O Velho Lima
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
O velho Lima, que era
empregado — empregado antigo — numa da nossas repartições públicas, e morava no
Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de
1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do
Brasil.
O doente não considerou a
moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis Médico: bastaram-lhe
alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que
há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha.
Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.
O nosso homem tinha o hábito
de não ler jornais, e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam),
ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.
No dia 23, restabelecido e
pronto para outra comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem,
ao lado do Comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras:
— Bom dia, cidadão.
O velho Lima estranhou o
cidadão, mas de si para si pensou que o Comendador dissera aquilo como poderia
ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a
responder!
— Bom dia, Comendador.
— Qual Comendador! Chama-me
Vidal! Já não há Comendadores!
— Ora essa! Então por quê?
— A República deu cabo de
todas as comendas! Acabaram-se!...
O velho Lima encarou o
Comendador, e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.
Passados alguns segundos,
perguntou-lhe o outro:
— Como vai você com o
Aristides?
— Que Aristides?
— O Silveira Lobo.
— Eu?... onde?... como?...
— Que diabo! pois o Aristides
não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do
Interior?
Desta vez não ficou dentro do
espírito do velho Lima a menor dúvida de que o Comendador houvesse
enlouquecido.
— Que estará fazendo a estas
horas o Pedro II? perguntou Vidal, passados alguns momentos. Sonetos,
naturalmente, que é o do que mais se ocupava aquele tipo!
— Ora vejam, refletiu o velho
Lima, ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava nos eu juízo
era tão monarquista, tão amigo do imperador.
Entretanto, o velho Lima
indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem,
defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do Comendador.
— Uma autoridade policial!
murmurou o velho Lima.
— Eu só quero ver como o
ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve chegar lá no
princípio do mês.
O velho Lima comovia-se:
— Não diz coisa com coisa,
coitado!
— E a bandeira? Que diz você
da bandeira?
— Ah, sim... a bandeira...
sim... repetiu o velho Lima para o não contrariar.
— Como a prefere: com ou sem
lema?
— Sem lema. respondeu o bom
homem num tom de profundo pesar; sem lema.
— Também eu; não sei o que
quer dizer bandeira com letreiro.
Como o trem se demorasse um
pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado, e
disse-lhe:
— Parece que vamos ficar aqui!
está cada vez pior o serviço da Pedro II!
— Qual Pedro II! bradou o
Comendador. Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil
contos!
— E vá para a casa do diabo!
acrescentou o subdelegado.
O velho Lima estava atônito.
Tomou a resolução de calar-se.
Chegado à praça da Aclamação.
entrou num bonde e foi até a sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir
que o pusesse ao corrente do que se passara.
Notou, entretanto, que um
vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o
gradil do parque da Aclamação...
Ao entrar na secretaria, um
servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade;
limitou-se a dizer:
— Cidadão!
— Deram hoje para me chamar de
cidadão! pensou o velho Lima. Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha
data.
— Oh! você por aqui! Um
revolucionário numa repartição do Estado!...
O amigo cumprimentou-o
cerimoniosamente.
— Querem ver que já é alguém!
refletiu o velho Lima.
— Amanhã parto para a Paraíba,
disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos; como sabe, vou
exercer o cargo de chefe da polícia. Lá estou ao seu dispor.
E saiu.
— Logo vi! Mas que descarado!
Um republicano exaltadíssimo!...
Ao entrar na sua seção, o
velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.
— Muito bem! disse consigo;
foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar
na estação calmosa.
Sentou-se, e viu que tinham
tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como
na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe:
— Por que tiraram da parede o
retrato de sua majestade?
— Ora, cidadão, que fazia ali
a figura do Pedro Banana?
— Pedro Banana! repetiu
raivoso o velho Lima.
E, sentando-se, pensou com
tristeza:
— Não dou três anos para que
isto seja república.
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