História da minha pena
(Confidências de um poeta)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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AO MEU DISTINTO AMIGO DR. F.
QUIRINO DOS SANTOS
Não é com uma pena que eu
tenho o prazer de traçar estas minhas magras inspirações — é com um palito...
Peço licença para dar uma
rápida explicação, no caso que haja quem queira dar-se ao trabalho de ouvir-me.
É com um palito, sim, porque
eu gosto de escrever a crítica da humanidade com rabiscos, pois não conheço
espetáculo mais divertido do que a seriedade dos homens.
Tenho sondado políticos e
literatos, homens de pince-nez ou sem ele, e sempre cheguei ao conhecimento profundo
de que — para se ser bom, é preciso que se saiba ser intrepidamente mau!
Dou-me com todos os barões da
terra e concordo com todas as opiniões alheias.
A vida é isto: uma viagem no
espaço, comédia de meia hora, um movimento de polichinelos, coisas ridículas e
engraçadas ao mesmo tempo.
O homem faz tudo o que quer, e
tem fantasias espantosas. Compõe Cristos de barro para vendê-los; faz papel de
São Pedro e é capaz de esmagar o mundo para fazer triunfar as suas ambições...
Adiante! adiante! É
perigosíssimo este caminho...
***
A minha pobre pena, uma
festiva tagarela que viveu comigo em outros tempos, tinha segredos íntimos que
se ocultavam no fundo do meu tinteiro, como o mistério das lágrimas se esconde
no fundo dos corações.
Perdão, eu não quero por modo
nenhum entreter-vos com uma intempestiva jeremiada, tanto mais que a minha
querida companheira de trabalhos, a quem venho de me referir, gostava mais de
rir que de chorar.
Tinha também a sua pequena e
obscura história a minha despretensiosa pena.
Deixo ao seu substituto, o
desgracioso palito, a tarefa de escrever neste momento duas palavras apenas,
que direi sobre a memória da pobre.
Nasceu, quem sabe aonde? porém
trazia nas costas, como abono de sua têmpera, o nome de seu pai, um tal Sr.
Mallat, que não tive a honra de conhecer senão pela extensa popularidade de sua
fama.
Não era de ouro a esguia pena,
nem adornada de esmeraldas como costumam ser a dos príncipes, mas de polido e
legítimo aço, tão fina como o bico de um beija-flor, à parte a modéstia.
Um dia teve uma fantasia
esquisita: deliberou casar-se.., estava aborrecida da vida de solteira.
Casou-se com um sacudido lápis, filho legítimo de Faber, o qual um dia
trabalhou tanto sobre tema de grotescos, para que sua esposa descansasse, que
morreu vítima do fio voraz do canivete.
Fica pois sabido que a minha
modesta pena tinha ainda em si o melancólico atrativo da viuvez.
Algumas vezes banhara-se nas
tintas furta-cores das alegrias serenas como os cisnes em lagos de prata;
outras vezes embebia-se de fel e começava repentinamente a produzir umas
nebulosidades, as quais imediatamente ardiam na voracidade das chamas que as
extinguiam.
Meus olhos então se
mergulhavam fixos no âmago vermelho das labaredas e acompanhavam saudosos as
ondulações das salamandras que o papel inflamado produzia, as quais outra coisa
não eram, a meu ver, senão as larvas candentes das agonias!
No mais era uma boa sujeita
aquela minha rabiscadora: quando não cantava idílios, tocava funerais e corria
pelo campo acetinado do papel velino, pintando corações ou reproduzindo umas
carrancas de almas, do mesmo modo que construía castelos.
Foi-me dada em um dia sem sol,
por um indivíduo de caráter sombrio, rigorosamente engravatado, que me
apresentou o seu cartão de visita com este único nome, que era o seu — o
Destino!
Recebi a oferta e considerei-a
uma relíquia. A princípio confesso que me senti embaraçado na escolha do uso
que devia fazer de minha paciente amiga.
Perguntei-lhe baixinho quais
eram os seus segredos, e a curiosa, por única resposta quis também saber os
meus.
Falei-lhe do meu primeiro
amor! Pintei-lhe o retrato de uma mocinha muito gentil e atirada ao romantismo,
por quem eu ia me atirando ao abismo do suicídio no dia em que ela se esqueceu
de mim — poeta — para casar com um sujeito muito rico, pançudo, cheio de estupidez
e de rapé!
Falei-lhe do meu segundo amor,
exibindo o retrato de minha segunda namorada, uma moreninha de quinze anos
apenas, que teve o bom gosto de fazer uma parelha entre mim e um Adônis sandeu,
para realce de suas conquistas de moça bonita.
Contei-lhe estas e outras
pequenas histórias de que a pensativa pena mais tarde se lembrava a rir, porém
bem cedo arrependi-me e tive coragem de atirá-la para um canto num dos meus
assomos de desalento.
Pobre amiga! Começou a doer-se
do desprezo até que em pouco tempo a terrível enfermidade da ferrugem foi-lhe
apagando aquele brilho dos dias alegres.
Os seus bicos se ligaram como
se foram os lábios de um morto!
Era preciso dar-lhe que fazer,
pelo que não hesitei um momento em arrancá-la daquela vergonhosa inércia.
Sim, quereis saber como?
O criado se incumbiu de fazer
com ela o rol da roupa para a lavadeira e a lista nominal das compras do dia!
***
Ah! que doloroso ranger aquele
seu sobre o papel!.
Dir-se-ia que chorava.,.
Não eram curvas o que ela
deixava após os gemidos, quando traçava, sobre um papel gordurento, a palavra
fatal — batatas! — porém sim uns hieroglíficos que se retorciam ao peso da mão
do fuliginoso escritor como um corpo humano nas contorções da agonia!
Batatas!... Era demais!
Foi então quando tive profunda
pena daquela desprezada pena, e chamei-a outra vez aos solícitos afagos dos
meus dedos trêmulos pela indecisão.
Comecei desde logo a acalentar
uma vontade frenética de escrever um tratado sobre a arte de ganhar dinheiro em
geral, e dos homens de bem em particular, mas não levei ao cabo a empresa e a
pena resignada esperou erguida sobre o papel a mais útil das minhas
inspirações.
Lembrei-me de cantigas, mas
dei-me para logo ao trabalho de recapitular na imaginação os martírios por que
passam esses pobres rouxinóis sociais, e confesso que tive pavor.
Formei diversos planos, mas
acabei por não realizar nenhum deles.
Veio-me vontade então de fazer
de minha inútil pena uma espécie de irmã de caridade.
Pedir com ela um pouco mais de
indulgência para os pobres desta adoidada Babilônia que se chama Rio de
Janeiro, e um pouco mais de severidade para os algozes de casaca.
Lembrei-me, talvez muito a
propósito, de pedir ao governo um asilo para as crianças órfãs que mendigam, em
uma noite em que um episódio doloroso me veio retalhar o coração.
Vinha eu vindo por uma rua
abaixo, em uma esplêndida noite de luar, depois de ter bocejos de tédio pelos
teatros, e caminhava mergulhado nesse profundo cismar de quem faz a si mesmo
perguntas íntimas, para as quais não há resposta possível.
De repente pararam diante de
mim dois vultos que me embargaram o passo...
Uma mulher e uma menina — mãe
e filha. Esta última teria talvez onze anos e era duma beleza cheia de suave
encanto.
Havia no seu mórbido semblante
a profunda resignação dos mártires acompanhada da horrível palidez dessa
enfermidade cruel que se chama — fome.
A menina estendeu-me a mão...
— Dê-me uma esmola, disse-me
entre um soluço e uma lágrima; minha mãe é viúva e todo o mundo nos nega
proteção.
A mãe estendeu-me também as
suas mãos descarnadas e eu tremi, ao reconhecer pelo som da voz aquela
desgraçada criatura.
Sim, eu a tinha visto em outro
tempo, alegre, ditosa, boa mãe, esposa modelo.
Seu marido fora infeliz na
vida: perdendo tudo quanto possuía, entregou-se ao desregramento e morreu
deixando uma viúva e uma pobre filha em completa miséria.
A pobre mulher lutara por
muito tempo até que viu-se na cruel necessidade de mendigar à noite pelas
esquinas das ruas.
— Amanhã, pensei eu ao deixar
aquelas pobres criaturas, amanhã a desgraçada mãe terá morrido, e a filha, anjo
em prantos, será vítima das garras venenosas dos abutres!
Aquela criança venderá a alma,
esquecendo tudo quanto há puro e sagrado para não morrer de fome.
Achará muita gente que lhe dê
dinheiro arrastando-a às alegrias amaldiçoadas. Entrará nas igrejas como quem
vai a uma feira, mais para mostrar a beleza do que para rezar.
Os elegantes ensinar-lhe-ão a
insolência com que se esmaga a miséria e as impudências com que se adquirem os
diamantes.
A pobre menina há de queimar a
sua mocidade e a saúde nos lupanares, mas, em compensação, não andará de porta
em porta a pedir o que dificilmente lhe dariam — um pedaço de pão para
engoli-lo com lágrimas!
Pensei em tudo isto, no poder
desse Deus que deixa viver na abastança os algozes dele próprio e dos
desvalidos; nas consciências denegridas pelo remorso e nas almas sofredoras dos
anjos do martírio, pensei em tudo isto e tive vontade de apostrofar o réu..
A mísera pena, porém,
esmoreceu diante de tais pensamentos e resolveu antes reclinar-se muda sobre o
seu tinteiro, derramando no seio dele todo o rol de seus queixumes.
E sufoquei todos os meus
ímpetos de aspiração e de esperança, arrebentei as cordas da sensibilidade,
entreguei-me à correnteza do acaso!
Louros, glórias, porvir, tudo
estava perdido! Em tal conjuntura, desejais saber o que a minha inofensiva pena
fez?
Em um momento de desvario, de
convulsão nervosa, de tempestuosa raiva, precipitou-se no fundo negro do tinteiro,
caiu da caneta para sempre... para sempre!
O ácido venenoso da tinta há
de em breve tempo devorá-la, e nada mais restará da desgraçada boêmia!..
Deus lhe perdoe!..
Agora... não é mais com uma
pena que eu traço estas minhas magras inspirações, é com um palito.
Mas um palito inexorável!..
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