
A “Reclame”
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Era um domingo. O Comendador
Viana acabou de almoçar, sentou-se numa cadeira de balanço, cruzou as mãos
sobre o ventre, atirou o olhar pela janela escancarada que enchia de ar e luz a
sala de jantar, e viu, no jardim vizinho, um homem a escrever, sentado à sombra
de um caramanchão. — Ó menina. dá cá o binóculo.
Laura, a esposa do Comendador
Viana, trouxe-lhe o binóculo, que ele assestou contra o homem do caramanchão.
— Não me enganava: é ele... é
o tal Passos Nogueira!...
— Que Passos Nogueira?
perguntou Laura.
O Comendador não respondeu;
voltou-se para a criada, que levantava a mesa, e interpelou-a: — Aquele sujeito
mora ali há muito tempo? Você deve saber...
— Que sujeito?
— Aquele que está escrevendo
acolá, no jardim da casa de pensão, — não vê? — Ah! o poeta?
— Quem lhe disse a você que
ele é poeta?
— É como o ouço tratar na
vizinhança. Já ali morava quando viemos para esta casa.
— Entretanto, observou Laura,
estamos aqui há oito meses e é a primeira vez que o vejo. — Deveras? perguntou
dentre dentes o Comendador, com um olhar de desconfiança.
— Ora esta! murmurou Laura,
muito admirada da inflexão e do olhar do marido.
— Parece impossível que minha
ama não tenha reparado, acudiu a criada, porque o poeta vai todas as manhãs e
todas as tardes escrever naquele lugar.
— Todas as manhãs? indagou o
dono da casa levantando-se. — E todas as tardes, repetiu ingenuamente a criada.
E foi par a cozinha.
— Viana, obtemperou Laura,
aproveitando a ausência da criada, você faz uma coisas esquisitas! Esta mulher
vai ficar convencida de que meu marido tem ciúmes de um homem que nem sequer
conheço!
— Aquilo é um bandido!
regougou o Comendador.
— Pois deixe-o ser! Que temos
nós com isso? Ele está na sua casa e nós na nossa. — Se eu soubesse que aquele
patife morava ali, não tínhamos vindo para cá!
— Mas que importa que ele more
ali?
— Importa muito! Aquilo é
sujeitinho capaz de manchar a reputação de uma senhora com um simples
cumprimento. Ele algum dia já te cumprimentou?
— Pois eu já lhe disse que
nunca reparei nesse homem?
— Ali onde o vês tem causado a
desgraça de umas poucas de senhoras! Por causa dele a mulher de um negociante
deixou o marido, a filha de um despachante da Alfândega saiu da casa do pai, e
a viúva de um coronel tentou suicidar-se!
— Com efeito! exclamou Laura,
agarrando rapidamente no binóculo, — deve ser um homem excepcional!...
— Não! é melhor que não o
vejas! ponderou o marido, tomando-lhe o binóculo das mãos. Que interesse tens
tu?...
— Apenas o interesse que você
mesmo me despertou, contando-me as conquistas deste Napoleão do amor.
— Mulheres doentias e
malucas... pobrezinhas que se deixaram levar por cantigas, ora aí tens!...
Aquele peralta faz versos, e os jornais levam a dizer todos os dias que ele tem
muito talento... e que é muito inspirado...
— Lembra-me agora que já tenho
lido esse nome de Passos Nogueira.
— Oh, menina, vê lá se também
tu...
— Descanse: Já não estou em
idade de me deixar levar por poesias.
— Pois sim. Peço-te que não te
debruces nesta janela quando o tal poetaço estiver no seu caramanchão.
— Por quê? receias que eu
caia? Ora deixe-se de ciúmes!
— Não são ciúmes, são zelos.
Não receio pelo que possas fazer... mas tenho medo que a vizinhança murmure.
II
Laura, que até então ignorava
a existência do poeta Passos Nogueira, começou a interessar-se muito por ele,
graças à réclame feita pelo Comendador. Sentia-se atraída pela figura daquele
horrendo sedutor de solteiras, casadas e viúvas, e duas vezes ao dia, reclinada
à janela, olhava longamente para o poeta.
Este acabou por notar a
insistência com que era contemplado pela vizinha, e prontamente correspondeu
aos seus olhares lânguidos e prometedores.
Estabeleceu-se logo entre eles
um desses namoros saborosos e terríveis, ridículos e absorventes, que
monopolizam duas existências.
Para justificar a precipitação
dos fatos, digamos que Laura, mulher de vinte e seis anos, romântica e nervosa,
casara-se, muito nova ainda, com o Comendador Viana, homem quinze anos mais
velho que ela, curto e positivo, que não correspondia absolutamente ao seu
ideal de moça.
Digamos ainda que o poeta
Passos Nogueira, rapaz de talento vantajosamente apreciado, atordoou-se quando
se viu provocado pelos bonitos olhos de uma bela mulher casada. Apesar da reputação
que gozava e da qual se fizera eco o próprio Comendador, Passos Nogueira jamais
inscrevera ao seu canhenho de conquistas fáceis aventura tão interessante tão
considerável como essa que agora lhe desassossegava o espírito e lhe espantava
as rimas.
Digamos ainda que o Comendador
continuava todos os dias a fazer réclame ao namorado, referindo-se à sua pessoa
em termos desabridos, insultando-o de modo que ele não ouvisse, e, finalmente,
exprobrando a Laura, por mera presunção, que ela o animasse e lhe desse corda.
Não tardou que o poeta
escrevesse à vizinha um bilhete, lançado por cima do muro que separava as duas
casas. Perguntava-lhe pelo seu nome e pedia uma entrevista. Ela respondeu:
“Não! não é possível! Não me persiga! Esqueça-se de mim! Bem vê que não sou
livre! Um encontro poderia causar a nossa desgraça!” Mas, não obstante
desengano tão decisivo e formal, no dia seguinte os olhos da moça
encontraram-se com os do poeta. Ela sentia a necessidade, o dever de fugir
daquele homem, mas não tinha forças para fazê-lo. E o namoro continuou.
Dois dias depois, novo
bilhete. Ela abriu-o sôfrega e palpitante, — e leu estes versos:
“Eu não sou livre”,
escreveste;
Porém, se livre não era,
Por que com tantas quimeras
Encheste um cérebro nu?
Pedes que não te persiga...
Mas, por teus olhos ferido,
Reflete que o perseguido
Sou eu, meu anjo, e não tu!
Quando da tua janela
Atiras aos meus desejos
Olhares que valem beijos,
Por que tens beijos no olhar;
Quando esses ternos olhares
Com meus olhares se cruzam,
Teus lindos olhos abusam
Do seu condão de encantar!
Não te compreendo, vizinha;
Tu mesma não te compreendes:
Fazes-te amar, e pretendes
Que eu fuja e te deixe em paz!
Mas não vês que é negativo
Este sistema que empregas?
Tudo, escrevendo, me negas.
— E, olhando, tudo me dás!
Vizinha, bela vizinha,
Vizinha por quem padeço,
Pois tais palavras mereço
Que me fizeram chorar?
O prometido é devido...
Para que o peito me aquietes,
Ou dá-me quanto prometes,
Ou não prometas em dar!
III
Para encurtar razões: Passos
Nogueira e Laura foram por muito tempo, e não sei se continuam a ser, os
amantes mais apaixonados que ainda houve.
Ela nunca perdoou ao marido o
mau passo que deu. Seria ainda hoje o modelo das esposas, se o Comendador não
se lembrasse de fazer réclame ao poeta.
Este, por expressa
recomendação da amante, nunca mais apareceu no caramanchão fatídico.
Isto fez com que o marido
tornasse às boas. Uma tarde perguntou:
— Ó menina, então o poeta já
ali não mora?
— Não sei, respondeu Laura com
uma deliciosa indiferença. Se se mudou, melhor! Um libertino daqueles!
— Deixa-o lá, coitado! Muitas
vezes são mais as vozes do que as nozes.
— Que diabo! foi você mesmo
quem falou da filha do despachante, da mulher do negociante e da viúva do
coronel!...
— Disseram-me. Este Rio de
Janeiro, menina, é a terra da maledicência. Deus me livre de que alguém se
lembre de espalhar por aí que eu roubei o sino de São Francisco.
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