3/10/2018

Castro Alves Estudante (Ensaio), de Afrânio Peixoto


Castro Alves Estudante

"Pego o compêndio... inspiração sublime
P'ra adormecer... inquietações tamanhas
Violei à noite o domicilio — ó crime
Onde dormia uma nação de aranhas"
Castro Alves

Pensando em vós, estudantes, escreveu um humorista, que somos o desespero de nossos pais até os vinte anos, para sermos desesperados por nossos filhos, cerca de outros vinte depois. Assim vai a vida: quer o destino que aqui mesmo paguemos as nossas dívidas; o que hoje inquieta e aflige, será amanhã inquieto e aflito: a tristeza é que a ordem natural não seja o contrário, que a mocidade venha antes com a inexperiência e, portanto, o descuido de viver, enquanto provações e cuidados se acumulam, para o fim, quando só nos resta a saudade, dessa alegre e feliz juventude que não volta mais, como da flor do lótus disse o poeta, que em cem anos floresce apenas uma vez...


NETOS VINGAM OS AVÓS

O avô de Castro Alves, português e de condição conservadora, deveu ser contrariado pelo filho que adotou profissão liberal e, logo no segundo ano de estudos médicos, os interrompia, para se meter na tropa enviada contra uma sedição, a Sabinada, de 1837, bater-se, e ser louvado pela sua bravura. Quando chegou a vez desse estudante, Antônio José Alves, ser pai, e já era médico e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, desejou ter um filho que pudesse formar com os recursos e vantagens de seu tirocínio aperfeiçoado na Europa, disputado na clínica, aplaudido na cátedra, e, todos três lhe haviam de recusar cumprir esse desejo, desviados para as letras, como que vingando o avô... Até os vinte desesperamos os nossos pais, para aos quarenta nos parecermos com eles, na mesma sorte, que nos reserva o destino...

Os três filhos do Dr. Antônio José Alves foram poetas: José Antônio, o mais velho, que prometia muito, talvez demais, morreu precocemente, louco; Guilherme, o mais moço, não foi feliz, não teve, imerecidamente, a consagração pública dele viria a dizer o segundo irmão:

"Cerca-te o gelo, a morte, a indiferença,
E são lavas, lá dentro, o coração..."


NO COLÉGIO

Esse, o grande Castro Alves, o do meio, foi poeta, antes de o ser. Contou-me um seu colega de colégio que fora seu decurião, e já era, a esse tempo, um menino sujeito a abstrações; desatento ao que andava pela aula; muitas vezes chamou-o à ordem e só mais tarde, quando lhe chegou a glória, compreendeu que o seu decurião já era poeta, sem versos, desde esses mais verdes anos. Poeta não é quem anda sempre fora de si?

Desse colégio Sebrão, em 56 e 57, passara para outro, em 58, o Ginásio Baiano, fundado pelo Dr. Abílio César Borges, educador famoso, de nome nacional, que além de novos métodos pedagógicos, abolição de castigos corporais, tinha por programa estimular a produção literária precoce de seus jovens discípulos. Eram versos e discursos pronunciados em festas cívicas, festejos íntimos, saraus de arte, e depois publicados: os jovens Castro Alves não faltavam à colaboração e, a contragosto do pai, versos deles foram reunidos nas coletâneas de 60 a 61. Castro Alves, o nosso poeta, ensaiava o voo, traduzindo, nas aulas de latim e francês, odes de Horácio e poesias de Hugo, em verso português. Distinguia-se por isso nessas disciplinas, mas, ao invés, a aritmética lhe constituía um pesadelo. Ainda no ano imediato, 62, quando foi para o Recife completar os preparatórios no curso anexo à Faculdade de Direito, não conseguiu a matrícula, porque foi reprovado em geometria.

 
Faculdade de Direito do Recife


Também, não devia estudar muito: jogava bilhar, desenhava e fazia versos: — estudar, nunca foi o forte, ou o fraco, dos estudantes... A um amigo escrevia, por essa época: "Minha vida passo-a aqui numa rede, olhando o telhado, lendo pouco, fumando muito". Ia de quando em quando à Soledade, diz ainda, porque aí havia uma menina — outra ocupação dos estudantes... — formosa, de lindos cabelos negros, morena, "sabes que sou doido pelas morenas", mas "flor sem perfume", "coração leviano como o volver de seus olhos". "Ela me diz que o seu coração é meu, mas eu penso que é do vento". Considera-a, por fim, como um específico contra o spleen... aquele tédio romântico, de que tanto fala Álvares de Azevedo. Naquele tempo, morria-se de aborrecimento aos dezesseis anos...

Apesar dessa idade, Castro Alves era quase um homem, pela estatura; fino, esbelto, ligeiramente encurvado, como se a cabeça lhe pesasse — a frase é de um amigo desse tempo que lhe descreve romanticamente "a beleza dos olhos, a dourada palidez das faces, o negrume intenso dos cabelos e sobretudo o sorriso angélico da fisionomia". "Não era com certeza um belo modelo de estatuária, mas é impossível encontrar-se um conjunto maior de graça e simpatia. Havia um não sei quê de insinuante e de atrativo naquela criatura, que era impossível furtar-se à sua influência". Um defeito, porém, descobre esse panegirista, seu colega Luís Cornélio, — o orgulho. "Era orgulhoso, já naquele tempo, não sei de que ele tinha orgulho, mas sei que já o tinha..." Seria talvez a consciência ou a presciência de seu merecimento. Conta ainda o memorialista a predileção dele pelas gravatas de cores vistosas, e o cuidado excessivo com a beleza das mãos. "A alma desse menino era de uma pureza inexcedível, a inteligência tinha lampejos que ofuscavam como relâmpagos — Hugo, em pequeno, devia ser assim". Não é pequeno elogio para um estudante reprovado em geometria, que, nesse ano de 63, só isto teria por obrigação — repetir esse exame. Enchia o tempo com a convivência, os teatros, desenho e poesia. Num jornal acadêmico, A Primavera, de 17 de maio de 63, publicou os seus primeiros versos abolicionistas: A Canção do Africano. Deste ano conservam-se Pesadelo, Meu Segredo, Cansaço, nos quais já aparece Castro Alves. Nesse ano, ainda, conheceria, talvez apenas de aplaudi-la no teatro de Sta. Isabel, talvez de desejá-la desde esse tempo, a atriz portuguesa Eugênia Câmara, que despertava então ingênuos e fervorosos entusiasmos.


NA FACULDADE E... NA VIDA

Matriculou-se, finalmente, em 64, mas não foi feliz na faculdade porque, tendo vindo à Bahia, deu assim oito ou nove faltas que não logrou ver justificadas, perdendo por isso o ano.

Prossegue no imediato, ainda no primeiro ano, fazendo dos lazeres que lhe dava a matéria já estudada, emprego na atividade social, intelectual, e até sentimental. Foi desse tempo o seu primeiro grande sucesso público, com a recitação d'O Século, a 10 de agosto de 65, no salão de honra da faculdade, entusiasticamente aplaudido por admiradores, que já os contava numerosos. Passou então a residir na rua do Lima, em Santo Amaro, diz outro seu amigo, Regueira Costa, "onde o fui encontrar no convívio de sua encantadora Idalina, a preparar o poema d'Os Escravos". Dessa Idalina ficaram reminiscências no poema Aves de Arribação, rimado anos depois, e que é um primor de poesia lírica. Devia ser em setembro:

"A primavera desafia as asas
Voam os passarinhos e os amantes!

Um dia eles chegaram. Sobre a estrada
Abriram à tardinha as persianas;
E mais festiva a habitação sorria
Sob os festões das trêmulas lianas."

"Quem eram? Donde vinham? — Pouco importa
Quem fossem da casinha os habitantes
— São noivos — as mulheres murmuravam!
E os pássaros diziam — são amantes!

Eram vozes — que uniam-se co'as brisas
Eram risos — que abriam-se co'as flores
Eram mais dois clarões — na primavera!
Na festa universal! — mais dois amores!"

Outra reminiscência é a anedota que representa Augusto Álvares Guimarães, seu amigo e colega, entrando-lhe esbaforido pela casa "a casa branca à beira do caminho", "o asilo do amor e da poesia", a informá-lo que havia sido chamado a exame, dando-lhe no leito em que o supunha jazer, todo enrolado em lençóis, uma palmada de aviso, como para obrigá-lo a levantar-se... Recebera-a, ao invés, o bonito pecado, essa que fazia Castro Alves esquecer-se até do dever tremendo do exame. Por isso mesmo nele seria aprovado simplesmente, em Direito Romano e Direito Natural, embora se diga que foi brilhante o ato, e minguada a graduação: — também é de regra, nunca ser estudante aprovado devidamente... O caso, porém, é que ficara ressentimento político e religioso, da poesia O Século recitada pelo estudante na festa da faculdade, que tinha sonoridades de revolta contra as ideias aceitas, conservadoras e ultramontanas, e pelas incitações liberais e emancipadoras, confiadas à mocidade:

"Luz! sim: que a criança é uma ave
Cujo porvir tendes vós;
No sol é uma águia arrojada,
Na sombra — um mocho feroz.
Libertai tribunas, prelos...
São fracos, mesquinhos elos...
Não calqueis o povo-rei!
Que este mar d'alma e peitos
Com as vagas de seus direitos,
Virá partir-vos a lei.

Quebre-se o cetro do Papa,
Faça-se dele uma cruz.
A púrpura sirva ao povo
P'ra cobrir os ombros nus.
Ao grito do Niágara
Sem escravos Guanabara
Se eleve ao fulgor dos sóis.
Banhem-se em luz os prostíbulos,
E das lascas dos patíbulos
Erga-se estátua aos heróis!

Basta! Eu sei que a mocidade
É o Moisés no Sinai;
Das mãos do Eterno recebe
As tábuas da lei! marchai!
Quem cai na luta com glória,
Tomba nos braços da história,
No coração do Brasil!
Moços, do topo do Andes,
Pirâmides vastas grandes
Vos contemplam séculos mil!"

Esse "simplesmente", atribuído a tal causa, doeu ao poeta que então dissera, prosaicamente, e no calão de examinando: "Um lente talentoso vinga-se do estudante, "espichando-o"; um "burro", dando-lhe um coice". Em verso, saberia melhor apostrofar.

Passa Castro Alves as férias de 65-66 na Bahia, onde viera visitar o pai enfermo e a cuja morte assistiu.


SEGUNDO ANO... AMOR E TEATRO

Torna para Pernambuco, em começo de 66, e funda à rua do Hospício, uma sociedade abolicionista, da qual fizeram parte também Rui Barbosa, Plínio de Lima, Augusto Álvares Guimarães, Regueira Costa e outros colegas seus. Além disto, acende-se a campanha teatral por duas atrizes festejadas, que reúnem em torno dois partidos: Castro Alves é chefe de um em prol de Eugênia Câmara, Tobias Barreto, do outro, por Adelaide Amaral. Amigos até aí, rompem-se as relações entre ambos: da desavença chegam às invectivas. Tobias, mais violento, pragueja e insulta, em verso. Apesar de presumir-se grego, não frequenta as cortesãs:

"Meus instintos não esmago
Não sonho, não embriago
Nos banquetes de Friné..."

Castro Alves responde de improviso atingindo o outro, e lhe aludindo à dama que não podia ser propriamente comparada a uma hetera, pois era casada:

"Sou hebreu... não beijo as plantas
Da mulher de Putifar..."

Parece que o nosso poeta levou a melhor, porque Tobias, corrido, havia de dizer tomando o empréstimo de uma imagem a Hugo embora vertida em má língua:

"De tantas pedras que atiram-me,
Hei de fazer um altar..."

Como se não bastasse a causa da Abolição, a do Amor, defendendo a sua dama, que então o enfeitiçava todo, ainda a República, pregada na praça pública, era seu ministério. Por ocasião de ser dissolvido um meeting republicano, improvisara uma das suas inflamadas poesias, da qual apenas se conservam estes dois versos, significativos:

"A praça, a praça é do povo,
Como o céu é do condor..."

De outra feita numa questão Ambrósio Portugal, ao povo exaltado improvisa algumas estrofes, recitadas da janela de uma casa à rua do Imperador, que haviam de ecoar nos corações jovens que o ouviam:

"Moços! A inépcia nos chamou de estúpidos
Moços! O crime nos cobriu de sangue,
Vós, os luzeiros do país erguei-vos!
Perante a infâmia ninguém fica exangue.

Protesto santo se levanta agora,
De mim, de vós, da multidão, do povo;
Somos da classe de justiça e brio,
Não há mais classe, ante esse crime novo.

Sim! mesmo em face da nação, da pátria,
Nós nos erguemos com soberba fé;
A lei sustenta o popular direito
Nós sustentamos o direito em pé!"

Ainda teria tempo para estudar o Direito canônico e o Direito público e constitucional, quem assim sustentava o "direito em pé"? Talvez, mas foi-lhe melhor que estudar ter na mesa de exame um lente liberal e talentoso — Aprígio Guimarães, que o admirava, e até, além de sonoros discursos, fazia talvez também poemas clangorosos. Como quer que fosse, possuía eloquência festejada, o que lhe mereceu, de invejosos, a pecha de só dizer "palavrões". Revidou, com solene desprezo, em uma réplica-açoite:

"Palavrão... palavrão... só diz quem pode...
Palavrão... palavrão... não diz quem quer..."

Aprígio Guimarães defendendo-se, defendia a Castro Alves contra a increpação muito repetida, a das suas "bombas", como se a sua musa, às vezes épica, não conhecesse ainda mais os acentos ternos e melodiosos, como se não fosse da História repetir-se, e já o divino Ésquilo não tivesse sido acusado por Aristófanes, de dizer também esses mesmos "palavrões"...

Nessa época, os pontos de exame eram tirados com antecedência de vinte e quatro horas, e o estudante chamado procurava colega ou amigo, que debatesse com ele o assunto sorteado: — era o que se chamava procurar "uma objeção" — espécie de training ou treinamento, como fazem os campeões de box com os seus managers ou treinadores, e os adestram para a luta definitiva — também assim os examinandos se adestravam, para a dialética em público com os mestres que os iam arguir e combater, no ato de exame. Conta Regueira Costa, não sem vanglória, que serviu de parceiro a Castro Alves, e no dia seguinte o poeta, bem treinado, "deslumbrou o auditório", discutindo com Aprígio Guimarães sobre "o poder temporal do Papa", assunto no qual estavam ambos de íntimo acordo, aludindo-se, na brilhante controvérsia, a estrofes d'O Século, vingando o poeta da aprovação medíocre do ano anterior, por essa mesma causa, com plena aprovação.

FÉRIAS DE AMOR E DE ARTE

Feitos os atos de exame, refugia-se o poeta com a sua amada num arrabalde do Recife, no Barro, caminho de Tigipió e Jaboatão, compondo um drama, para ela: em fevereiro de 67 estava terminado o Gonzaga ou a Revolução de Minas, que Eugênia Câmara devia representar, amorosamente criado para ela o papel de Maria: idealmente o poeta se encarnava em Gonzaga, emprestando-lhe sentimentos cívicos e ardoroso entusiasmo, que o outro não teve.

Esse ano de 67 perdeu-o para os estudos Castro Alves, porque, em março veio com sua dama à Bahia, para rever a família, e o lar paterno, enquanto a atriz torna ao teatro e em setembro consegue mesmo, na plateia do Teatro São João, representar o Gonzaga com o auxílio de alguns atores e amadores de boa vontade.

A terra natal, porém, não lhe era propícia, surgiam-lhe invejosos, como os que deixara no Recife, e a voz pública comentava o escândalo de uma ligação, que se ostentava sem recato, entre rapaz conhecido e amado da sociedade, e cômica que não tinha renome de virtuosa. Além disto, Castro Alves ansiava por vir ao Sul, ao Rio, onde esperava encontrar a glória, a São Paulo, em cuja gloriosa faculdade queria terminar o seu curso.

Em fevereiro de 68, com Eugênia, embarca, de fato, para a corte. No Rio é recebido festivamente por toda a imprensa; sobe à Tijuca, para apresentar-se a José de Alencar, a quem por carta o recomendara Fernandes da Cunha, "Cícero que vinha trazer Horácio"; no Correio Mercantil carta pública do príncipe de nossas letras a Machado de Assis, então potentado da crítica literária, faz-lhe o maior encômio, e pede que o apresente aos meios intelectuais, servindo de "Vergílio do jovem Dante". Só as comparações eram uma sagração: o reticente Machado de Assis também se entusiasmou: "a musa do Sr. Castro Alves abre os olhos em pleno Capitólio".

A uma assembleia de letrados é lido o Gonzaga, na redação do Diário do Rio de Janeiro, que aplaudem entusiasticamente ao formoso poeta, modesto na sua atitude, romanticamente vestido de preto, lembrando Eurico — o cavaleiro negro. Depois dos competentes, o povo: da sacada desse diário carioca, à passagem de uma manifestação popular em regozijo pela vitória de Humaitá, profetiza, em soberbas estrofes, que ao Brasil,

"O vil tirano há de beijar-lhe os pés..."


NA FACULDADE DE SÃO PAULO
 
Faculdade de Direito de São Paulo

Finalmente, em fins de março de 68, via Santos, estava ele em São Paulo, e matriculado no terceiro ano jurídico, discípulo de José Bonifácio, que ensinava Direito civil e do Conselheiro Manuel Dias de Toledo, professor de Direito criminal: aquele, deputado, pouco depois levado à Câmara, mas pela dissolução desta, ao meio do ano, em agosto, de novo em São Paulo. Castro Alves, a primeira impressão que confessa é esta — acha-se em São Paulo, "ouvindo o grande José Bonifácio". Entre o mestre e o discípulo a admiração mútua apaga a diferença e aproxima a distância: em breve, lado a lado, passeariam juntos. Teriam ocasião de medir-se, as alturas andinas do gênio do poeta e o do orador. "Num rapto sublime" diz um jornal do tempo "foi Castro Alves quem interpretou os sentimentos liberais da mocidade quando José Bonifácio tornou à sua terra, após a ascensão inesperada dos conservadores, por um ato do poder pessoal. Num banquete a José Bonifácio, mestre e alunos — que alunos! — Joaquim Nabuco preside... Rui Barbosa faz a sua estreia... Américo de Campos saúda ao moço poeta, de vinte e um anos apenas... como o "representante democrático das províncias do norte..."

A multidão, conquistara-a, confirmando as credenciais de Alencar e a amizade de José Bonifácio, em festas de arte, no salão da Concórdia, promovidas pelo Arquivo Jurídico, ou pelo Ateneu Paulistano. Os jornais acadêmicos, nesta época, eram prestigiosos, e sua redação disputada pelas mais nobres inteligências como se fora a direção de um partido ou um posto na representação nacional. Nesse ano de 68, Martim Cabral Moreira dos Santos é eleito redator-chefe da Imprensa Acadêmica, e Joaquim Nabuco vem a público declarar que não fora candidato, entre sincero e ressentido: "não quiseram nem eu queria". O Ateneu Paulistano elegia seu presidente a Rui Barbosa, em lugar de Joaquim Nabuco, cujo mandato expirava.

O partido de Nabuco deixava o poder, o de Castro Alves, bem que não houvesse antagonismo entre ambos, subia, e cada vez mais, no conceito público. Onde se apresentasse, reclamava o povo uma poesia — O Século, a Visão dos Mortos, Pedro Ivo... e era o mesmo estrepitoso triunfo. Contou-me um contemporâneo, Bueno de Andrade, então de tenra idade, que o pai lhe chamara a atenção: "Atende bem, no futuro ouvirás falar de um grande homem, esse jovem poeta, que estamos aplaudindo". Outro, amigo dele e dos seus dedicados, Carlos Ferreira, escreveu: "O grande Castro Alves! como diziam todos, na Academia e fora dela..." "quando ele recitava, toda a gente que o ouvia tinha arrepios de assombro e enxergava na esbelta e simpática pessoa do jovem acadêmico mais um semideus do que um poeta, menos um poeta que um vidente e nunca se fartava de o ouvir. Ele também, valha a verdade, nunca se fartava de recitar, e seria capaz, se instassem, de passar a vida inteira declamando as suas inspiradíssimas estrofes".


O SÃO PAULO DE CASTRO ALVES

O São Paulo, de então, se era uma pequena cidade provinciana, e não, como hoje, — a outra capital do Brasil, — tinha uma intensa vida espiritual, que essa nunca mudou. As ruas mais centrais, como a de São Bento, ou do Imperador, agora marechal Deodoro, que hoje têm palácios, eram todas de casinhas baixas, de rótulas escuras, pelas quais espiavam de dentro, às vezes, olhos negros curiosos. Quando não se escondiam atrás das rótulas, disfarçavam-se as moças bonitas indo à missa ou ao teatro, nas amplas dobras das mantilhas de renda. Castro Alves achava que tais casas negras pareciam feitas antes do mundo, tais ruas, de tão desertas, feitas depois do mundo...

O estudante, esse, era o dono da terra, indo e vindo à faculdade, que então vulgarmente se chamava a Academia, escrevinhando nos jornais, promovendo festas literárias, passando pelo Garraux, de sempre, que então, como agora, vendia os mesmos livros, colarinhos, bengalas e chapéus, à mesma clientela, culta e elegante. Apesar dessa vida de atividade dispendiosa, vivia facilmente e ricamente com 80 ou 100 mil reis mensais: era a mesada farta de Castro Alves, Rui, Nabuco, Barros Pimentel... José Felizardo Júnior, estudante e poeta, do Rio Grande, companheiro de casa de Castro Alves na rua do Riachuelo, e a quem ele dedicou o poema Ashaverus e o Gênio, esse era nababo e tinha 200 mil réis de mesada, desperdício que lhe estragou a vida, perdulariamente. Apesar do ensino obrigatório, das chamadas contínuas à lição, e das sabatinas que eram, ao tempo, efetivamente todos os sábados, havia concessões amáveis para certos alunos. Castro Alves, por exemplo, não ia às aulas, também não saía de casa, diz um seu companheiro de "república", Carlos Ferreira, fumando, escrevendo, lendo ou proseando inexaurivelmente.


COMO ESTUDAVA

Quando ia, de raro em raro, à Academia, era para ajustar contas com o bedel, e fazer-se ver pelo lente: durante a lição entretinha-se em rimar seus versos, enquanto o Direito civil ou criminal era explicado, incansavelmente: só a torrente encachoeirada da eloquência de José Bonifácio conseguia prendê-lo e arrastá-lo sob a sua fascinante grandeza, de cimos inacessíveis e insondáveis abismos... Quando não era ele, para não perder tempo, fazia versos... Referiu-me Barros Pimentel que o vira assim, rimando as estrofes do Laço de fita.

"Não sabes criança? Sou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita...
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas
Não rias, prendi-me
Num laço de fita."

Castro Alves pela sua vida airada notoriamente ligada à de uma atriz, nem casta nem cauta, evitava frequentar a sociedade. Entretanto, assediado de convites, uma vez ou outra, nos dias de festa nacional, em que o patriotismo desculpava a ousadia, aparecia nos salões, ao 2 de julho, data baiana, ao 7 de setembro, data paulista, e se recitava, dançava, também fazia como os outros estudantes, pois que tinha mocidade desejosa e expansiva — namorava. Formosas poesias líricas são impressões desses momentos. O Adeus de Tereza, talvez a Adormecida, esse Laço de Fita, relembram tais ocasiões. Dizia-se ao tempo que essa "formosa Pepita" era uma linda rapariga de nome Maria Carolina de Almeida Torres, enteada de uma irmã de Álvares de Azevedo... Recentemente, tive confidência de que fora Sinhá Lopes dos Anjos, filha de um médico conceituado, amigo do poeta, o qual dera esses versos à inspiradora deles, em meio de um baile, na casa paterna, à rua do Imperador...

Seriam essas, seriam outras. Lamartine só fez versos a Elvira... mas Elvira fora Graziela, fora Julie Charles, fora Mlle. Birch, depois Mme. Lamartine, fora finalmente Mlle. Lamartine... Haverá poesias "circulares" que andem de lindas em lindas mãos, e façam bater ardentes corações crédulos que por eles bateu também o coração do poeta.

Por isso, e por tudo, se Nabuco depõe que: "Vimo-nos (ele e Castro Alves) um ano inteiro, dia por dia e nunca o vi dar um momento de atenção às realidades da vida, nem às ambições da mocidade", como se não fora deste mundo; se Barros Pimentel acha-o incapaz de atender sequer a estudos mesmo perfunctórios de direito, quando o queria, embora com esforço, podia Castro Alves mostrar-se estudante, como qualquer e obter as notas precisas que permitiam, depois, os exames felizes; contou-me Rodrigues Alves que lhe ensinara uma sabatina, e, chamado com o poeta, tirara este uma nota boa, e ele a única nota sofrível do seu curso.

Não era, porém o seu forte, nem atender às aulas, nem mesmo ir à faculdade: quando isto ocorria, procurava a convivência dos amigos, os aplausos explícitos ou silenciosos da curiosidade, que sentia despertar; às vezes apenas o eco que suas poesias publicadas no Ypiranga, na Independência, no Arquivo, na Imprensa Acadêmica, não deixavam de provocar. De uma feita, lembra-se Dídimo da Veiga, seu contemporâneo, aqui entrara ao lado dele no saguão da Academia, quando veem na parede escritas algumas quadras do poeta, da poesia Rezas, a que um comentário jocoso frisava a enormidade:

"Na hora em que a terra dorme
Enrolada em frios véus
Eu ouço uma reza enorme
Enchendo o abismo dos céus

Acendem-se os bentos círios
Dos vagalumes sutis...
Ave! — murmuram os lírios!
Ave! — dizem os covis!

Nos boqueirões há soluços...
Tem remorso o vendaval...
O mar se atira de bruços
Co'as barbas pelo areal.

As nuvens ajoelhadas
Nos claustros ermos e vãos,
Passam as contas douradas
— Das estrelas — pelas mãos..."

Castro Alves, ao sentir a crítica, olímpico, o seu desdém à altura do seu gênio, sacudira os ombros e dissera para o seu colega, respondendo ao aleive da parede: "Não tenho culpa se as grandes orelhas não permitem ouvir sons finos e delicados..." Não se dirá que sendo ameno no trato, modesto na atitude, não tivesse razão de orgulho, não o manifestasse quando ferido. Como, porém, sucede aos moços, doía-lhe muito qualquer pública ou ainda apenas divulgada censura.


OUTROS CUIDADOS

Por isso quando outros cuidados, os de amor, lhe tiravam o estro, para responder aos detratores, e consolar-se a si mesmo traduzia aquela longa poesia de Hugo A Olímpio datada daqui de São Paulo e que revela um estado de alma. Coincidia o período de tensão amorosa, que havia de trazer tantas atribulações ao poeta. Eugênia Câmara, já no Recife, ou na Bahia, dizem que lhe era infiel; em São Paulo, morando sob outro teto, desviado ele nas suas festas literárias, ela nas suas representações teatrais no São José, ou no Provisório, depois Apolo, menos dissimulada e mais erradia, viria o poeta a compreender e a ralar-se num doloroso ciúme, que tem suas pausas e não raro o encanto da reconciliação. Um destes momentos ele o descreve, compondo um recitativo para a comédia Meia hora de cinismo, peça de costumes acadêmicos, de França Júnior, que é um primor de graça e de humorismo. Ela vos evocará, melhor que longas páginas, a vida airada dos estudantes de 68, em São Paulo:

"Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! porque assim fugiste?
Em balde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vês?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.

A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro que filei na escola...
Tudo no quarto de Nini me fala
Em balde fumo... tudo aqui me amola.

Diz-me o relógio cinicando a um canto:
"Onde está ela que não veio ainda?
Diz-me a poltrona: "Porque tardas tanto?
Quero aquecer-te, rapariga linda".

Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo clareia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo — no teu seio quente...

Pego o compêndio... inspiração sublime
P'ra adormecer... inquietações tamanhas...
Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...

Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!
Vós todos, todos, que dormis em casa
Dizei se há dor que se compare à minha."
"Nini! o horror deste sofrer pungente
Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente,
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.

Deus do boêmio!.... São da mesma raça
As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro

E tu fugiste, pressentindo o inverno
Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por riso terno
Mesmo eu tomara a primavera a prêmio...

No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...

Se tu viesses... de meus lábios tristes
Rompera o canto... Que esperança inglória!
Ela esqueceu o que jurar-lhe vistes
Ó Pauliceia, ó Ponte Grande, ó Glória!

Batem! Que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! Pequei!... dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços... do martírio a cruz!..."

Nem sempre havia de ser nesse tom de humorismo que a sua lamentação teria eco: em julho, num Hino ao Sono, que invoca, como consolo, vê-se que já não é mais a amada que lhe provoca a amorosa insônia: mas em agosto, Boa Noite, a mais sensual poesia lírica que já se escreveu, há como que uma reconciliação, transbordante de paixão satisfeita. Em outubro, havia de ser representado o Gonzaga, por Joaquim Augusto, o primeiro ator brasileiro, e era Eugênia ainda a Maria que o poeta desejava.


REPRESENTAÇÃO DE "GONZAGA”. EXAME

Essa representação do Gonzaga em São Paulo valia tanto para Castro Alves que suprime a da Bahia, como uma caricatura que fora, e conta esta como a primeira que ia ter seu drama. A razão disto, disse ele ao seu intérprete: "O meu trabalho precisa de uma plateia ilustrada. Precisa mesmo de uma plateia acadêmica. O lirismo, o patriotismo, a linguagem, creio que serão bem recebidas "por corações de vinte anos, porque o Gonzaga é feito para a mocidade". A mocidade de São Paulo o compreendeu e foi uma ovação entusiástica a que recebeu nessa noite de 25 de outubro de 68 sentindo ecoarem, como rebate cívico e liberal, as suas clangorosas notas de abolicionista e de republicano, que ali se achavam fundidas numa forma de arte considerada, ao tempo, como a mais alta e mais completa, porque o teatro para esses românticos era uma tribuna e uma escola e até, para Castro Alves "um altar".

Dera São Paulo ao poeta, além de todas as consagrações que pudera almejar, todas as inspirações para completar o ciclo de seus imortais poemas. Se do Recife trouxe a maior parte das poesias que formariam Os Escravos, aqui escrevera, destes, os mais perfeitos dos seus cantos épicos abolicionistas — O Navio Negreiro e as Vozes d'África.

Foi aqui, segundo confessa, que os concluiu. Além dos versos épicos abolicionistas e republicanos, os encantadores versos líricos, os mais formosos dos seus e dos que no Brasil foram entoados — Hino do Sono, O laço de fita, Boa Noite, o Adeus de Teresa, Ashaverus e o Gênio, Ao ator Joaquim Augusto, Adormecida...

Os atos de exame começavam cedo, nesse tempo, em meados de outubro. Escrevendo ao ator Joaquim Augusto para convencê-lo a representar o Gonzaga, diz-lhe o poeta: "o quinze de outubro está a bater às portas e chamar os espíritos para os sonhos de férias, a dar cabo dos jornais acadêmicos, a mandar-nos pensar nos malditos atos". Quase não pode fazer Castro Alves esses atos de exame porque, das faltas que dera, estava pelo regulamento privado da chamada. Requereu, porém, e foram tão boas as informações dos lentes, que a permissão lhe foi concedida. Tais lentes, que desculpam faltas a um Castro Alves, como o hão de aprovar? Por certo que muito bem! O seu amigo Augusto Guimarães soube na Bahia que fora brilhante o exame; menos que a Castro Alves, devemos por isso felicitar a José Bonifácio e ao Conselheiro Manuel Dias...

RAPAZES DE SÃO PAULO

Depois, foi a ruptura com Eugênia Câmara. Para distrair os seus cuidados o poeta fumava, passeava, e, fugindo à convivência, saía pelas cercanias da cidade, a caçar. Um dia nefasto, a 11 de novembro de 1868, "no arrabalde do Braz", diz seu colega Brasílio Machado, "nos campos então baldios, da Mooca", precisa Bueno de Azevedo Filho, aconteceu-lhe um desastre. Transpondo um valo, a arma, de boca voltada para baixo, dispara, e a carga se emprega toda no calcanhar esquerdo. Arrasta-se daí até a casa, leva-o para o centro da cidade, à rua do Imperador, o seu médico, amigo e conterrâneo, Dr. Lopes dos Anjos, e começa o martírio do poeta, que em São Paulo duraria seis longos meses. Os padecimentos pulmonares acordaram, e hemoptises, a 30 de março, e 1º de abril, com o seu horror e a sua desesperança, prostaram-no, inconsolavelmente. "Fez-se um cadáver o poeta ardente..."

Essa desgraça não tocou entretanto à ingrata rapariga, a quem tanto ele dera de amor, de gênio e até de consideração. Mas não ficou por isso à míngua... Como na Vie de Boheme de Henrique Murger, que a mocidade desse tempo lia enternecida, esses rapazes amigos de São Paulo, folgazões e inconsiderados nos bons dias de festa, cerraram fileira, para se oporem ao infortúnio como se ele fora a musa de todos eles, e em torno do poeta se revezavam na solicitude, no carinho, na abnegação e no sacrifício: foram eles, Américo de Campos, Francisco de Paula Rodrigues, Aureliano Coutinho, Campos de Carvalho, José Felizardo, Carlos Ferreira, Brasílio Machado, Ferreira de Menezes, e, sempre, seu médico e seu amigo, Lopes dos Anjos. Em carta escrita a esses amigos e irmãos de São Paulo, quando a 21 de maio de 69 chegara ao Rio e se confessa, o coração aberto a eles — "a cada dor que me lacerava, tinha uma mão de amigo para apertar..." "Seis meses vividos na comunhão mais santa — na comunhão do pensamento, seis meses em que a minha cabeça desfalecida encontrava sempre um bom coração onde repousar..."

Não é tocante? Esses rapazes de São Paulo, outros como vós, em meio das tontices da juventude, chegada a hora da aflição de um dos seus, aquele que não vivia mais perto da convivência deles, mas que não lhes saía nem do coração generoso, nem da inteligência entusiástica, durante esses seis longos meses, junto do poeta moribundo, fazem de sua família, substituem-lhe todos os carinhos do amor, sofrem com ele, e só o deixam partir quando o reclamam para o Rio e para a terra natal... Vêm com ele a Santos e um deles, Rubino de Oliveira, ainda representando os outros, o leva ao Rio. Se já tivestes tempo de ler Platão, haveis de ter visto o retrato inesquecível da mocidade de seu tempo que passa nos Diálogos: inteligentes, meigos, sutis, corajosos, esforçados, generosos... — é Fedro, é Fedão, é Apolodoro, é Charmide e Lisis, Cherofônio, Teoteto, até o próprio Alcibíades no Banquete... — são todos os tocados pelo divino gênio de Sócrates, alegres com ele nos dias felizes, que o vão chorar no de aflição... Se mudardes o mestre pelo discípulo e os puserdes em torno desse outro jovem e santo Platão, tereis representado Castro Alves e seus amigos.

Rapazes de São Paulo, vós mereceis a comovida gratidão de todos os que amam o poeta, cujo esplêndido gênio teve à sua altura o vosso magnânimo coração. Foi isso principalmente o que eu vos vim, de longe, dizer aqui, e nesta hora de comemoração, representando a memória de Castro Alves!


CASTRO ALVES — RETRATO DA MOCIDADE

Deixai-me, porém, antes das palavras de despedida, recapitular.

Contei-vos a vida efêmera e ardente de Castro Alves, contando a sua vida de estudante, que outra coisa ele não foi; nem ele quis ser outra coisa. Quando pensou mandar um punhado de seus versos como lembrança a seus amigos, essas Espumas Flutuantes, dos mais formosos livros que o Brasil já produziu, no frontispício não esqueceu o seu título de glória: "estudante do quarto ano da Faculdade de Direito de São Paulo". Como estudante, foi um aluno singular — levava faltas, não ia à Academia, perdia os anos, mas ainda assim, tinha quem lhe ensinasse as sabatinas, quem lhe bem informasse os requerimentos de escusa, e quem o aprovasse, entusiasticamente.

Corrido o tempo, uma das gerações que por aqui passaram resolve um dia gravar nestes muros veneráveis os nomes de alguns de vós que viveram sob este teto abençoado. E que nomes serão esses? De graves jurisconsultos, de advogados célebres, de homens públicos conspícuos? Não; apenas, acompanhado de dois nomes de outros poetas, como ele, o de Castro Alves. Quem ora por vós e invoca esses deuses tutelares, é o que de futuro será um ilustre embaixador, mas é apenas então e sempre nobre poeta, é Magalhães de Azeredo. Parece-vos isso justiça, cultores do direito?

Sim, respondo por vós: Castro Alves se não foi bom estudante, perfeito bacharel, advogado, juiz, jurisconsulto, foi mais, e mais é para vós, porque é o vosso ideal de moços, realizado... Esta gloriosa faculdade, se é o templo do Direito, sois vós os serventuários desse culto, e nas oblações de vossa devoção vai o melhor de vossa vida, a vossa mocidade, e vai-se a primícia de vosso talento, com a virgindade do vosso coração. Cada um de vós, muito que seja, tem um ideal, por isso mesmo irrealizável. Pois bem, meus amigos, Castro Alves, esse realizou o vosso ideal, de moços...

Euclides da Cunha, que não fora dos vossos, mas vos amava, como eu vos amo, sem ser dos vossos, ambos talvez pelo mesmo culto, comum, disse daqui mesmo a razão profunda dessa vossa devoção, de admiradores de Castro Alves. Ele representou, num momento de nossa história política e social, todas aspirações generosas da mocidade do Brasil, que previu e ajudou a cumprir, a Abolição e a República, no movimento irresistível das ruas, da imprensa, das câmaras, do governo, que as haviam de realizar... "A sua grandeza, está nisto, ele os viu antes e melhor do que seus contemporâneos", chegando, entretanto, a tempo de prever, como vidente: "aparecimento certo, oportuno, como o de todo grande homem". E porque nesse rapaz de vinte e poucos anos havia um grande homem vós o vindes glorificando, vós o glorificais ainda hoje com a posteridade, que o proclama o maior poeta brasileiro.

Para ajuizar da grandeza dele imaginai um instante: lá Rui Barbosa, Fagundes Varela, Plínio de Lima, Luís Guimarães Júnior, Tobias Barreto, Augusto Guimarães... aqui ainda Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Rodrigues Alves, Afonso Penna, Bias Fortes, Júlio Maria, Brasílio Machado, Dídimo da Veiga, Barros Pimentel... que teria sido desses homens, alguns dos maiores que o Brasil tem tido, se, como Castro Alves, houvessem passado, aos vinte e quatro anos de sua idade?... De nenhum deles ficaria a fama; talvez, quando muito, o nome, como esse Martim Cabral, que foi uma grande esperança, como meteoro fulgindo um instante e que se apagou para sempre...

Pois bem, nesses poucos anos, o poeta conquistou a mais alta e a mais nobre glória literária que possui o Brasil... foi "o poeta dos escravos", como o povo o apelidou; foi "o poeta republicano do Gonzaga", como lhe chamou Joaquim Nabuco; o "poeta original, de feição própria", como viu Machado de Assis; em cuja obra "palpita o poderoso sentimento da nacionalidade, essa alma da pátria que faz os grandes poetas, como os grandes cidadãos", no asserto de José de Alencar; "o poeta nacional, se não mais, nacionalista, poeta social, humano e humanitário", como o julgou José Veríssimo; poeta e profeta, cujo nome se "há de ligar indelevelmente a uma das fases mais decisivas da história nacional", como por fim a razão mesma, a divina razão de Rui Barbosa havia de falar, pela posteridade.

Se a estas irrevogáveis sentenças juntardes que "ele foi o mais querido da mocidade e do povo, o mais amado, o mais fascinador, o mais compreendido dos nossos poetas", como depôs Amadeu Amaral, e, por testemunho incontroverso, há as cinquenta edições de suas obras, apenas neste meio século de sua glória... tereis achado porque, mocidade ardente e generosa da minha terra, impaciente e ávida das esperanças da inteligência, exigente e ousada da ação social benfazeja, tereis achado a razão de vosso culto a Castro Alves. É que ele foi belo e grande como um semideus, forte e nobre como um herói, inspirado e vidente como um poeta, ele foi o vosso ideal realizado, símbolo concreto de vossas inteligências todas, de todos os vossos corações num grande homem só, como que o vosso mesmo retrato, ó mocidade!


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Referências bibliográficas a icnográficas:
Afrânio Peixoto: "Castro Alves - O Poeta e o Poema". Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2016.
Castro Alves: o olhar do outro. Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1997.
Site: http://objdigital.bn.br (Biblioteca Nacional Digital)
Site: http://memoria.bn.br/ (Hemeroteca da Biblioteca Nacional do Brasil)

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