12/07/2017

Nas águas do mar (Conto), de Coelho Neto


Nas águas do mar
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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O púlpito da sua maior eloquência não tinha entalhes preciosos nem recamos clássicos, por ele não andara o formão nem a goiva o cavara; por ele não se enastravam folhagens nem anjos o rodeavam, em coros jocundos, soprando tubas ou tangendo harpas — o púlpito de sua maior eloquência foi um bruto e desconforme penhasco, negro e calvo, fincado nas areias de beira-mar. Da sua base a onda fervia e o verde e pútrido sargaço formava uma orla verde. Ali pousavam as gaivotas nos dias azuis, ali refugiavam-se as procelárias quando os grandes ventos conflagravam os mares, dali falou o santo aos peixes.

Não era Antônio um frade do abismo, posto que as fundas águas de esmeralda também possuam congregações religiosas. Heine faz menção de dois ou três bispos marinhos, que deram à costa nos frios litorais do Norte, arrojados à praia por algum vagalhão herético ou colhidos na rede dum pescador ousado.

Antônio, nascido em Lisboa, era frade paduano e a razão que alegam os seus biógrafos, explicando o seu capricho de pregar aos peixes, é ponderosa. Os homens, incrédulos e desatentos, faziam ouvidos de mercador às suas santas palavras. Debalde ele os chamava para a virtude, debalde lhes prometia a bem-aventurança, os ingratos achavam maior prazer no vício e preferiam a vida terrena, que conheciam, à outra que era apenas uma hipótese de pregadores. “Mais vale um pássaro na mão que dois voando”, diziam e a igreja ficou às moscas.

Eis porque o santo resolveu pregar aos peixes.

Logo que ele surgiu no cimo do penhasco acardumou-se o mar que, de verde que era, ficou colmado de prata — robalos, badejos, sardinhas, pescadas, baleias monstruosas, tubarões vorazes, linguados, raias, polvos, enguias, todos os representantes do povo escamoso, acudindo apressadamente dos antros, subiram à tona do mar plácido e ouviram devotamente a pregação do frade.

Antônio falou com muita inspiração referindo-se aos gozos enganadores e efêmeros da vida e, quando aludiu ao céu, foi tal o poder da sua palavra inflamada que os peixes entraram a flagelar o mar com as barbatanas, que é assim que os peixes manifestam o seu entusiasmo. Alguns, mais sensíveis, ficaram com os olhos marejados, e, convertidos, levantaram um grande e atroante clamor, pedindo o batismo.

Desceu Antônio do penhasco e, como os catecúmenos estivessem na melhor das pias, limitou-se a pronunciar as palavras sacramentais, dando a cada um o nome que lhe subiu à boca naquela hora milagrosa e foi assim que os peixes ganharam os nomes porque são hoje conhecidos nos mercados.

Finda a pregação, despediu o santo o seu auditório e desceu do sáxeo púlpito. Foi, então, uma alegria imensa no mar. Os peixes, confiando na promessa de paz que lhes fizera o santo, saíram contentes nadando à flor das águas que o luar fazia de prata.

As baleias golfavam trombas espumosas, os botos viravam as mais arriscadas cambalhotas, as raias saltavam caindo de chapa na água, com estrépito, e as sardinhas, aos milhares, toldavam o mar semelhando ilhas brancas e resplandecentes que fulguravam ao luar. Só um velho espadarte, desconfiado e prudente, em vez de sair em triunfo apregoando a bondade do propagandista e a facúndia do orador, como faziam os seus irmãos, desceu a meter-se na lapa mais funda, entre as mais enredadas algas, buscando, com dificuldade, encravar-se nos labirintos de coral, e quieto, lá se deixou ficar a ver em que paravam as modas.

Ali jazia mestre espadarte quando viu passar uma gorda tainha, muito garrida, a dar de cauda, com pressa, como se fosse ligeiramente a algum negócio urgente.

— Irmã tainha, perguntou o matreiro peixe, onde vais tão taful e com tamanha azáfama e açodamento?

— Onde vou? Que pergunta! Vou gozar o luar que lá em cima esplende e vou aspirar o aroma que chega dos jardins da terra.

— E não receias o anzol e a rede do pescador?

— O anzol e a rede? Pois não ouviste o sermão do santo, irmão espadarte?

— Ouvi, irmã; ouvi e aqui estou nesta lapa porque não há outra mais funda por estes mares; e acho que farias bem se te deixasses ficar entre as lajes em que nasceste. Deixa lá o luar, deixa lá o perfume; enlapa-te, irmã tainha, enlapa-te.

— Pois desconfias do santo irmão, espadarte?

— O santo é homem e eu sou peixe, irmã.

— Que tem isso? Ah! minha irmã, bem se vê que és muito nova. O Deus dos homens, minha irmã, morreu por eles e não por nós. E ora aí os homens que o trouxeram à terra com os seus pedidos de misericórdia. E que fizeram os homens? pregaram-no em uma cruz. Que devia acontecer depois de tamanha ingratidão! devia baixar sobre os homens um castigo tremendo, não é verdade?

— Sim.

— Pois, minha irmã, o castigo baixa, mas é sobre os peixes, que nada fizeram. Quando os homens comemoram o sacrifício do seu Deus atiram-se a nós sem misericórdia e é uma devastação por esses mares que... não te digo nada. Se nós tivéssemos um Deus poderíamos ter uma quaresma e nela tiraríamos justa vingança dos homens, mas nós somos peixes, não temos Deus, não temos política, não temos nada.

— Então achas que Santo Antônio?...

— Eu acho que Santo Antônio quer pregar-nos alguma. Palavras de tal homem a peixes... uhm! Isso é isca! Minha irmã, quando um superior desce assim a intimidade com a canalha... desconfia dele: o menos que pôde pedir é a vida. Para o homem o reino do céu dos peixes... é o escabeche. Enlapa-te, irmã tainha, e deixa lá andar em cima quem anda.

Pela manhã uma sardinha passou desgarrada e espavorida diante do velho espadarte:

— Que é isso, irmã sardinha? Onde vais assim aforçurada!

— Ih! irmão espadarte... o sermão do frade... o sermão do frade.

— Lindíssimo! Admirável! Um primor de forma.

— Uma isca perversa! As redes varreram o mar de praia a praia e, como nós confiávamos na promessa de paz, a pesca foi avultada, nem sei mesmo se ainda haverá peixes que continuem a espécie nestas águas.

— De outros não sei, mas que há espadartes e sardinhas garanto — sardinhas porque atravessam as malhas por serem pequeninas, espadartes porque não se fiam em palavras. Palavras, palavras, palavras... E parecia que a alma de Hamlet se havia encarnado no atilado peixe.

Desde então nunca mais quiseram os peixes ouvir sermões. E por essas e outras vão os milagres rareando e... não aparecem eleitores em dias de eleição. 

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