12/10/2017

A “Dona Branca” (Conto), de Artur Azevedo


A “Dona Branca”
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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No dia 6 de outubro de 1891, quando o senhor Vieira, às sete horas da manhã, pôs o chapéu para sair, dona Catarina, sua esposa, disse, consertando-lhe o laço da gravata:

— Sabes de uma coisa? Mana Adelaide mandou convidar-me para ir hoje com ela ao Teatro Lírico.

— Que ideia!

— Aí vens tu! Vai-se embora a companhia e eu não assisto a um único espetáculo, podendo ouvir a Dona Branca de graça!

— Mas, filha, não te lembras que dia é hoje?

— É terça-feira.

— E então?

— E então?

— Pois não sabe que às terças-feiras não dispenso o meu voltaretezinho em casa do compadre?

— Quem te diz que não vás ao teu voltaretezinho? Mana Adelaide conhece os teus hábitos e as tuas impertinências; foi a mim e não a ti que convidou.

— Mas...

— Olha, eu vou jantar com ela nas Laranjeiras e de lá vamos juntas para o teatro; acabado o espetáculo, ela traz-me no seu carro, e deixa-me ficar em casa. Não gastas um vintém, nem te incomodas.

— Bem sei, mas não é bonito uma senhora casada ir ao teatro sem seu marido.

— Mas com sua irmã... e com o marido de sua irmã...

— Bom, bom, vai; não quero que me chamem desmancha-prazeres. Jantarei sozinho.

O senhor Vieira saiu, foi tratar da vida, e quando, às quatro horas, voltou à casa, já dona Catarina tinha essa ter com a irmã.

O pobre homem ficou muito aborrecido naquela solidão. Toda sua família era essa bela senhora com quem se casara em 1885 e contava dez anos menos que ele.

Tinha quarenta e quatro invernos o senhor Vieira, e inteligência bastante para perceber que dona Catarina o não amava; entretanto, contentava-se da respeitosa amizade com que ela se impunha serenamente à sua estima, e preferia mesmo esse discreto sentimento ao amor desordenado e doentio, que produz ciúmes e dispepsias, maus humores e lesões cardíacas. Depositava uma confiança cega em sua mulher e estimava-a deveras. Sentia-se feliz.

Mais feliz seria, entretanto, se houvesse uma criança naquela casa. Dona Catarina sofria por vezes longos acessos de melancolia; algumas noites deixava o esposo sozinho n larga cama de casados, e ia revolver-se num sofá, suspirando, irrequieta, nervosa, sem poder dormir. Mas esses fenômenos eram passageiros, e o marido, atribuía-os às ausência da prole.

— Decididamente, falta uma criança nesta casa!

Depois daquele jantar de solteirão, o senhor Vieira dormiu a sesta, e às sete horas foi para casa do compadre, em São Cristóvão. O senhor Vieira morava no Catete.

— Bravos! cá está o nosso homem! exclamou o compadre e exclamaram mais dois amigos da vizinhança, que se achavam à espera do parceiro. Vamos ao vício!

Os quatro companheiros sentaram-se às oito horas e jogaram até perto da meia noite. O senhor Vieira ganhou dezenove mil e quinhentos. Nunca estivera com tanta sorte.

À meia noite, depois do chá com torradas, o nosso homem saiu, e foi esperar a condução na esquina. Passados uns vinte minutos, apareceu um bonde, mas em sentido contrário, e parou para fazer saltar o Lamenha, que era vizinho paredes meias do compadre.

— Olá! a estas horas, seu Lamenha? perguntou o senhor Vieira. Já sei que vem do Lírico; foi ouvir a Dona Branca.

— Ora deixe-me com a Dona Branca! Se soubesse...

— Então a ópera não presta?

— Não sei; o espetáculo não passou do começo!

— Ora essa! Por quê?

— No fim do primeiro ato o público das torrinhas chamou à cena o empresário para ferrar-lhe uma pateada, não sei porque motivo. O empresário não quis vir. O público zangou-se. A polícia interveio, e agora é que são elas! Ah, seu Vieira, que rolo!...

— Deveras? perguntou o outro empalidecendo.

— Os soldados da polícia acutilavam a torto e a direito, os bancos voavam, os globos dos candeeiros partiam-se, as famílias separavam-se numa confusão medonha, as senhoras tinham chiliques e soltavam gritos...

— As senhoras?... Meu Deus!... e a minha!...

— Há muita gente ferida, e não será para admirar que houvesse mortes! Eu escapei por milagre!

— E minha mulher que foi a este espetáculo!...

— Sua senhora? Não a vi. Só vi sua cunhada, a Dona Adelaide, sozinha, correndo e gritando que parecia uma louca!

— Pois estavam juntas!... Felizmente aí vem o bonde... Quem sabe se não vou encontrá-la morta? Eu bem que queria que não fosse à tal Dona Branca! Ora esta!...

E o senhor Vieira tomou o bonde, sem mesmo se despedir de Lamenha.

Imaginem o desassossego com que o pobre diabo fez a viagem de São Cristóvão ao largo de São Francisco. Aí tomou um tílburi. O cocheiro confirmou a informação do Lamenha, acrescentando que tinham morrido duas senhoras, sendo uma de susto.

Ao passar pela Guarda Velha, o senhor Vieira notou que o Lírico estava imerso nas trevas e no silêncio. Chegou à casa, e expetorou um grande suspiro de alívio ao entrar na alcova: dona Catarina dormia tranquilamente, envolvida no seu lençol.

O marido despiu-se em silêncio e deitou-se ao lado da senhora. Ela despertou:

— Ah! és tu?

— Então, minha senhora, que me diz de Dona Branca?

— É uma ópera muito bonita.

— Hein?

— O último ato principalmente, acrescentou dona Catarina com muita convicção.

O senhor Vieira sentiu o sangue lhe subir à cabeça, mas conseguiu dissimular, e perguntou se a ópera tinha sido bem cantada.

— Perfeitamente cantada, respondeu ela, mentindo como só as mulheres sabem mentir.

— E não houve novidade durante o espetáculo?

— Nenhuma. O Gabrielesco esteve sublime!

— O Gabrielesco? No último ato?

— Em todos os atos. É um tenorão!

— Está bem.

— Aí está você amuado! Eu por seu gosto não saía de casa, não me divertia, vivia metida entre quatro paredes! Que homem!...

Ele resmungou uns sons inarticulados; não respondeu.

— Será possível que o Lamenha me enganasse? pensava o marido. Não; — e o cocheiro do tílburi?...

O senhor Vieira passou, talvez pela primeira em sua vida, uma noite completamente em claro. Ergueu-se logo ao amanhecer, saiu, convenceu-se de uma verdade terrível, e nesse mesmo dia separou-se para sempre de dona Catarina.

Na terça feira seguinte, o senhor Vieira não faltou ao voltaretezinho do compadre.

Quando este lhe perguntou: — Então?... que foi isso?... a comadre? — ele respondeu melancolicamente:

— A comadre ouvia-me dizer que em nossa casa faltava uma criança e quis arranjá-la fora... Deixa lá! — Vamos ao vício!

Nessa noite perdeu quinze mil e oitocentos.

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