3/10/2018

Castro Alves em São Paulo (Ensaio), de Afrânio Peoxoto



Castro Alves em São Paulo

Tenho saudades ai! de ti São Paulo
— Rosa da Espanha no hibernal Friul!
Castro Alves

Uma das preocupações mais antigas e mais vãs de políticos e sociólogos, de todos os tempos, é essa de derivar a corrente humana, que dos campos flui para as cidades, da periferia demanda o centro. Mecenas, ministro de Augusto, encomendava a Vergílio um preconício da vida rústica — as Geórgicas — com o mesmo intuito com que, dois mil anos quase depois, Meline, outro ministro, da República Francesa, escreveu o Retour à la terre. Cegos que não querem ver... que há zonas de atração que chamam os homens, como a luz às plantas e aos bichos: é lei natural. São Paulo sempre foi, no Brasil, grande foco luminoso.


PARA SÃO PAULO
 


São Paulo antiga - Palace Hotel, na Rua Florêncio de Abreu


Desde 1862, tinha ele apenas quinze anos, e mal chegara ao Recife para concluir os estudos preparatórios e matricular-se na Faculdade de Direito, que a Castro Alves aparecera a obsessão, ainda hoje a de todos os rapazes brasileiros, essas terras do Sul, o Rio, principalmente São Paulo, nosso desejo e nossa esperança. Numa carta a Marcolino de Moura ele alude a estudos projetados juntos, em São Paulo, e que é preciso adiar.

Mais alguns anos se passariam, a criança seria um belo rapaz, na imprensa acadêmica e nos círculos literários de moços ganharia notoriedade; encabeçaria um dos partidos teatrais que glorificavam duas atrizes preferidas; lutaria, a discursos e poemas, pela vitória da sua dama — Eugênia Câmara; venceria o outro partido, porque mais fraco, mais violento, chefiado por Tobias Barreto, que seria obrigado a confessar-se batido, e recolheria, finalmente, — era inevitável, a ele belo jovem, a ela mulher sensível — o prêmio desses sentimentos, tornando-se o amante da atriz, que por ele faz o sacrifício de romper com os seus contratos e o seu empresário. Fica no Recife, ocupada em o amar, enquanto ele, além dessa nova ocupação, pensa num drama, que ela representará. Em começo de 67 estava escrito o Gonzaga, que em setembro desse ano seria representado na Bahia, e havia de trazer ao Rio e a São Paulo.

Finalmente, realiza o seu desejo, e embarca para o Sul. À passagem pelo Rio recebe de José de Alencar e de Machado de Assis, pelo Correio Mercantil, aplausos públicos que o glorificam; no Diário do Rio de Janeiro lê o seu drama a uma assembleia de letrados que o vitoriam; e reconhece no povo carioca, à passagem de uma manifestação patriótica, que é o mesmo povo entusiasta que deixara no Recife e vinha procurar em São Paulo.

Com efeito, já aqui está em fins de março de 68. Hospeda-se no Hotel de Itália, naturalmente com Eugênia Câmara, que toma conta do teatro, mandando vir alguns artistas do Rio. Frequenta talvez a faculdade, onde ouve, diz ele, "o grande José Bonifácio". Mas o principal é a representação do seu drama. "Está-se aqui doido por teatro", escreve a um amigo. Se há Vergílio e Horácio em perspectiva, há Mecenas: "O barão de Iguape pôs à disposição da empresa todo o dinheiro preciso".


IMPRESSÕES DE SÃO PAULO
 
São Paulo antiga - Antiquíssimo casarão da Rua Santo Amaro


São Paulo, a terra e a gente, que impressão lhe teria produzido? Escreve para a Bahia: "Nós os filhos do Norte sonhamos São Paulo o oásis da liberdade e da poesia, plantado em plenas campinas do Ipiranga... Pois o nosso sonho é realidade, e não é realidade... Se a poesia está no envergar o ponche escuro, e largar-se campo afora a divagar, perdido nestes gerais limpos e infinitos como um oceano de juncos; se a poesia está no enfumaçar do quarto com o cigarro clássico, enquanto lá fora o vento enfumaça o espaço com a garoa (é uma névoa espessa como nuvem que se arrastasse pelas ruas) com a garoa ainda mais clássica; se a poesia está no espreitar de um olhos negros, através da rótula dos balcões ou através das rendas da mantilha que em amplas dobras esconde as formas das moças, então a Pauliceia é a terra da poesia". "Sim, continua ele, porque aqui não há senão frio, mas frio de Sibéria; "cinismo" (significava então a palavra uma espécie de tédio tropical, desenvolto e petulante, como correspondendo ao forasteiro spleen, de que tanto se abusou na geração de Álvares de Azevedo), mas cinismo da Alemanha; casas, mas casas de Tebas; ruas, mas ruas de Cartago... (por outra) casas que parecem feitas antes do mundo, tanto são pretas; ruas que parecem feitas depois do mundo — tanto são desertas..." Isto quanto à poesia! Quanto à liberdade, "inclino-me a preferir São Paulo ao Recife".


PRIMEIROS TRIUNFOS

A notoriedade que trazia do Norte, principalmente as credenciais de Alencar, que recebera no Rio, fazia a mocidade curiosa por ouvi-lo. Conta um contemporâneo, Campos de Carvalho, no Correio Paulistano de 3 de agosto de 71: "a redação do Arquivo Jurídico deu um sarau literário no salão da "Concórdia" e o fim da festa era ouvir-se o poeta, cuja fama apagava a recordação de Fagundes Varela. Nessa noite, todas as honras foram dele; o entusiasmo tocou ao delírio quando arrematava a última estrofe d'O Livro e a América e, a pedido geral, encetou o recitativo Visão dos Mortos." Para a Bahia manda ele dizer que "foi uma bela reunião, quase um baile". "Muitos lentes da Academia aí se achavam, o Saldanha Marinho, etc., e todos me receberam da maneira mais lisonjeira", "se algum dia obtive um triunfo, não foi noutro lugar". Para atenuar a fatuidade, sem dúvida, conta que até a senhora do cônsul inglês (uma inglesa! meu caro) veio entusiasmada dizer-me: "Mim gostar muito da sua recitativa!" Além da sociedade, a imprensa. "Em toda parte tenho encontrado uma pátria", diz ele ainda. São Paulo não se pouparia em lhe dispensar carinhos.

Além do heroísmo épico dos seus cantos, afinados pela turba entusiástica que o ouvia, do garbo de sua presença e da sonoridade clangorosa de sua voz, Joaquim Nabuco, outro seu colega da faculdade, denuncia que procurava Castro Alves o efeito (feliz culpa!) começando logo por uma daquelas "bombas", como ele mesmo chamava, cujo resultado era previsto e certo. Mas antes disso, sua simples presença impressionava: — alto, esbelto, pálido, negra e basta cabeleira, olhos pestanudos e refagulhantes, lábio crespo ensombrado por um buço tentador, sempre corretamente vestido de preto — no Rio o compararam por isso com o Eurico, o cavaleiro negro, — sua simples presença já impressionava, confirma Lúcio de Mendonça, outra testemunha, "quando se mostrava à multidão, já entusiasmada só de vê-lo... era grande e belo como um deus de Homero". Seria fácil dominá-las, a essas assembleias predispostas aos arroubos inspirados de sua voz. Rui Barbosa, outro colega da faculdade e dos seus primeiros admiradores, não esqueceria essa voz, "encanto irresistível, desses que transfiguram um orador ou o poeta", "jato contínuo dessa lava sagrada, que fazia dos seus lábios uma cratera incendiada em sentimentos sublimes". Vinha abaixo o teatro, diz-me Sancho de Barros Pimentel, outro contemporâneo e admirador, que assistiria aos triunfos oratórios de Nabuco, Rui, Patrocínio, Silva Jardim, Barbosa Lima... nunca nenhum alcançara tamanhas manifestações de entusiasmo do delírio coletivo da multidão, como Castro Alves. Toda a gente que o ouvia, conta Carlos Ferreira, outro colega de São Paulo, "tinha arrepios de assombro", "sorria ou chorava, permanecia mudo pela comoção fortíssima ou prorrompia em bravos entusiásticos", nele vendo "mais um semideus do que um poeta, menos um poeta que um vidente".

Caíra o Partido Liberal com Zacarias e a Coroa chamara ao poder o Conservador, com Itaboraí: a mutação rápida, inesperada, pareceu mais um daqueles assomos de poder pessoal que indispunham o Império com a opinião pública. A mocidade liberal da faculdade protestava pelos seus jornais acadêmicos, de pequena tiragem, mas, por isso mesmo, de veemência maior. Apontavam as rebeldias que iriam ter na República. Promoveu o Ateneu Paulistano uma sessão de protesto e desagravo, a 22 de julho de 68: não precisava de maior certeza de êxito do que anunciar um poema de Castro Alves. Foi à tarde, às cinco horas, ainda no vasto salão da "Concórdia", iluminado, enfeitado, repleto de espectadores. Falaram Nabuco e Ferreira de Menezes, verberando os nossos costumes políticos, mas, entretanto, respeitadores da causa monárquica. Faz-se a pausa das grandes expectativas, quando assoma Castro Alves à tribuna: a ovação prolongada e estrepitosa ele a recebe grave e sereno; depois, impõe o silêncio, e começa, com este trecho de prosa que, de memória, conservou Campos de Carvalho:

"Senhores! Álvares de Azevedo, outrora, atirou as suas estrofes no tapete de um rei, pedindo a vida de um herói; eu rodo as minhas no coração da mocidade, pedindo-lhe o óbolo da imortalidade para o filho espúrio da realeza". Antes do poema de Pedro Ivo, outra imensa ovação obrigou o poeta a esperar. Depois, foram as estrofes de bronze que descrevem o herói-bandido:

"Cabelos esparsos ao sopro dos ventos
Olhar desvairado, sinistro, fatal,
Diríeis estátua roçando nas nuvens
P'ra qual a montanha se fez pedestal!..."

 que apostrofa à cidade cortesã, e desperta o povo adormecido:

"—...Desperta do sono teu!
Sansão — derroca as colunas,
Quebra os ferros — Prometeu!
Vesúvio curvo — não pares
Ígnea coma solta aos ares,
Em lava inunda os mares
Mergulha o gláudio no céu.

República!... Voo ousado,
Do homem feito condor!
Raio de aurora inda oculta,
Que beija a fronte ao Tabor!

Que importa uma efêmera vitória do despotismo?

Não importa! A liberdade
É como a hidra, o Anteu,
Se no chão rola sem forças,
Mais forte do chão se ergueu.
São os seus ossos sangrentos
Gláudios terríveis, sedentos
E da cinza solta aos ventos,
Mais um Graco apareceu."
............................
"Tal eu — vaga encapelada
Recuo de uma passada,
P'ra levar de derribada
Rochedos, reis, multidões!"

O entusiasmo tocou ao auge. O poeta-vidente das nobres causas liberais, da Abolição e da República, achara na mocidade de São Paulo o seu público de eleição, que receberia esse novo evangelho, para o propagar aos quatro cantos do Brasil. Esse dia 22 de julho de 68, conclui Campos de Carvalho, marcou o da glória definitiva de Castro Alves em São Paulo.

Tornando à terra natal, depois do ato prepotente da Coroa, José Bonifácio, que encarnava a ideia liberal na sua ideal perfeição, seria recebido pelo povo em delírio, à frente a mocidade acadêmica. Castro Alves que achara a sua fama no Recife e que a viera buscar em São Paulo e, como a maior maravilha da terra, anuncia, aqui chegado, estar ouvindo "o grande José Bonifácio", travou logo relações com ele, as da recíproca admiração, ufanando-se o mestre de mostrar-se em público ao lado do discípulo. Agora, na recepção, em São Paulo, era o chefe liberal que se festejava. O Ypiranga, o jornal de Salvador de Mendonça e Ferreira de Menezes, noticiava a 2 de agosto de 68, que Castro Alves "soube, num rapto sublime, manifestar a comoção de quantos acompanham os representantes dos foros populares".

Dias depois, num grande banquete político em que oraram José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça, Martim Cabral, Rui Barbosa, — que nesse dia estreava, e desse discurso contariam os admiradores, para a celebração recente do seu jubileu... — Américo Brasiliense, Barros Pimentel... que saudavam homens e ideias de mais relevo na consideração do país, Américo de Campos levantou-se para brindar a Castro Alves, "como representante do pensamento democrático das províncias do Norte"... Não eram pequenas honras, para um rapaz de vinte e um anos...


São Paulo antiga - Largo de São Bento
INSPIRAÇÕES DE SÃO PAULO

Intimamente, o poeta teria frio, também no coração. Diz ele em uma carta: "Faz frio de morte. Embalde estou embuçado no capote e esganado no "cache-nez"... A estas horas — homem feliz! (o seu correspondente, na Bahia) suas à fresca, nos lençóis de linho, enquanto eu estou gelado com as meias de lã. Olha, se leres poesias nebulosas, germânicas, tiritantes, híbridas, acéfalas, anômalas... não critiques nunca, antes de ver se são de São Paulo, e se forem... cala-te! São Paulo não é Brasil... é um trapo de polo, pregado a goma arábica na fralda da América (como diria o Tobias)". (Era o Tobias Barreto, que ele não deixou nunca de troçar, e lhe pagava em ódio e depois com a malquerença póstuma de Sílvio Romero).

Apesar disso — "o trapo de polo pregado a goma arábica nas fraldas da América, em vez de poemas tiritantes e nebulosos, inspirar-lhe-ia os seus mais sublimes cantos — O Navio Negreiro e as Vozes d'África, ao mesmo tempo os mais heroicos e comovidos que se escreveram em nossa língua. Lendo-os, não se pode deixar de assentir ao que disse Alberto de Oliveira: "excetas algumas estâncias camonianas, não conheço em nossa língua outros versos tão vibrantes", nem ao que sentenciou José Veríssimo: Há aí "eloquência da melhor espécie, sentimento, emoção, e sobretudo uma elevada idealização artística da situação do continente maldito e das reivindicações que o nosso ideal humano lhe atribui. E, com essas qualidades, uma perfeição rara de forma".

A 7 de setembro de 68 anunciou-se para a sessão magna do "Ginásio Literário", a tragédia no mar: — O Navio Negreiro. A festa literária tomou logo o aspecto de reivindicação política, contra os conservadores escravocratas — esse gabinete Itaboraí que se recusava a sequer aludir à questão do elemento servil, e comparava a Abolição à pedra que rolaria da montanha para esmagar o Brasil; pois bem, dissera Pedro II, "eu quero ser esmagado"... mas os seus homens de Estado estavam preocupados com os próprios interesses partidários, que supunham os interesses do país — e foi numa assembleia trepidante de entusiasmo e exaltação liberal, que as estrofes de Castro Alves ecoaram, com sonoridade de epopeia e estremecimentos de comoção:

"'Stamos em pleno mar... Doido no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento,
Os astros saltam como espuma de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?

'Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas."

Embevece-se com a majestade do quadro:
"Em baixo — o mar... em cima — o firmamento
E no mar e no céu a imensidade!"

E a doce harmonia que traz a brisa, o canto dos marujos que boia à tona das águas...

"Esperai!... esperai... deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia...
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa
E o vento, que nas cordas assobia..."

Pede as asas e os olhos de águia dos albatrozes marinhos para ver esses nautas que resvalam à flor das águas... São os espanhóis, cujas "cantilenas, requebradas de languor, lembram as moças morenas, as andaluzas em flor!"; os de Itália, "Veneza dormente — terra de amor e traição, ou de Nápoles, que lembram "versos de Tasso, junto às lavas do vulcão!"

"O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias
Lembrando orgulhoso histórias
De Nelson e de Aboukir.
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara"
"Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!..."

Mas a vista desce mais, e alcança não estes, porém um navio negreiro, que faz o tráfico de africanos para o Brasil... aí, nos porões infectos e apertados, toda uma multidão se estorce de dor e de fome, de miséria e doença, entre látegos e açoites, estertores de moribundos, soluços de agonizantes e o tinir dos grilhões de ferro... E para que a nostalgia do país natal não lhe roube os que restam, para distraí-los, ainda a chicote, o comandante, ao som de uma música infernal, fá-los dançar:

"Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite
Legiões de homens negros como a noite
Horrendos a dançar.
.....................................
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais.
Qual num sonho dantesco as sombras voam!
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!"

O poeta não pode mais à evocação sinistra desse horror e então apela para Deus, com a sublimidade de um profeta bíblico:

"Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, porque não apagas
Co'a esponja das tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala
Se a vaga opressa resvala
Como um cúmplice fugaz
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!"

São os filhos do deserto, guerreiros ousados, mulheres frágeis, crianças inocentes, que arrancados de suas florestas e seus oásis, se não morrem aos tormentos da sede e da fome e dos açoites e das doenças, na lonjura das caravanas pelos areais, vêm ser atirados no porão infecto e imundo, felizes se as penas se acabam, com "o baque de um corpo ao mar":

"Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúmulo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer..."
"Prende-os a mesma corrente
Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!

Senhor Deus dos desgraçados
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, porque não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!"

Se Deus não ouve a súplica, Castro Alves apela para os sentimentos generosos de sua terra, nos versos mais nobres, mais altos, mais comovidos que se escreveram no Brasil: eles estão gravados no coração de todos os brasileiros:

"Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e covardia!
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio, Musa... chora e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto..."

"Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança —
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo,
O trilho que Colombo abriu nas vagas
Com um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais!... Da etérea plaga
Levantai-vos heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!"


PROFETA DA LIBERDADE
 
Castro Alves: O profeta da liberdade

Imaginai o efeito de poesia tão inspirada e persuasiva na alma da mocidade que o escutava, com embevecimentos de êxtase, com frêmitos de paixão. Por isso Amadeu Amaral pôde dizer, com justiça, "ele foi o querido da mocidade e do povo, o mais amado, o mais fascinador, o mais compreendido dos nossos poetas", porque "não foi apenas um poeta, foi um apóstolo e um propagandista, um lutador"... Ele mesmo o dissera, numa epígrafe a outros cantos — pouco lhe importava que louvassem ou apodassem versos seus, a poesia, embora o seu amor a ela, lhe fora sempre um meio consagrado a uma santa causa, ele era apenas "um bravo soldado da redenção da humanidade!"

Com efeito, Castro Alves não foi somente dos mais ardentes abolicionistas e daqueles cuja propaganda mais frutos produziu, foi dos primeiros que o Brasil ouviu: antes de Tavares Bastos e de Perdigão Malheiro, de Silveira da Mota e de Montezuma, de São Vicente, de Pedro II, de Paranhos... ele foi desde 63, quando começara os seus poemas abolicionistas e, no Recife, fundava uma associação libertadora.

A gente que então governava o Brasil seria impermeável a essas ideias humanitárias, mas a mocidade das escolas ouvia-o e se comovia com ele, e as donzelas e rapazes das gerações subsequentes, que leram e se arroubaram com os seus versos, constituíram as gerações que, vinte anos mais tarde, viriam a fazer a Abolição. Joaquim Serra, Ferreira de Menezes, Patrocínio, na imprensa, Antônio Bento, João Clapp, José Mariano, nas ruas, Dantas, Nabuco, Rui Barbosa, no parlamento, a Princesa Redentora e o Ministério Libertador, no governo, foram apenas colaboradores da obra de Castro Alves, a quem a posteridade chamou com justiça o "Poeta dos Escravos". A meio caminho, de sua morte e da lei áurea, um dos libertadores, Ferreira Viana, exclamava aqui mesmo, nas festas comemorativas do seu decenário "a lira emudeceu, mas os sons por ela vibrados ainda reboam cheios de vigor aos nossos ouvidos". Dissera Nabuco: "o seu maior título é o de ter posto seu talento ao serviço da causa da emancipação, da liberdade e da pátria". E Rui Barbosa: "escrevera o poema da nossa grande questão social e da profunda aspiração que a tem de resolver". "A sua influência foi enorme", diz ainda José Veríssimo, "as causas sociais e humanas as viu e entendeu e as cantou como poeta", "poeta nacional, se não mais, poeta social, humano, humanitário".

Abolicionista, antes de Rio Branco, isto é, da lei de 71, que previra:

"Senhor Deus! dá que a boca da inocência
Possa ao menos sorrir
Como a flor da granada abrindo as pétalas
Da alvorada ao surgir,

como previra, antes de Nabuco, a liberdade definitiva em 88:

"Moços, creiamos, não tarda
A aurora da redenção!"

Daqui ele anunciava para a Bahia: "Os meus Escravos estão quase prontos. Sabes como acaba o poema? Devo a São Paulo esta inspiração. Acaba no alto da serra do Cubatão, ao romper da alvorada sobre a América, enquanto a estrela da manhã, lágrima de Deus pelos cativos, se apaga pouco a pouco no ocidente. É um canto do futuro. O canto da esperança. E nós não devemos esperar? Sim, e muito, e sempre"... Ele previa, por esse outro rapto profético, já acentuado por Alberto Faria, lembrado que a tragédia da escravidão de São Paulo finda nos píncaros da Serra do Mar.

Foi Castro Alves republicano, antes de Saldanha Marinho e todos aqueles rebeldes, alguns depois arrependidos, do Manifesto de 70. Daqui mesmo, numa imagem das suas, ele comparou o povo brasileiro ao mítico Prometeu:

"Povo! povo infeliz! Povo, mártir eterno
Tu és do cativeiro o Prometeu moderno...
Enlaça-te no poste a cadeia "das Leis".
O pescoço do abutre é o cetro dos maus reis
Para tais dimensões, p'ra músculos tão grandes
Era pequeno o Cáucaso... amarram-te nos Andes!"

E, outra formosa imagem, como as Oceânides consolavam o titão acorrentado, em face do mar e dos penhascos da barra de Santos, exclamava Castro Alves:

"A musa do poeta irá — filha do mar —
O oceano de sua alma... em cantos derramar."

Mas não só profetizou a Abolição e a República, senão que previa estar a sorte da Monarquia no Brasil ligada à da escravidão, tanto a tolerava.

Nas Estrofes do Solitário, escritas aqui em São Paulo, exclamava:

"Basta de covardia! a hora soa..."

O programa da Monarquia era contemporizar — "o país não estava preparado" para as reformas; ainda e sempre era preciso esperar. Castro Alves perguntava ironicamente:

"Quereis, como o satrapa arrogante,
Que o porvir, n'antessala, espere o instante
Em que o deixeis subir?"

Esqueceriam o destino das dinastias ineptas, da sorte de Luís XVI, e o poeta clama:

"Desvario das frontes coroadas!
Nas páginas das púrpuras rasgadas
Ninguém mais estudou!
E, no sulco do tempo, embalde dorme
A cabeça dos reis — semente enorme
Que a multidão plantou!"

Assim aconteceria, se a dinastia reagisse, e não capitulasse, abandonada pelos seus fiéis e infiéis, e não viesse a revolução de 89 achar apenas um povo de aderentes. Como quer que fosse, previra Castro Alves que a questão servil daria com a Monarquia por terra.

Mas não fica aí, esse dom divino da profecia, vate ou vidente que ele era. Quando a Europa assiste em 70, impassível, ao sacrifício da França...

"Já que o amor transmudou-se em ódio acerbo
Que a eloquência é o canhão, a bala — o verbo
O ideal — o horror!
E nos fastos do século os tiranos
Traçam com a ferradura dos ulanos
O ciclo do terror.
..................................
Já que é mentira a voz — de — Humanidade
Já que riscam da Bíblia a caridade,
E d'alma o coração
E a noite da descrença desce feia
E tropeçando em ossos cambaleia
Dos povos a razão
..................................
Filhos do Novo Mundo! ergamos nós um grito
Que abafe dos canhões o horríssono rugir
Em frente do oceano! em frente do infinito!
Em nome do progresso! em nome do porvir!
..................................
Não! clamemos bem alto à Europa, ao globo inteiro!
Gritemos liberdade — em face da opressão!
Ao tirano dizei — tu és um carniceiro!
És um crime de bronze — escreva-se ao canhão!

Falemos da justiça — em frente à mortandade!
Falemos do direito — ao gládio que reluz!
Se eles dizem — rancor — dizei — fraternidade!
Se erguem a meia lua, ergamos nós a cruz!"

E os filhos do Novo Mundo, americanos do norte e do sul, quase meio século depois o haviam de ouvir, para salvar a civilização que perigava nos campos da França invadida, e, só por isso

"A herança de um suor vertido em dois mil anos
Há de intacto chegar às novas gerações..."

Quereis ver até que ponto foi Castro Alves profeta? Ele prevê, pela disseminação das luzes, pacificamente, não uma Liga das Nações, mas ainda melhor, uma Nação Única, "a Grande Nação", para cujo ideal pacifista apela

"Filhos do século das luzes!
Filhos da "Grande Nação"!
Quando ante Deus vos mostrardes
Tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro

Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo...
Éolo do pensamento
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a Igualdade voou..."

Repitamos, pois, como o nosso Amadeu Amaral, "um lutador", "um propagandista", "um apóstolo" e acrescentemos, pois é de justiça, "um profeta".
  
CUIDADOS DE CORAÇÃO

Mas tornemos a Castro Alves, em São Paulo.

Disse-vos que o poeta aqui tinha frio, também no coração. Eugênia Câmara que lhe dera sempre cuidados no Recife, na Bahia, dava-os maiores em São Paulo: ou fosse que as distrações intelectuais do poeta deixassem-na mais livre, ou que suas renovadas preocupações de arte, dela, tomada ao teatro, aqui, onde já não moravam sob o mesmo teto, os ciúmes teriam bem razão de ser. Talvez que a cegueira do amante lhe desse menos habilidade na dissimulação; o fato era que Castro Alves conseguiu ver o que toda a gente, que não era apaixonada como ele, estava cansada de ver. Eugênia, além de infiel, esquecia-o. Num recitativo, a Meia hora de cinismo, a comédia de costumes acadêmicos tão aplaudida, de França Júnior, ele ainda confessava com humorismo — a ironia dos que sentem:

"Se tu viesses... de meus lábios tristes
Rompera o canto... Que esperança inglória!
Ela esqueceu o que jurar lhe vistes
"Ó Pauliceia", "ó Ponte Grande", "ó Glória"!..."

Mas ei-la que torna por fim
"Batem! Que vejo! Ei-la afinal comigo
Foram-se as trevas... Fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços... do martírio a cruz!"

Isso era em junho; um mês mais tarde em julho, entoa um Hino ao sono, dos seus poemas mais formosos, que, diz Constâncio Alves, honraria a qualquer antologia clássica, opinião que foi também a de Lúcio de Mendonça. Eugênia já não provocava a amorosa insônia do poeta, mas essa outra, dolorida, aflita e saudosa, para a qual ele invoca o sono, o divino bálsamo:

"Tu que fechaste as pétalas
Do lírio que pendia
Chorando a luz do dia
E os raios do arrebol
Também fecha-me as pálpebras...
Sem "Ela" o que é a vida?
Eu sou a flor pendida
Que espera a luz do sol.

O leite das eufórbias
P'ra mim não é veneno...
Ouve-me ó Deus sereno!
Ó Deus consolador!
Com teu divino bálsamo
Cala-me a ansiedade!
Mata-me esta saudade
Apaga-me esta dor.

Mas quando, ao brilho rútilo
Do dia deslumbrante
Vires a minha amante
Que volve para mim,
Então ergue-me súbito...
É minha aurora linda...
Meu anjo... mais ainda...
É minha amante enfim!"

A reconciliação viria, nestes "estremecimentos" do amor, como nas lâmpadas que se vão apagar, e que sobem na chama fugaz, dando a ilusão que crescem e continuam: Castro Alves compõe em agosto outra de suas mais formosas poesias, na qual descreve o mesmo amor com impudência magnífica. Eu vos asseguro, que nem Ovídio ousou outro tanto. O amante deve partir, mas não pode acabar consigo, que não fique:

"Boa noite, Maria! Eu vou-me embora,
A lua nas janelas bate em cheio,
Boa noite, Maria — É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa noite! E tu dizes — Boa noite,
Mas não digas assim, por entre beijos...
Mas não mo digas descobrindo o peito,
— Mar de amor onde vogam meus desejos.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doido afago de meus lábios mornos.

Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos,
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, beijo atento!

Ai! Canta a cavatina do delírio
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda,
Que importa os raios de uma nova aurora?"

"Como um negro e sombrio firmamento
Sobre mim desenrola o teu cabelo
E deixa-me dormir balbuciando:
— Boa noite! — formosa Consuelo!"

Nos seus formosos Tercetos, viria Olavo Bilac a imitar essa Boa Noite. "É noite ainda em teu cabelo preto!" diz um. "Ela abria-me os braços e eu ficava", repete o outro. O que Bilac não imitou, apesar de sensual, foi essa "cavatina do delírio",

"Ri, suspira, soluça, anseia e chora"

porque a poesia de Castro Alves, essa foi sentida e vivida, antes de escrita e imortalizada.
 
A São Paulo antiga dos cafés, dos poetas, da garoa... Rua 15 de Novembro

VIDA DE ESTUDOS

Apesar das mágoas de amor, a vida continuava a correr. À faculdade, Castro Alves, pouco ia, ou raramente, conquanto Carlos Ferreira, um seu companheiro de casa, com José Felizardo Júnior, quando moravam à rua do Riachuelo, seja terminativo; "nunca ia à aula e também quase nunca saía de casa", lendo, prosando, ou escrevendo. Iria uma vez ou outra, para ato de presença, porque, senão, perderia o ano, como esteve quase ao perder. Contou-me o conselheiro Rodrigues Alves, seu condiscípulo — numa geração que deu dos maiores nomes ao Brasil, como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, Afonso Pena e Bias Fortes, Salvador de Mendonça e Ferreira de Menezes, Dídimo da Veiga e Júlio Maria, Sancho Pimentel e Brasílio Machado, tantos e tantos outros... — contou-me seu colega Rodrigues Alves uma anedota que contrasta com outro depoimento, de Barros Pimentel. A este pareceu sempre Castro Alves um desatento a tudo que não fosse poesia: lembra-se bem que de uma ocasião, em aula, em vez de atender ao lente, ocupava-se em rimar as formosas estrofes do Laço de fita; em lugar das Ordenações era sua cogitação a formosa Pepita.

O ex-presidente fez-me diversa confidência. Num dia de sabatina, dele se aproximara o poeta, rogando-lhe a exposição do ponto, pois receava ser chamado e não tivera tempo de o estudar. Ouvira-o com atenção, fizera duas ou três observações, para se confirmar: ao cabo, pedira-lhe que se assentasse ao lado, para acudir-lhe em qualquer vacilação. Assim foi; chamado, Castro Alves respondeu a quase todas as perguntas, com acerto, explanando com brilho o que à inteligência era permitido deduzir; em um ou outro tópico duvidoso, socorrera-o discretamente, não sem ser percebido, entretanto, pelo professor. Foi então, ele Rodrigues Alves, chamado à lição, "o senhor que estivera a querer ensinar quem bem lhe dispensava os auxílios", e, a este começo, vacilara atônita e embaraçada a sua estudada ciência. Resultado, dizia-me bondosamente o ex-presidente, evocando esta cena de quarenta anos antes: — o poeta, nota boa, apenas sofrível o seu modesto professor de alguns minutos, bem aproveitados.

Esse Rodrigues Alves é aquele de quem disse Nabuco que não lograra tirar os primeiros prêmios do Pedro II, porque nunca lho consentira o seu colega. É dele o depoimento do que podia Castro Alves. Apenas, se podia fazer As Vozes d'África ou Ahasverus e o Gênio, certo não perderia o tempo estudando o direito. Tantas faltas havia de dar, que não se pôde matricular para os atos finais, senão mediante dispensa especial, aliás bem informada pelos seus professores.


A REPRESENTAÇÃO DO "GONZAGA"

Antes disso porém, queria levar à cena o Gonzaga e agora com Joaquim Augusto, o primeiro ator brasileiro. Pleiteou junto dele essa representação porque a da Bahia não contava: fora uma "caricatura", que lhe dera "ímpetos de atirar ao fogo (o drama), como as mães da China o fazem aos filhos monstruosos". A razão da insistência era: "o meu trabalho precisa de uma plateia ilustrada. Precisa talvez mesmo de uma plateia acadêmica. O lirismo, o patriotismo, a linguagem, creio que serão bem recebidos por corações de vinte anos, porque o Gonzaga é feito para a mocidade. Mesmo talvez este desnortear-me do trilho e estilo seguidos lhe seja um mérito perante tal público".

E foi; a mocidade de São Paulo teve um estremeção de patriotismo e de esperança, ouvindo um vate que era como o profeta da liberdade, tanto dos cativos como dos homens forros, súditos porém de uma coroa, núncio da inteira liberdade da pátria, com a Abolição e a República.

O espetáculo foi a 25 de outubro; a 27 O Ypiranga dizia: "Recebido pelos espectadores com todas as honras do triunfo, já apresentado com elogios por grande parte da imprensa do Império... O que pudéramos dizer já todos sabem e já o nosso público sancionou na prova solene da exibição cênica... O 3º ato, o mais belo e perfeito, acorda o coração do espectador e acende-lhe na cabeça ideias fortes e varonis. Os adeuses dos conjurados a Gonzaga constituem uma cena das mais tocantes a que temos assistido em teatro. Todas aquelas figuras parece que falam de um pedestal: por ventura as esboçou assim o autor, teve na alma as harmonias da Marselhesa e viu passar-lhe pelos olhos, em caminho do cadafalso, os vultos dos Girondinos, saudando a posteridade... Em conclusão, o melhor elogio que possamos fazer do drama do Sr. Castro Alves é que não pudera ser obra senão de uma alma livre e não ser feita senão para um povo de homens". Dissera Castro Alves ter feito o Gonzaga para a mocidade: Nabuco havia de chamar-lhe, ao autor, "o poeta republicano do Gonzaga".


MOCIDADE DE OUTRORA E DE HOJE

Quem leia nos livros e jornais desse tempo a efervescência social de tal mocidade, direta e insistentemente imiscuída nos negócios públicos, agitando ideias e promovendo realizações, não pode, insensivelmente deixar de pensar na geração moderna, apática e indiferente, dizem alguns que apenas egoísta e utilitária. Por quê? Terá o Brasil mudado, e para pior?

Os pessimistas verberam logo censuras e ironias. Não; defendamos a nossa gente; a alma do Brasil não mudou: mudaram apenas, e é razão da diferença, os nossos costumes políticos.

Tínhamos um regime parlamentar, um soberano que reinava mas não governava, e um governo que o parlamento dirigia, representando o povo. Nesse regime, as câmaras não são feitas para fazer leis, senão principalmente para esclarecerem a opinião pública, pelo debate. Na Inglaterra, onde ele existe em sua maior perfeição, debatido, um assunto, no Parlamento, feita a opinião, decide o governo, após essa deliberação tácita e prévia: é portanto o povo, pelos seus representantes, quem governa. Mas, no Brasil, a nossa índole latina e discursadora esqueceu a finalidade do regime e exauria-se em discussões, sem resolver nada: as mais urgentes reformas eram adiadas lustros e décadas, para um passo... Reclamava a rua; a imprensa exigia; a mocidade, mais impetuosa, vinha a campo, para se obter minguadas concessões: o parlamento, esse discursava. Castro Alves se insurge e ameaça:

"Homens! Esta lufada que rebenta
É o furor da mais lúgubre tormenta
— Ruge a revolução

E vós cruzais os braços... Cobardia!
E murmurais com fera hipocrisia
É preciso esperar...
Esperar mas o quê? Que a populaça
Este vento que tronos despedaça
Venha abismos cavar?"

De tanta procrastinação, quando enfim os negros tomavam a liberdade, fugindo nos cerros de São Paulo e nas ruas das capitais era a autoridade incapaz de proteger a propriedade escrava contra os abolicionistas, que acoitavam os fugitivos, a Coroa fez o Parlamento capitular. Já era tarde e essa reforma foi apenas precursora da reforma do regime, dado por incapaz de satisfazer as nossas aspirações de progresso.

Tal era a fome e sede de reformas que o Governo Provisório da República fez, em pouco além de ano, legislações mais transcendentais que sessenta anos de Monarquia. Na faina de evitar os erros do antigo regime, adotamos outro, que tem os vícios opostos do primeiro. O povo não elege mais, os seus representantes lhe são impostos oficialmente, esses mesmos "eleitos" nem sempre são "reconhecidos" se lhes mudou o favor oficial; reunidos, nada podem, sem iniciativa, e apenas a más horas, fazem a lei de meios que o governo exige: este é que é todo poderoso: — um presidente de república neste regime é régulo absoluto, por quatro anos. Como os homens são vaidosos e vivem à procura de "ligar o nome a alguma obra ou reforma", todas as ideias e sugestões, tenham ou não cabimento, são com pouco transformadas em leis, sem discussão, sem exame, à revelia do povo. Por isso, nada tendo a desejar, nessa legiferação intensiva, sem ideias e causas a discutir, distrai-se a gente em blandícias ou difamações pessoais, rindo-se dos candidatos à cousa pública.

Na Monarquia ansiava-se anos e anos por uma reforma indispensável; na República nos fartam de reformas tão dispensáveis que, de quatro em quatro anos, são reformadas. A mocidade de Castro Alves, se fora de hoje, assistiria como a nossa, indiferente a esses improvisos do poder, que nos tiram o desejo, e até a vontade de protestar, pensando ironicamente que não durará muito, ainda o pior governo, porque o que fizer, bem ou mal feito, será desfeito e refeito. O Brasil, esse irá, apesar disso, sempre mais forte e próspero, a despeito das crises que nos promovem os governos. Felizmente, aos povos adultos, cada vez esses governos valem menos, e a bela árvore há de vingar, embora o mau jardineiro. Castro Alves hoje cantaria epopeias passadas ou previsões futuras, sem deixar de ser o mesmo ânimo generoso e valente, de tantos seus irmãos que há por aí, capazes de bem servirem amorosamente ao Brasil.


MAL DE AMOR E DE MORTE

Depois da apoteose do Gonzaga, que mais podia Castro Alves ambicionar? Entretanto, não era feliz. As crises amorosas de ciúme e reconciliação, que vinham de junho, chegaram graves a setembro; contudo, em outubro ainda Eugênia representava o papel de Maria no Gonzaga. Pronunciaram-se, depois. Nesses períodos, o estro do poeta ficava estagnado; quando muito traduzia algumas poesias desalentadas. Quando veio a ruptura, não lia e não escrevia; fumava, passeava e saía à caça, sem disparar sequer, com que para estar só e erradio com os seus cuidados. Foi assim que de uma feita, contou o seu colega e amigo Brasílio Machado... fora passar o dia no arrabalde do Brás e à tarde tomara a espingarda e saíra ao campo. Ao transpor uma vala, com o salto, a arma voltada para baixo dispara, empregando-se toda a carga de chumbo no calcanhar do pé esquerdo. Pôde arrastar-se até a casa, e o seu amigo e correspondente, o médico baiano Dr. Lopes dos Anjos, conduziu-o então para a cidade, à rua do Imperador, "junto ao atual número 33". Essa casa desapareceu e serviu a ampliação do largo da Sé.

Começou o calvário do poeta. O mal se agravou, sem esperanças de resolução, acordando antigos padecimentos pulmonares, esses impressionantes. As crises de desânimo e desesperação foram dolorosas. Eugênia o abandonara; não lhe faltou porém nunca o carinho e a solicitude dos amigos, que felizmente velaram por ele. Até o presidente da província, o Dr. Cândido Borges Monteiro, barão de Itaúna, afamado cirurgião, trouxeram à consulta. "A cada dor que me lacerava, tinha uma mão de amigo para apertar". Foram, principalmente, Aureliano Coutinho, Carlos Ferreira, José Felizardo, Américo de Campos, Ferreira de Menezes, Campos Carvalho, Lopes dos Anjos, seu constante assistente, Francisco de Paula Rodrigues, esse que foi depois arcediago sem nunca deixar de ser o querido "padre Chico"... foram os angélicos amigos de Castro Alves.

Resolveu-se, finalmente a partir, para a terra natal, após seis meses de martírio "seis meses, diz ele ainda, vividos na comunhão mais santa... em que a minha cabeça desfalecida encontrava sempre um bom coração para repousar". A 19 de maio de 69, noticiava O Ypiranga: Castro Alves parte hoje para a corte, a conselho de seus médicos. "Vai, condor ferido. Mais alto do que tens voado, dominarás ainda as alturas deste hemisfério". De Santos, no dia imediato, despede-se, pelo mesmo jornal, dos amigos de quem pessoalmente não o pudera fazer. Os mais chegados trazem-no a bordo; um deles, Rubino de Oliveira, acompanha-o até o Rio. Do Rio para a Bahia no fim deste ano, da Bahia para o sertão, para tornar à capital, onde, a 6 de julho de 1871 descansava para sempre, faz agora cinquenta anos...

 
São Paulo antiga - Manifestação popular em frente à Faculdade do Largo São Francisco


SAUDADES DE SÃO PAULO

São Paulo, essas terras do Sul, foram para Castro Alves, diz ele, "como o moço Rafael, subindo as escadas do Vaticano", em busca da glória. Deu-lha São Paulo: aqui teve todas as aclamações da mocidade e da imprensa que pudera desejar; aqui escreveu dos mais formosos de seus versos, — hinos e odes épicas, revolucionárias e libertadoras, como a Mãe do Cativo, Prometeu, o Navio Negreiro, as Vozes d'África, — mimos de incomparável lirismo, meigo, apaixonado e até filosófico como a Adormecida, o Hino ao sono, o Laço de fita, a Boa Noite, Ahasverus e o Gênio...

Foi pensando nos amigos que aqui deixara, que reuniu seus versos, num livro: "Recordei-me de vós, ó meus amigos! E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira, onde vagara, nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara". Da amurada do navio no qual se alongava dessas terras do Sul, via ele um rasto de espumas: "Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. Um punhado de versos — espumas flutuantes no dorso fero da vida..." São como os seus versos, essas espumas que refletem às vezes o íris, como "o prisma fantástico da ventura e do entusiasmo — estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude. Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando, nas solidões marinhas a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos — efêmeros filhos de minh'alma — levar uma lembrança de mim às vossas plagas".

E publicou, esse livro de gênio, — o mais lido dos livros brasileiros, as Espumas Flutuantes, — mas não se esqueceu de declarar ao autor a sua qualidade, que era como que, o seu orgulho: "Castro Alves, estudante do quarto ano da Faculdade de Direito de São Paulo"...

Podia ele esquecer São Paulo? Aqui fora amado e admirado; aqui amara e sofrera; daqui havia sempre de lembrar-se, com íntima e dolorida saudade em versos que se não leem hoje sem doce e profunda comoção, pois que definem São Paulo e evocam saudosamente Castro Alves:

"Tenho saudades... ai! de ti São Paulo
— Rosa de Espanha no hibernal Friul —
Quando o estudante e a serenata acordam
As belas filhas do país do sul.

Das várzeas longas, das manhãs brumosas
Noites de névoa ao rugitar do "sul"
Quando eu sonhava nos morenos seios
Das belas filhas do país do sul."

E tinham razão estas saudades: se a Bahia lhe fora o berço, lhe dera a glória São Paulo!



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Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)

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