12/06/2017

A Cadeirinha (Conto), de Afonso Arinos


A Cadeirinha

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Naquele fundo de sacristia, escondida ou arredada como si fora uma imagem quebrada cuja ausência do altar o decoro do culto exige, encontrei a cadeirinha azul, forrada de damasco cor de ouro velho. Na frente e no fundo, dois pequenos painéis pintados em madeira com traços finos e expressivos. Representava cada qual uma dama do antigo regime. A da frente, vestida de seda branca, contrastava a alvura do vestido e o tênue colorido da pele como negrume dos cabelos repuxados em trunfa alta e o vivo carmim dos lábios; tinha um ar desdenhoso e fatigado de fidalga elegante para quem os requintes da etiqueta e galanteios dos salões são já coisas velhas e comezinhas. A outra, mais antiga ainda, trazia as melenas em cachos artísticos sobre as fontes e as pequeninas orelhas; um leque de marfim semiaberto comprimia-lhe os lábios rebeldes que queriam expandir-se num riso franco; os olhos grandes e negros tinham mais paixão e mais alma. Esta contemporânea de La Vallière, que o artista anônimo perpetuou na madeira da cadeirinha, não se parecia muito com aquela meiga vítima da régia concupiscência; ao contrario, um certo arregaçado das narinas, uma ponta de ironia que lhe voejava na comissura da boca breve e enérgica — tudo isso mostrava estar ali naquele painel representada uma mulher meridional, ardente e vivaz, pronta ao amor apaixonado ou à luta odienta. Aqueles mesmos bicos alvos de renda que, acompanhando a curva do decote, pareciam recortar o moreno jambeado daquele colo de sultana, os mesmos bicos de renda estavam a dizer, sobre o doce palor amorenado do colo, que a dama dos olhos ardentes tinha escondidas no canto dos lábios a doçura da ambrosia e a peçonha da serpente.

Sem querer acrescentar mais ao já dito sobre as damas, perguntava de mim para mim si o pintor do século passado, ao traçar com tanta correção e finura os dois retratos de mulher, transmitindo-lhes em cada cabelo do pincel uma chama de vida, não estaria realmente diante de dois espécimes raros de filhos de Eva, de duas heroínas que por serem de comédia ou de ópera nem por isso deixam de o ser da vida real?

— Quem sabe se a Fontanges e a Montespan?

— Qual! impossível!

— Impossível, não! porque a cadeirinha podia perfeitamente ter sido pintada em França e era até mais natural crê-lo; porquanto a finura das tintas e a correção dos traços pareciam indicar um artista das grandes cortes da época.

E assim, em tais conjecturas, pus-me a examinar mais detidamente o velho e delicado veículo, relíquia do século passado, sobrevivendo não sei porque na sacristia da igreja de um modesto arraial mineiro. Os varais, conformes à moda bizarra do tempo, terminavam em cabeças de dragões com as fauces abertas e sanguentas e os olhos com uma expressão de ferocidade estúpida. O forro de cima formava um pequeno dossel de trono senhorial; e o ouro velho do damasco que alcatifava também dois dois assentos fronteiriços não tem igual nas casas de modas de agora.

Qual das matronas de Ouro-Preto, ou das cidades que como esta alcançam mais de um século, não terá visto, ou pelo menos ouvido falar com insistência, quando meninas, nas cadeirinhas conduzidas por lacaios de libré, onde as moçoilas e as damas de outrora se faziam delicadamente transportar?

Quem não fará reviver na imaginação uma das cenas galantes da cortesia antiga em que, através da portinhola cortada de caprichosos lavores de talha, passava um rostosinho enrubescido e dois olhos de veludo a pousarem de leve sobre o cavaleiro de espadim com quem a misteriosa dama cruzava na passagem?

Também, ó pobre cadeirinha, lá terias o teu dia de caiporismo: havia de chegar a hora em que, em vez dos saltos vermelhos de um sapatinho de cetim calçando um pesinho delicado, teu fundo fosse calçado pela chanca esparramada de alguma cetácea obesa e tabaquista. Como havia de gemer então a alcatifa de damasco cor de ouro velho revoltada contra semelhante profanação: — alguma mulata velha e alentada, apreciadora da mecha ou do rolão, a refocilar-se na cadeirinha, espalhando a toucinheira das nádegas num dos assentas fronteiriços!

Nem foram desses os teus piores dias, ó saudosa cadeirinha! Já pelos anos de tua velhice, quando, como agora, sobrevivias ao teu belo tempo passado, quando, perdidos teus antigos donos, alguém se lembrou de carregar-te para a sacristia da igreja, não te davam outro serviço que não o de transportares, como esquife, cadáveres de anjinhos pobres ao cemitério, ou semelhante às maças das ambulâncias militares, o de conduzires ao hospital feridos ou enfermos desvalidos.

Que cruel vingança não toma aquela época longínqua por lhe teres sobrevivido! Coisa inteiramente fora da moda, o contraste flagrante que formas com o mundo circundante é uma prova evidente de tua próxima eliminação, ó velha cadeirinha dos tempos mortos!

Mas, é assim a vida: as espécies, como os indivíduos, vão desaparecendo ou se transformando em outras espécies e em outros indivíduos mais perfeitos, mais complicados, mais aptos para o meio atual, porém muito menos grandiosos que os passados. Que figura faria o elefante de hoje, resto exótico da fauna terciaria, ao lado do megatério? A de um filhote deste. E no entanto, bem cedo, talvez nos nossos dias, desaparecerá o elefante, por já estar em desarmonia com a fauna atual, por constituir já aquele doloroso contraste de que falamos acima e que é o primeiro sintoma da próxima eliminação do grande paquiderme. Parece que o progresso marcha para a dispersão, a desagregação e o formigamento. Um grande organismo tomba e se decompõe e vai formar uma inumerável quantidade de seres ávidos de vida. A morte, essa grande ilusão humana, é o início daquela dispersão, ou antes a fonte de muitas vidas. E que grande consoladora!

Lembra-me ter visto, há tempos, um octogenário de passo trôpego e cara rapada passeando em trajes domingueiros a pedir uma carícia ao sol. Dirigi-lhe a palavra e detivemo-nos largo espaço a falar dos costumes, das coisas e dos homens do outro tempo. Nisso surpreendeu-nos um magote de garotos que escaramuçou o velho a vaias. O pobre do ancião já ia seguindo seu caminho quando o abordou a meninada; não apressou o passo nem perdeu aquela serenidade de quem já tinha domado as fúrias das paixões com o vencer os anos. Vi-o ainda voltar-se com o rosto engelhado numa risada tristíssima, a comprida japona abanando ao vento e dizer, em tom de convicção profunda: "Ai dos velhos, se não fosse a morte!" Parecia uma banalidade, mas não era senão o apelo supremo, a prece fervente que esse exilado fazia a Deus para que pusesse termo ao seu exílio, onde ele estava fora dos seus amigos, dos seus costumes, de tudo quanto lhe podia falar ao coração. O próprio aspecto da terra não era o mesmo que no seu tempo, porque também os riachos mudam de leito, as grandes árvores tombam e o solo se rasga em fundos precipícios à ação pertinaz das chuvas.

Porque, pois, a pobre cadeirinha, esse mimo de graça, esse traste casquilho, essa fiel companheira da vida de sociedade, da vida palaciana, da vida de corte com seus apuros e suas intrigas, suas vinganças pequeninas, seus amores, para que sobrevive e porque a não pôs em pedaços um braço robusto empunhando um machado benfazejo? Ao menos evitaria esse dolorosíssimo ridículo, essa exposição indecorosa de nudez de velha!

Já tiveste dias de glória, cadeirinha de outros tempos! Pois bem: desaparece agora, vai ao fogo e pede que te reduza a cinzas! É mil vezes preferível a essa decadência em que te achas e até mesmo à hipótese mais lisonjeira de te perpetuarem num museu. Deves preferir a paz do aniquilamento à glória de figurares numa coleção de objetos antigos, exposta à curiosidade dos papalvos e às lorpas considerações dos burgueses, mofada e tristonha. Morre, desaparece, que talvez — porque não? — a tua dona mais gentil, aquela para quem tuas alcatifas tinham mais delicada carícia ao receber-lhe o corpinho mimoso, aquela que rescendia um perfume longínquo do roseiro do Chiraz talvez te conduza para alguma região ideal, dourada e fugidia, inaccessível aos homens...

Desaparece, aniquila-te, ou foge, cadeirinha! Lá, naquela mansão bem-aventurada, pegarão teus varais, não lacaios de libré, mas alvos mancebos de vestes brilhantes e olhar atrevido. Estes conduzirão através de nuvens a criatura feiticeira que encantou o seu tempo e que deixou impressa no tabuado de teu fundo, ó cadeirinha de outras eras, como uma carícia eterna, a lembrança do contato de um pé-taful, calçadinho de cetim.

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