A Marcelina
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Naquele tempo (não há
necessidade de precisar a época) era o doutor Pires de Aguiar o melhor freguês
da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigatórias da Rua do Ouvidor. Como
advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não
obstava que ele ganhasse muito dinheiro, — mas como janota — força é
confessá-lo — não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.
Rapaz? Rapaz, sim: o doutor
Pires de Aguiar pertencia a essa privilegiada classe de solteirões que se
conservam rapazes durante trinta anos.
Quando lhe perguntavam a
idade, respondia invariavelmente: — Orço pelos quarenta, — e durante muito
tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe
cinquenta, bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e
cinco.
Ele tinha um fraco pelas
mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante
oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem de beleza; o
indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e
festejada pelo público. Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda
Cythera dos bastidores.
Essas ligações depressa se
desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava
a ofuscar-se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar
imediatamente outra. Como era inteligente e generoso — muito mais generoso que
inteligente, — nunca ficava mal com o astro caído.
Algumas vezes o rompimento era
provocado por elas — pelas de mais espírito, — que facilmente se enfaravam de
um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidosa e suas roupas.
II
No tempo em que se passou ação
deste ligeiro conto, a nova conquista do doutor Pires de Aguiar era uma atriz
portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas da
réclame, e cuja estreia, num dos nossos teatrinhos de opereta, o público
esperava ansiosamente.
Uma hora antes de começar o
espetáculo de estreia, entrou o advogado triunfantemente na caixa do teatro,
levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba capa
de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente
ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.
Ela ficou encantadíssima, e
agradeceu com beijos quentes e sonoros a dedicada solicitude do amante.
Que belo tapete felpudo! que
bonitos quadros! que papel bem escolhido! que delicioso divã! que magnífico
espelho de três faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por
inteiro! e que profusão de perfumarias! e que preciosos serviço de toilette...
Nada faltava também sobre a
mesinha da maquillage, intensamente iluminada
por dois bicos de gás.
O doutor Pires de Aguiar tinha
longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes
necessários ao camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.
Dali a nada ouviu-se um — Dá
licença? — e o diretor de cena entrou no camarim acompanhado por uma mulher já
idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada. — Dona Clorinda,
aqui tem a sua costureira.
A estrela não conteve um gesto
de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não
entrar em explicações.
— É doente? perguntou Clorinda
à costureira.
— Não, senhora. Tive uma
doença grave, mas agora estou boa. Sai há dois dias da Santa Casa. Clorinda
trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refestelando-se no divã:
— Ma chère, il faut se
contenter de cette hábilleuse; nous ne sommes pas en Europe.
Ele impingiu esta frase em
francês, para que não a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda
também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: — Oui.
Despojada da mantilha e da
bela capa de pelúcia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou
a pintar-se, dizendo: — Vamos a isto!
E dirigindo-se à costureira:
— Sente-se. Por que está de
pé?
A pobre mulher sentou-se a medo,
como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável
vestido de chita.
— Sabe que me disseram bonitas
coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.
— Deveras?
— Ao que me parece, você tem
sido um gajo!
O doutor Pires de Aguiar teve
um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade a dentro com uma
grancruz.
— Com que então, a sua
especialidade são as atrizes?
— Sou doido pelo teatro.
— E há quanto tempo dura essa
doidice?
— Há muito tempo. Estou velho,
bem vê. Orço pelos quarenta.
— Ninguém lhe dará mais de
trinta e cinco.
— São os seus olhos.
— Qual foi a sua primeira
paixão no teatro?
— Ah! isso...
—...isso é pré histórico,
perde-se na noite dos tempos.
— Como se chamava esta colega?
— Chamava-se Marcelina.
— Que fim levou?
— Sei lá! provavelmente
morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os
passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê o
cadáver.
— Gostou dela?
— Foi talvez a paixão mais
séria da minha vida.
— Nunca mais a procurou?
— Para quê?
— Tinha talento?
— Talento? Não. Tinha habilidade.
— Tinha habilidade e era muito
boa rapariga.
— Brasileira?
— Sim, Representava ingênuas
em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia — eu já
a tinha deixado — um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a
arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal
desapareceu. Requiescat in pace!
Entrou o cabeleireiro.
Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o doutor Pires de Aguiar divagou
longamente sobre os méritos de Marcelina; depois falou de outras atrizes,
desfiando o interminável rosário das suas mancebias.
Clorinda,
a costureira e o cabeleireiro ouviam sem dizer palavra.
Terminado o serviço do
cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:
— Agora, meu doutor, há de me
dar licença, sim? Vou vestir-me.
— Até logo, disse o advogado.
O seu penteado ficou esplêndido! Vou aplaudi-la. Bonne chance!
Deu-lhe um beijo — na testa
para não desmanchar a pintura, — e saiu do camarim, cuja porta a costureira
discretamente fechou.
III
Minutos depois, Clorinda
estava completamente nua.
— A senhora é muito bem feita
de corpo, disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça
a camisa de seda.
— Acha? perguntou
desdenhosamente a atriz.
— Ah! eu também já fui bem
feita de corpo, mas... não tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer
aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos
esses... gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim
a senhora evitará o hospital e a miséria.
— Ora esta! exclamou Clorinda.
Quem é você, mulher, para me falar assim?
— Eu sou.... a Marcelina.
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