12/10/2017

A Água de Janos (Conto), de Artur Azevedo


A Água de Janos
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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I
O tenente de cavalaria Remígio Soares teve a infelicidade de ver uma noite dona Andréa num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles belos olhos negros e rasgados.

Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão que se representava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa distância o casal até o largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele — um bonde do Bispo, — sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andréa.

Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda — seria faltar à verdade que devo aos meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

Ele ficou sabendo onde ela morava...


II
O tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera!

Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

Mas — que contrariedade! — as janelas de Dona Andréa estavam fechadas...

O cavaleiro foi até a Rua de santa Alexandrina e voltou — patati, patatá, patati, patatá! — e as janelas não se tinham aberto...

O passeio foi renovado à tarde, — o tenente passou, tornou a passar, — continuavam fechadas as janelas... Malditas janelas!

Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo ão era uma casa: era um convento!

Mas ao quinto dia — oh, ventura! — ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima.

Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréa. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento! proibia expressamente a senhora de sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérebros: uma tia do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrão.

Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona Andréa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta — digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada — a resposta não se fez esperar por muito tempo.

“Pede-me uma entrevista, e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?... onde?... quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós... Como há um Deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

Na esperança que o grande dia chegasse, o tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andréa: procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar uma cartinha.


III
Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela.

Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.


IV
Os leitores — e principalmente as leitoras — me desculparão de não por no final deste conto um grão de poesia:

tenho de concluí-lo um pouco à Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral não é sacrificada.

O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

— Que tens tu?

— Ainda mo perguntas...

— Tem paciência: Jacob esperou quatorze anos.

— Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava de uma saúde de ferro... Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!...

— Isso é calor: a tua Andréa não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um conselho? Mandas buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para aliviar a cabeça.

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo da benemérita água.

Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andréa, anunciando-lhe uma carta.

Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

“A velha amanheceu hoje com febre e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um Médico de confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de dona Andréa!

Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento: nenhum namorado faria confissões dessa ordem...

O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir... Quando algum dia haja certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza que me perdoarás.”

Dona Adélia não perdoou. O tenente Remígio Soares nunca mais a viu.


V
Quando, no dia seguinte, ele contou a Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperar:

— Vê tu que grande remédio é a água de Janos: um só copo bastou para aliviar três cabeças!

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