Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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O seu verso tem quase sempre esta facilidade e correção. A descrição da sua ilha natal, mais vazada nos moldes clássicos que a de Botelho de Oliveira, tem, conquanto topográfica, a emoção nativista que falta a Bento Teixeira. Pinta a vida dos pescadores da ilha, a pescaria da baleia, sua principal indústria, a fabricação do seu azeite, e noticia os produtos, dons e bens da terra, seus frutos e novidades. E terminando, frouxamente aliás, a descrição da ilha que fica no
assim conclui:
em que a palavra cirandagem desviada do seu sentido vernáculo (= sarandalha) alimpaduras que se apartam cirandando (joeirando) e se lançam fora, tem já a acepção brasileira de restos imprestáveis, imundície miúda, guloseimas vis.
E que tais modos triviais do nosso lirismo popular de mistura com reminiscências, sentimento e sensações de coisas brasileiras.
Cantados à viola, com os requebros e denguices da musa mulata, e o sotaque meloso do brasileiro, versos tais teriam em Portugal o sainete do exótico, para resgatar-lhes a mesquinhez da inspiração e da forma. Não enriquecem a poesia brasileira. Na história desta, Caldas Barbosa apenas terá a importância de testemunhar como se havia já operado no fim do século XVIII a mestiçagem luso-brasileira, que, primeiro física, acabara por influir a psique nacional. Era natural que essa influência no domínio mental se principiasse a manifestar num mestiço de primeiro sangue, como parece era o "fulo Caldas", dos ápodos dos seus rivais portugueses. Depois de Gregório de Matos, na segunda metade do século XVII, o qual pode ser, apesar da sua jactância do contrário, não fosse branco estreme, é com Caldas Barbosa que expressamente se revela na poesia brasileira, a musa popular brasileira na sua inspiração dengosamente erótica e no seu estilo baboso.
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Literariamente, o século XVIII se
caracteriza pela escassez de poetas na sua primeira metade, pela fundação das
academias literárias do fim do seu primeiro quartel aos começos do último, pela
abundância da sua literatura histórica, e, o que principalmente o ilustra, pelo
advento, no seu terço final, de um grupo de poetas, que foram os melhores no
período colonial.
Excluído Antônio José da Silva, o
engenhoso e mal-aventurado judeu fluminense, queimado pela Inquisição de
Lisboa, em 1739, nenhum poeta de algum valor se nos depara no Brasil naquele
momento. Antônio José, de brasileiro só teve, porém, o acidente do nascimento.
Sua formação e atividade literária foi toda portuguesa, e não há no seu estilo,
quer de prosador quer de poeta, bem como na sua inspiração, nada que não seja
genuinamente português. E o que porventura não é português é antes italiano
(como as coplas de que misturou as suas óperas)
ou espanhol do que brasileiro.
Não houve nesse tempo nenhum
poeta equivalente a Gregório de Matos ou mesmo a Botelho de Oliveira. É,
entretanto, crescido o número de escrevedores e versificadores do século XVIII,
de que se encontram menções. Só Jaboatão, e unicamente na sua ordem
franciscana, nomeia perto de trinta e lhes menciona as obras, muitas impressas,
outras manuscritas: de devoção, panegíricos de santos, sermões e também versos
e história. O mesmo sucedia nas outras ordens religiosas. A
prosa, porém, tirante a dos pregadores, nenhum de mérito que mereça recordação,
e a de algum memorialista ou noticiador da terra, igualmente somenos, não
deixou de si lembrança estimável.
Dos poetas do século XVII
anteriores aos mineiros, não há nenhum que se salve por uma inspiração feliz
como a da Ilha de Maré, ou por
qualquer feição particular como a satírica de Gregório de Matos. Somenos sob
todos os aspectos, o poeta dos Eustáquidos,
Fr. Manoel de Santa Maria Itaparica, merece todavia comemorado pela sua Descrição versejada da ilha de
Itaparica. Os Eustáquidos são um
"poema sacro e tragicômico" da vida de São Eustáquio. Esta
classificação do próprio autor e o seu objeto já deixam ver que sensaboria
metrificada não é. Vem-lhe apensa a Descrição,
interessante somente por ser a segunda manifestação na poesia brasileira da
mesma emoção nativista, patriótica se quiserem, que produziu a Ilha de Maré e que constituiria um rasgo
particular da nossa poesia.
Como na Prosopopeia de Bento Teixeira e geralmente em todos os
versejadores do período colonial, é manifesta neste poema de sessenta e cinco
oitavas a lição de Camões. Esta infelizmente revela-se apenas na imitação
canhestra e até na paródia de algum verso do grande épico ou ainda no arremedo
de situações ou passos dos Lusíadas.
Não sem galanteria invoca o poeta
a Musa, como sua companheira de todos os tempos, bons e maus:
Musa que no florido de meus anos
Teu furor tantas vezes me inspiraste
E na idade em que vêm os desenganos
Também sempre fiel me acompanhaste,
Tu, que influxos repartes soberanos
Deste monte Helicon, que já pisaste,
Agora me concede o que te peço
Para seguir seguro o que começo.
O seu verso tem quase sempre esta facilidade e correção. A descrição da sua ilha natal, mais vazada nos moldes clássicos que a de Botelho de Oliveira, tem, conquanto topográfica, a emoção nativista que falta a Bento Teixeira. Pinta a vida dos pescadores da ilha, a pescaria da baleia, sua principal indústria, a fabricação do seu azeite, e noticia os produtos, dons e bens da terra, seus frutos e novidades. E terminando, frouxamente aliás, a descrição da ilha que fica no
Porto em que está hoje situada
A opulenta e ilustrada Bahia
assim conclui:
Até aqui Musa: não me é permitido
Que passe mais avante a veloz pena;
A minha pátria tenho definido
Com esta descrição breve e pequena;
E se o tê-la tão pouco engrandecida
Não me louva mas antes me condena,
Não usei termos de poeta esperto,
Fui historiador em tudo certo.
Com o mesmo sentimento nativista
sensível, embora sem emoção notável, desde a
Prosopopeia e mais manifesto em Botelho de Oliveira, precedeu este poema de
alguns anos o de Santa Rita Durão. Também no canto V do seu poema Eustáquidos, Fr. Santa Maria Itaparica,
num sonho que finge, põe certo Postero a profetizar o advento do Brasil e
nascimento do poeta, anunciando o poema da Descrição
da sua ilha natal, que ele
Há de cantar em lira temperada.
Tudo isto com grande insulsez. O
tal poema sacro e herói-cômico por si só não daria ao nome do frade poeta o
mínimo relevo se lho não levantasse a emoção simpática com que cantou a sua
pátria, como à ilha do seu nascimento chamou, e não documentasse a continuidade
da inspiração que se ia criando e ficaria na poesia brasileira como um dos seus
traços distintivos. Sob aspecto da língua não deixa de ser interessante a
medíocre produção de Fr. Itaparica. A língua literária do Brasil ainda era
então e seria por todo o período colonial, apenas talvez com menos arte e menos
número, a mesma de Portugal. Não havia ainda tempo para que os cruzamentos e
outras influências mesológicas houvessem modificado o falar brasileiro, e menos
para que as modificações porventura havidas passassem do falar corrente à língua
dos escritores educados por portugueses e feitos só, ou muito principalmente,
na leitura de livros portugueses ou latinos. A de Fr. Itaparica é, pois, a
língua do tempo, gongórica, empolada e sobretudo amaneirada. Todas as
impressões e ideias se lhe reduzem em adjetivos, que apenas com variações
sinonímicas se repetem copiosamente com pouca propriedade. Aliás o defeito não
é raro, mesmo nos chamados clássicos. Usa abundantemente de termos pouco
vulgares ou já então obsoletos e também de espanholismos e neologismos, tudo
denotando rebusca de linguagem. Encontram-se-lhe: elado, fenestras, temblar, gateando, lesura, trufatil(?), olorizar,
cláveo, estúpeo (do grego stupeo,
caule, mas feito adjetivo?), pevidosa,
ahulidos(?). Descrevendo o preparo do azeite da baleia em Itaparica, fala
dos negros empregados nesse serviço:
Cujos membros de azeite andam untados
Daquelas cirandagens salpicados.
em que a palavra cirandagem desviada do seu sentido vernáculo (= sarandalha) alimpaduras que se apartam cirandando (joeirando) e se lançam fora, tem já a acepção brasileira de restos imprestáveis, imundície miúda, guloseimas vis.
Nenhum outro poeta que mereça
lembrado ou mesmo que o não mereça, mas com obra conhecida, nos depara este
sáfaro período da poesia no Brasil. A Música
do Parnaso foi publicada em 1705, mas os seus poemas são incontestavelmente
dos últimos anos do século anterior, nos quais passou também a atividade
literária do seu autor. Outrossim poetou nesta época Sebastião da Rocha Pita,
acaso a melhor figura literária dela. A sua produção poética, porém, nos seria
totalmente desconhecida não foram os documentos relativos às academias
literárias de que fez parte, existentes na Biblioteca Nacional e as
transcrições deles feitas por Fernandes Pinheiro. Há notícia vaga e insegura de
que escrevera também um romance em verso castelhano. É como historiador que ele
tem um lugar na nossa literatura colonial.
Só para o fim da terceira década
do século XVIII, se nos antolham alguns escritores em prosa mais estimáveis que
os aludidos. Seguindo de perto o seu aparecimento o das academias literárias
aqui fundadas desde meados da segunda década, não é porventura indiscreto ver
neles influências destas.
Como assembleia ocasional de
literatos que reciprocamente se recitavam os seus versos e prosas, havia
academias no Brasil ainda em antes do século XVIII. Gregório de Matos,
notavelmente, e elas se refere nos seus versos satíricos. Mas como associações
literárias e regularmente organizadas datam de 1724. Foi nesta era criada a
primeira, a Academia Brasileira dos Esquecidos. Para em tudo imitar as da
metrópole, cujo arremedo era, fundava-se conforme aquelas com a proteção real,
sob os auspícios do vice-rei, ou antes estabelecida por ele no seu próprio
palácio. Nestes termos, imagem acabada do estilo da época e seu, lhe noticia a
fundação Rocha Pita, que foi um dos seus membros mais conspícuos:
"A nossa portuguesa América
(e principalmente a província da Bahia), que na produção de engenhosos filhos
pode competir com Itália e Grécia, não se achava com as academias introduzidas
em todas as repúblicas bem organizadas, para apartarem a idade juvenil do ócio
contrário das virtudes e origem de todos os vícios e apurarem a sutileza dos
engenhos. Não permitiu o vice-rei que faltasse no Brasil esta pedra de toque no
estimável ouro dos seus talentos, de mais quilates que o das suas minas. Erigiu
uma doutíssima academia, que se faz em palácio na sua presença. Deram-lhe fama
as pessoas de maior graduação e entendimento que se acham na Bahia, tomando-o
por seu protetor. Têm presidido nela eruditíssimos sujeitos. Houve graves e
discretos assuntos, aos que se fizeram elegantes e agudíssimos versos; e vai
continuando nos seus progressos, esperando que em tão grande proteção se deem
ao prelo os seus escritos, em prêmio das suas fadigas."
A Academia dos Renascidos
fundava-se em 1759 com quarenta sócios de número, ou efetivos, e oitenta
supranumerários, ou correspondentes. A maioria versejava ou fazia prosa oficial
ou acadêmica. Glosando motes, versificando temas preestabelecidos ou também
amplificando retoricamente assuntos oferecidos aos seus curtos engenhos, nenhum
destes versejadores ou prosistas tinham virtudes literárias por que perdurasse
na memória dos homens e as suas obras, ainda as impressas, é como se não
existissem.
No Rio de Janeiro foi instituída
em 1736 a
Academia dos Felizes, e mais tarde, em 1752, a dos Seletos, que de fato se resumiu a
uma sessão magna literária, como diríamos hoje, consagrada a celebrar o
governador e capitão-general Gomes Freire de Andrade, que a presidiu. Tinham
estas reuniões a vantagem de serem prazo dado e auditório fácil e benévolo de
letrados e poetas e portanto um estímulo oferecido ao seu estro.
Criadas quando acaso já não
correspondiam às condições da sua origem europeia, mais por imitação das do
Reino, vontade e inspiração oficial do que como uma exigência e produto na
incipiente cultura indígena, tiveram as academias literárias no Brasil, uma
existência transitória e inglória. Mas não de todo inútil e sem efeito nessa
cultura e na literatura que a devia representar. Apesar da origem oficial, e de
serem um arremedo, havia porventura nelas um sentimento de emulação com a
metrópole, e portanto um primeiro e leve sintoma do espírito local de
independência. Acaso a denominação da primeira, de Academia Brasileira dos
Esquecidos, revê o despeito dos seus fundadores contra o esquecimento dos
letrados coloniais na formação das academias portuguesas anteriores. O
propósito que não só essa, mas a dos Renascidos e a dos Felizes declaradamente
tiveram, de estudar sob os seus diversos aspectos o Brasil e a sua história,
traduz evidentemente um íntimo sentimento de apego à terra, com a intenção,
ainda certamente pouco consciente, da parte que no seu desenvolvimento devia
caber aos seus letrados.
A qualificação que todas, apesar
do oficialismo da sua origem ou existência, se deram de Brasileiras
(brasílica), quando ainda não existia ou não era vulgar o patronímico da terra,
porventura já revela um sentimento de separação, do qual não tinham quiçá esses
acadêmicos consciência, mas que o despeito ou motivos menos egoísticos, como a
ufania da sua terra, criara. Como quer que seja apontavam todas ao progresso
das letras e da cultura espiritual do Brasil, e trabalhando, ainda mal, como
trabalharam, por esse propósito, trabalharam primeiro pela nossa emancipação
intelectual e, por esta, sem aliás disso se aperceberem, pela nossa emancipação
nacional. Isso, entretanto, não as impediu de continuarem a fazer a mesma obra
literária dos portugueses, e fazerem-na inferiormente. Sobre haverem iniciado o
comércio e trato recíproco dos homens de letras do Brasil, convocando-os de
toda a parte dele para se lhes associarem, tiveram o efeito imediatamente útil
de chamar a atenção e despertar o gosto e o amor do estudo da nossa história e
das nossas coisas. São testemunho desse seu influxo a História da América
Portuguesa, com que Rocha Pita realizou um dos propósitos da Academia
Brasílica dos Esquecidos, e a História
militar do Brasil, de José de Mirales, sócio da dos Renascidos, e
confessadamente escrita por sua influência.
Estes, com Nuno Marques Pereira,
o autor do Peregrino da América, são
os escritores de prosa mais conhecidos desta fase da nossa literatura. Deles,
porém, só merecem a atenção da história literária Rocha Pita e Marques Pereira.
De Nuno Marques Pereira não sabem
os biógrafos senão que nasceu em Cairu, na Bahia, em 1652, e faleceu em Lisboa
em 1728. Dos seus estudos, vida e feitos nada se conhece, que não seja suspeito
de infundado. Era presbítero secular. No intuito piedoso de denunciar ou de
emendar os costumes do Estado, que se lhe antolhavam péssimos, escreveu o livro
citado, único lavor literário que se lhe sabe, e cujo título completo lhe
define o estímulo e propósito. Chama-se compridamente: Compêndio narrativo do Peregrino da América em que se tratam vários
discursos espirituais e morais com muitas advertências e documentos contra os
abusos que se acham introduzidos pela milícia diabólica no Estado do Brasil.
O Peregrino da América, como abreviadamente se lhe chama, não é de
modo algum um conto ou novela, não tem o menor parentesco com a chamada
literatura de cordel, coisa que no Brasil é do século XIX, quando aqui apareceu
como imitação seródia ou contrafação da portuguesa, então já em decadência. Não se
pode dizer que o livro de Marques Pereira haja iniciado o gênero romanesco ou
novelístico no Brasil. É, porém, uma ficção, como o são também os Diálogos das grandezas do Brasil. Uma
ficção de fim e caráter religioso, obra de devoção e edificação. Consiste
totalmente a ficção em o autor, ou quem finge escrever a narrativa, dizer-se um
peregrino ou viajor que trata da sua salvação (p. 3, ed. 1728) e que andando
pelo mundo aproveita ensejos e oportunidades de doutrinar cristãmente os diversos
interlocutores que se lhe deparam, e esse mundo que, segundo um destes, o
Ancião do cap. I, "é estrada de peregrinos e não lugar nem habitação de
moradores, porque a verdadeira pátria é o Céu". Este pensamento do
misticismo cristão é o de todo o livro. Nem ele tem outra fabulação que os
repetidos fingidos encontros do Peregrino com indivíduos com quem troca
reflexões morais e religiosas, no propósito manifesto de os doutrinar. Seria
ele de todo desinteressante para nós, que não nos compadecemos mais com estas
exortações parenéticas, se o autor lhes não houvesse frequentemente misturado coisas
da vida real, contado anedotas, citado ditos e reflexões profanas, aplicado a
sua doutrina e moralidade a casos concretos, revendo a vida e os costumes do
tempo e lugar, referido fatos da sua experiência e feito considerações através
das quais divisamos sentimentos e ideias contemporâneas e aspectos da
existência colonial. Infelizmente esta feição do seu livro, que seria para nós
hoje a mais importante e aprazível, é de muito excedida pela de prédica de
moral caturra e trivialíssima, na pior maneira do mau estilo da época. Os
moralistas só os sofremos em literatura com originalidade, agudeza e bom
estilo. Nada salva, pois, o Peregrino da
América de ser a sensaboria que se tornou mal passado o século em cujo
primeiro terço foi publicado. Não pensavam assim os seus contemporâneos. Este
livro, que raros serão capazes de ler integralmente, foi um dos mais lidos no
seu tempo e no imediatamente posterior, como provam as cinco edições que dele
se fizeram em menos de quarenta anos, número considerável para a época.
Não era romance ou novela, mas em
prosa e impressa era a primeira obra de imaginação escrita por natural da
terra. E dizia de coisas desta, e de envolta com referências aos seus costumes,
notações de sua vida, alusões aos seus moradores, derramava-se em considerações
de suas manhas. Talvez esteja principalmente nesta atualidade o segredo da sua
estimação e sucesso. Já não era, todavia, tanta a dos letrados seus patrícios
para o fim do século, pois Silva Alvarenga, no canto V do seu poema
herói-cômico O desertor das letras (1774),
enumerando livros então considerados somenos e desprezíveis, cita entre eles o Peregrino da América.
Ao Peregrino da América excedem sem dúvida muito em valor literário,
em distinção de pensamento e excelência de expressão as Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires da Silva de
Eça, publicada em Lisboa em 1752. Entretanto são quase desconhecidas, mesmo dos
eruditos e dos historiadores mais minuciosos da nossa literatura, não obstante
o apreço que parece haverem merecido dos contemporâneos, se tal se pode inferir
das quatro edições que teve até 1768. Matias Aires nasceu em São Paulo a 27 de março de 1705, de José Ramos da
Silva, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda de Lisboa, e de
sua mulher D. Catarina de Horta. Não se lhe conhece a data da morte. Na
companhia de seus pais foi para Portugal com menos de 12 anos, ali graduou-se
de mestre em artes na Universidade de Coimbra e substituiu o pai na Provedoria
da Casa da Moeda, e, parece, nunca mais tornou ao Brasil. Seria, pois, um
espírito de pura formação portuguesa, apenas melhorando, ou somente modificado,
quanto à cultura, pela estadia em França, onde se formou em direito canônico e
direito civil. Pode ser estivesse também em outros países europeus. Além das Reflexões sobre a vaidade dos homens ou
discursos morais sobre os efeitos da vaidade, com o mesmo objeto de
filosofia moralizante escreveu mais uma Carta
sobre a fortuna, que saiu anexa à 4ª edição das Reflexões (1786). Há também
da sua lavra, mas já em outra ordem de ideias, o Problema de arquitetura civil, por que os edifícios antigos têm mais
duração e resistem mais ao tremor de terra que os modernos? (Lisboa, 1777)
e um Discurso congratulatório pela
felicíssima convalescença e real vida de El-Rei D. José, saído em 1759.
Como moralista, Matias Aires
ainda seria hoje benemérito de leitura e estima, sequer pela maior isenção do
seu espírito das estreitezas do moralismo eclesiástico dominante no seu tempo,
e também pela sua expressão mais desempeçada dos vícios estilísticos do tempo,
mais livre, menos pesada e até mais elegante. Encontra-se-lhe mesmo, não
obstante não fazer senão glosar a velha lição judaico-cristã sobre a vaidade,
um ou outro conceito menos vulgar finamente enunciado. Ele seria o melhor dos
nossos moralistas se de fato a sua obra não valesse principalmente ou quase
somente como uma curiosidade literária daqueles tempos, sem tal superioridade
de pensamento ou de expressão que lhe determine a integração nas nossas letras,
e menos qualquer repercussão ou influxo nelas.
O aparecimento destas duas obras
é um acontecimento literário acaso mais importante que a numerosa produção
poética anterior. A prosa é a linguagem da virilidade e da razão. Entrando a
exprimir-se também em prosa quando até aí, salvo o exemplo isolado de Fr.
Vicente do Salvador, só em verso se exprimira, dava a mentalidade que se ia
formando, mostra de maior madureza e variedade de aptidões. O versar das letras
históricas e outras, no mesmo século, pelos Mirales, Jaboatões, Taques, Madres
de Deus, Borges da Fonseca, Velosos, sem embargo da insuficiência literária dos
seus produtos, mais claramente o comprova.
Sebastião da Rocha Pita nasceu na
cidade da Bahia a 3 de maio de 1660. Foram seus pais João Velho Godin e D.
Brites da Rocha Pita, filha do Capitão-Mor Sebastião da Rocha Pita, "uma
das primeiras e mais poderosas pessoas de Pernambuco", informa, justamente
desvanecido da sua prosápia, o neto. Estudou com os jesuítas no seu colégio da
Bahia, até os dezesseis anos. Como no tempo faziam tantos rapazes da colônia de
famílias abastadas, da Bahia foi estudar a Coimbra, em cuja Universidade
se bacharelou em cânones.
De volta à terra, foi feito coronel de um regimento de
infantaria de ordenanças. Casando com uma patrícia, retirou-se para uma rica
fazenda às margens do Paraguaçu, perto da Cachoeira, onde fez vida de
cavalheiro agricultor, dando-se também às letras. Além de um romance em verso, que
parece haver merecido pouca estimação, deu à luz, em Lisboa, duas obras
pequenas, e de assunto mais de reportagem que de literatura, Breve compêndio e narração do fúnebre
espetáculo que na cidade da Bahia se viu na morte d'El-Rei D. Pedro II, em
1709, e Sumário da vida e morte da Excelentíssima
Senhora Dona Leonor Josefa de Vilhena e das exéquias que se celebraram à
sua memória na cidade da Bahia, em 1721. Com estas obrinhas teria tomado gosto
das notícias da sua terra. A fundação contemporânea da Academia Brasílica dos
Esquecidos porventura o estimularia nesse sentido.
Seus sócios deviam "tomar
por matéria geral dos seus estudos a história brasileira", segundo dizia o
próprio auto da sua fundação. Rocha Pita, que fora dos seus fundadores e dos
mais conspícuos, empreendeu escrever a do Brasil, mais cabalmente do que havia
sido ainda escrita. Para realizar o seu intento passou-se a Lisboa e aí
publicou, no dito ano de 1730,
a História da
América portuguesa.
Nem pela intuição e sentimento
histórico, nem pelo sabor literário, emparelha a História de Rocha Pita com a do Fr. Vicente do Salvador. Está em
tudo e por tudo obsoleta, e além da feição por assim dizer oficial da sua
composição, é perluxa, enfática e inchada de pensamento e linguagem. Justamente
o excessivo floreio de estilo com que foi intencionalmente escrita, e que no-la
torna desagradável, fazia-a no seu tempo estimável e foi, não de todo sem
razão, estimada.
Escrita em estilo de prosa
poética, como se fora um poema em louvor do Brasil, com mais entusiasmo e
arroubo de sentimento patriótico do que com a serenidade e o bom juízo da
história, marca justamente a transição da poesia a que quase exclusivamente se
reduzia a nossa produção literária para a prosa em que íamos começar a mais
frequentemente exprimir-nos. Os seus censores oficiais, sujeitos dos mais
doutos do tempo, cobriram-na de louvores, não só à sua composição, mas ao seu
merecimento de obra histórica. Gostava-se então do que ora nos despraz. A frase
de Rocha Pita acham-na eles "verdadeiramente portuguesa, desafetada, pura,
concisa e conceituosa". Afora o casticismo, aliás de mau cunho, não pode a
crítica hoje senão verificar-lhe as qualidades opostas, isto é, a prolixidade,
a afetação, o inchado do frasear e o abuso de conceitos corriqueiros ou rebuscados.
De seu valor histórico disseram os censores coisas justas e boas, se bem
prejudicadas pelo seu tom hiperbólico, aliás consoante com o do livro.
O mérito incontestável da História de Rocha Pita, ainda com as
restrições que do ponto de vista das exigências da história se lhe possam
fazer, o de ser a mais completa publicada, como lhe reconheceram os censores
oficiais, não o era só para os portugueses que assim podiam melhor informar-se
dos sucessos da sua grande colônia. Aos brasileiros, o livro do historiador baiano,
escrito num estilo que lhes seria muito grato ao paladar literário e sentimento
nativista, ensinava-lhes a história da sua terra, sublimando-a por tal forma,
que eles se ufanariam de serem seus filhos.
A velha tendência de apreço e
gabo da terra, primeiro vagido do nosso brasileirismo, gosto e louvor não
artificial e de estudo, mas natural e espontâneo, por inspirá-lo realmente a
grandeza e opulência dela, tendência manifesta, como temos visto, desde os
primeiros representantes espirituais do povo aqui em formação, aparecia agora
na obra de Rocha Pita como que raciocinada, sistematizada na prosa túmida e
florida do seu primeiro historiador publicado. E desde então esse feitio
empolado e hiperbólico de dizer da nossa pátria (casando-se aliás perfeitamente
com o excesso de detratação dela) seria um rasgo notável do nosso sentimento
nacional, manifestando-se literariamente. Apenas haverá d'ora avante poeta ou
prosador que não a celebre e cante com os arroubos líricos do seu historiador
Rocha Pita. Graças à sua influência, tão consoante com o nosso próprio gênio,
será ela magnificada sobre posse, a exata noção da sua natureza deturpada, a
sua geografia falsificada, as suas verdadeiras feições escondidas ou
desfiguradas sob postiços e arrebiques de patriotismo convencional ou
simplório. Das nossas mofinas montanhas, pouco mais que colinas comparadas com
as do antigo continente, ou com as de outras regiões do nosso, não teve Rocha
Pita pudor de escrever que "umas parecem ter os ombros no céu, outras penetrá-lo
com a cabeça". E os demais aspectos naturais do Brasil são assim por ele
engrandecidos.
Ufana-se e embevece-se na
enumeração hiperbólica da nossa fauna e flora, e no seu ingênuo entusiasmado
aceita e propala as noções errôneas que ainda viciam a nossa história natural
popular com a existência de feras temíveis, de gados que se alimentam de terra,
cobras que trituram o "maior touro" e o devoram. Muitas das nossas
abusões e enganos da opulência e feracidade da nossa terra, ilusões umas
porventura auspiciosas, outras certamente funestas, vieram de Rocha Pita e de
sua influência.
Em meio onde a história era
apenas um tema literário e até retórico, sem disciplina científica ou rigoroso
método de investigação e crítica, não era despicienda a obra do escritor brasileiro.
Compendiava e ordenava não sem capacidade e num estilo ao sabor da época, as
dispersas e desconcertadas noções da história do país e vulgarizava-as em forma
acessível e simpática. Os seus defeitos e falhas não seriam aos contemporâneos
tão patentes quanto avultam para nós.
Poder-se-ia incluir aqui, e não
deixaram de fazê-lo os historiadores da nossa literatura, um outro brasileiro,
o padre Francisco de Souza, natural da ilha de Itaparica, na Bahia, onde nasceu
em 1628, falecido em Goa, na Índia portuguesa, em 1713. Em Lisboa publicou ele
em 1710 o seu grosso livro Oriente
conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus na província de
Goa, notável exemplar da historiografia e da linguagem e estilo do tempo.
Tendo vivido mais de 80 anos, dos quais a máxima parte em Portugal e na Ásia, e
escrito de coisas de todo estranhas ao Brasil e segundo o espírito e a maneira
portuguesa, esse nosso patrício apenas o é pelo acidente do nascimento.
Literariamente ainda nos pertence menos que Gabriel Soares ou o autor dos Diálogos das grandezas.
Da mesquinheza poética da maior
parte do século XVIII, surde entretanto, pelo seu último terço, uma por todos
os títulos considerável produção poética. Também, ao menos pelo número e mérito
particular de informação, aparecem trabalhos históricos que constituem
contribuição notável à prosa brasileira. No momento assinalado, uma plêiade de
poetas brasileiros entram a concorrer dignamente com os poetas portugueses
contemporâneos, a fazerem-se bem aceitos da literatura mãe. Mais brasileiros
que nenhuns outros até aí, por mais vivo sentimento da terra natal ou adotiva,
ao qual já porventura podemos chamar de nacional, estabelecem esses poetas a
transição da fase puramente portuguesa da nossa literatura para a sua fase brasileira.
Esta, iniciada pelo romantismo ao cabo do primeiro terço do seguinte século,
terá nalguns deles os seus inconscientes precursores.
São em suma esses poetas,
reunidos sob a denominação, a meu ver imprópria, de "escola mineira",
quando apenas formam um grupo literário, sem algum rasgo característico que
coletivamente os distinga, os que enchem esse período de transição e o
constituem. Com a criação das academias literárias, o crescimento da população,
o seu desenvolvimento mental e econômico e mais o das comunicações da colônia
com o Reino, aumentou consideravelmente o número de versejadores, cujos nomes
constam de repertórios e livros de consulta especiais. Da multidão desses
sobressaem, com qualidades que lhes asseguram um lugar à parte, aqueles a quem,
não obstante não passarem de seis, me proponho a chamar englobadamente de
plêiade mineira: Santa Rita Durão, Cláudio Manoel da Costa, Basílio da Gama,
Alvarenga Peixoto, Tomás Gonzaga e Silva Alvarenga. Estes merecem lugar
separado nesta História.
Outros contemporâneos seus,
Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), Antônio Mendes Bordalo (1750-1806),
Domingos Vidal de Barbosa (1760-1793?), Bartolomeu Antônio Cordovil
(1746-1810?), Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811), e que tais
versejadores que impertinentemente têm sido anexados à chamada escola mineira,
de todo não pertencem ao grupo de poetas com que indiscretamente a formaram.
Alguns lhe não pertencem sequer cronologicamente, como Tenreiro Aranha, nascido
quando este grupo já ia em adiantada formação. São demais tão insignificantes
que podemos dispensar-nos de os levar em conta no estudo da nossa evolução
literária. Deles é um dos de melhor engenho o mulato ou crioulo Caldas Barbosa.
Nasceu no Rio de Janeiro por volta de 1740 ou nesse ano, e faleceu em Lisboa em
1800. Passou o maior tempo da sua vida em Portugal, como familiar, parasita,
quase fâmulo dos condes de Pombeiro, capelão e poeta mercenário dessa família
fidalga e generosa. Não tem nenhuma superioridade, porém apenas valerá menos que
muitos dos poetas portugueses seus contemporâneos com quem conviveu e emulou.
Vivendo a vida portuguesa, conservou, entretanto, alerta, o sentimento íntimo
da poética popular brasileira revelado no estilo de algumas composições suas em
que desce até as formas indecorosas ou delambidas do verso popular:
Meu bem está mal com eu
Gentes de bem pegou nele
Tape, tape, tipe, tipe,
Ai Céu
Ela é minha iaiá
O seu moleque sou eu.
E que tais modos triviais do nosso lirismo popular de mistura com reminiscências, sentimento e sensações de coisas brasileiras.
Cuidei que o gosto de amar
Sempre o mesmo gosto fosse
Mas um amor brasileiro
Eu não sei por que é mais doce.
Gentes como isto
Cá é temperado
Que sempre o favor
Me sabe a salgado:
Nós lá no Brasil
A nossa ternura
A açúcar nos sabe
Tem muita doçura
Ó! se tem! tem
Tem um mel mui saboroso
É bem bom, é bem gostoso.
Cantados à viola, com os requebros e denguices da musa mulata, e o sotaque meloso do brasileiro, versos tais teriam em Portugal o sainete do exótico, para resgatar-lhes a mesquinhez da inspiração e da forma. Não enriquecem a poesia brasileira. Na história desta, Caldas Barbosa apenas terá a importância de testemunhar como se havia já operado no fim do século XVIII a mestiçagem luso-brasileira, que, primeiro física, acabara por influir a psique nacional. Era natural que essa influência no domínio mental se principiasse a manifestar num mestiço de primeiro sangue, como parece era o "fulo Caldas", dos ápodos dos seus rivais portugueses. Depois de Gregório de Matos, na segunda metade do século XVII, o qual pode ser, apesar da sua jactância do contrário, não fosse branco estreme, é com Caldas Barbosa que expressamente se revela na poesia brasileira, a musa popular brasileira na sua inspiração dengosamente erótica e no seu estilo baboso.
Ao contrário da poesia, a prosa
aqui escrita no mesmo momento, a prosa a que, sequer pelo seu gênero e
intuitos, possamos chamar de literária, não deixou documentos que a
valorizassem. Os que existem são todavia, relativamente numerosos, e alguns
meritórios no tocante à nossa historiografia e informação geral do país. Mas
como escritores mínguam a todos, ou pouco avultam em todos, os atributos que
lhes valeria essa qualificação. De outros a atividade mental e literária foi
inteiramente portuguesa e passou-se em Portugal. Estão
neste caso os irmãos Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724) e Alexandre de
Gusmão (1695-1753), ambos paulistas, de Santos. O primeiro nada tem de comum
com a literatura, senão uns medíocres sermões nunca mais lidos; o segundo, alto
e versátil engenho, pertence por toda a sua formação e atividade à literatura
portuguesa, que justificadamente o adotou.
Os brasileiros a que primeiro nos
referimos como autores de obras em prosa são: Pedro Taques de Almeida Pais Leme
(1714-1777); Fr. Gaspar da Madre Deus (1730-1800); Antônio José Vitorino Borges
da Fonseca (1718-1786); Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-176.). São
todos estes autores de crônicas e relações históricas de nenhum ou de ruim
sabor literário ou de secas e insípidas genealogias, acaso subsídios valiosos
para a nossa história, mas somenos como boas letras. Sobre o aspecto literário
os sobreleva Fr. Vicente do Salvador com a sua História do Brasil, e o mesmo Rocha Pita com a da América portuguesa. Entretanto esta
abundância de escritos históricos e outros que poderíamos citar, no século
XVIII, não é sem importância e significação na história da nossa literatura,
como expressão da nacionalidade. Testemunha que se continuava a operar aqui o
trabalho íntimo e lento de uma consciência nacional que buscava apoio e
estímulo na indagação dos fastos da terra, da prosápia e feitos de seus filhos,
de que já tirara desvanecimento. Também provava a nossa capacidade para
lucubrações que no Reino haviam dado renome e consideração aos seus cultores.
Se tivessem sido então publicados, houveram esses escritos podido ser um fator
do sentimento de solidariedade nacional, que é o mesmo fundamento das nações.
Eram em todo caso prova desse sentimento manifesto neles no apreço exagerado e
na ufania, não raro indiscreta, dela. O isolamento completo e a separação dos
que aqui cultivaram letras não eram já tão completas graças à fundação das
academias literárias, que os chamaram donde quer que viessem, para si, como
supranumerários ou correspondentes. A literatura dessa época, tomada a
expressão do seu mais lato sentido, revela a formação vagarosa e ainda obscura
mas certa de uma gente que começa a ter o sentimento de si mesma, que dá provas
de inteligência e capacidade mental e que, tendo a confiada opinião da
excelência da sua pátria, não tardará muito que não entre a pensar na sua
autonomia política. O estímulo daquilo que, na obscuridade dos seus rincões
pátrios, escreviam e guardavam esses historiógrafos desinteressados e modestos,
andaria já recôndito no sentimento popular. É por isso que, sem embargo da sua
formação portuguesa e do seu respeito e apego às tradições espirituais da
metrópole, os poetas brasileiros das últimas décadas do século XVIII foram, com
espontaneidade que lhes explica a distinção, os intérpretes de tal sentimento.
Fato significativo, a poesia de então, pelo estro de Santa Rita Durão,
propõe-se claramente a cantar o Brasil, com a mesma intenção patriótica com que
Camões cantara Portugal.
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