeza que tinha de que, apenas caísse a noite, receberia sem dúvida a bela nova telegráfica do grande triunfo do noivo...

IV 
Felizmente, tudo correra bem para o grande nadador até ao meio do canal, onde chegava a uma hora da tarde, vencendo a distância à razão de dois quilômetros horários, mais ou menos, com repousos de dez minutos em flutuação de dorso, durante os quais a lancha se lhe aproximava, fornecendo-lhe alimentos e água e vinho, ou conhaque.

Os de bordo, muito satisfeitos e já decerto a contarem que o mais completo sucesso coroaria a estranha empresa, vivavam, de instante a instante, ao possante e audaz Wolff, aclamando-o, num delírio, o “maior herói da Mancha”.

Mas a brisa de nordeste entrara de refrescar e as ondas, mais alterosas então e mais cobertas de espuma, castigavam de través o insigne nadador, obrigando-o a aumentar, pouco a pouco, o esforço muscular que trazia, por braçadas mais possantes. E assim, atingido o 21º quilômetro pelas 4 1/2 horas, Wolff principiou a sentir-se invadido de uma crescente fadiga, ao mesmo tempo que a temperatura se lhe baixava, ao embate das fortes correntes frias que, agora, a muito custo rompia.

Esforçava-se, entretanto, com grande ânimo e espírito. Então, só nove quilômetros faltavam, ao fim dos quais estava a vitória suprema, estava o triunfo olímpico!

Os repórteres anglo-franceses continuavam a vivá-lo com maior júbilo ainda, bem como os dois marinheiros de guerra e a maruja da Hope, singrando a rumo direito. E os tocadores de cornamusa vibravam, incessantemente, as canções do seu país...

Nessa ocasião, em Calais, já todo o povo da cidade, tresdobrado em número pelos curiosos que haviam chegado de véspera, de Paris e mais cidades francesas, apinhava-se nas eminências e sobre a linha do cais, para ver, sensacionado, o bravo sportsman inglês que, pelos modos e a altura em que vinha, ia consumar triunfalmente, quase um século depois, façanha igual à de Webb, nessa imensa travessia.

E embarcações de toda a ordem, pequenas e grandes, conduzindo autoridades militares e civis, bem assim jornalistas e homens de letras, diretorias de sociedades esportivas e outras, cruzavam já, em enxames, por todo o ancoradouro, a fim de homenagearem ao insigne nadador...

Entretanto, ao largo, vento e mar continuavam mais altos, mais rijos. E Wolff, ao alcançar o 27º quilômetro, pelas 7 horas, e já num supremo e derradeiro esforço, era arrancado às medonhas correntes do Canal e recolhido à Hope, totalmente extenuado.

Perdera a gigantesca partida, por três quilômetros apenas!...

V
Como fosse impossível regressar naquela mesma noite a Dover, a Hope prosseguiu na sua rota, com proa a Calais, a toda a força de remos. E às 8 menos um quarto, escoltada festivamente da enorme flotilha de embarcações francesas que a fora receber, atracava ao principal molhe da pitoresca cidadezinha que dá o seu nome ao antigo e célebre estreito da Gália, sendo então Jappy Wolff festejado loucamente pela multidão em júbilo e proclamado por todos o “maior dos nadadores”.

Na madrugada seguinte, sempre em perene ovação, o “louro atleta das vagas, vencedor do mar da Mancha”, como o chamara a grande imprensa francesa, regressava, com os companheiros, à bela e rochosa Dover, num dos vapores do Canal que embandeirara em arco para festejar também o ínclito “rei do oceano”, conforme a frase do Times, enquanto a Hope, a bela barca de pesca que o acompanhara em todo esse largo trajeto de mar, célebre agora para sempre, volvia igualmente ao seu rancho ou à sua rude faina, de velas soltas ao vento, com os tripulantes a cantarem alegres canções marujas...

Embora não houvesse conseguido realizar inteiramente o seu formidável intento, Jappy Wolff foi recebido em Dover com as mais significativas e brilhantes homenagens, à maneira de um antigo herói romano ao volver vitorioso de gloriosas batalhas, porquanto, se ele não alcançou por completo o triunfo de atravessar a Mancha de praia a praia, entre aquela cidade e Calais, tornou-se, sem dúvida, em meio dos maiores nadadores do mundo, o único que, depois de Webb, logrou fazer, em 14 horas apenas, tamanha e tão revolta extensão de águas salgadas, a nado e à força de entrain e de incomparáveis músculos.

Domingo, 4 de agosto, à tarde, ao saltar com a noiva em Charing— Cross, Jappy Wolff foi aclamado, pelo povo de Londres, “o primeiro nadador do globo e o segundo herói da Mancha”. E, um mês depois, ainda sob os esplendores da sua alta façanha, celebrava as suas núpcias, com vivo júbilo e pompa, em plena corte inglesa, tendo a paraninfar esse ato o grande EDUARDO VII, rei da Grã-Bretanha e imperador das Índias, atualmente talvez o maior dos soberanos, com imenso e inigualável domínio sobre a Terra e sobre os Mares...

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