3/09/2018

Descobrimento do Brasil (Ensaio), de Rocha Pomba


Descobrimento do Brasil

1 - Resolvido o problema da índia pelo contorno da África, trata agora a coroa portuguesa de dois outros problemas que deviam ser consequências da cautelosa política que tinha seguido sempre: — o de entrar na posse do que, para o seu patrimônio, existisse no Atlântico dentro da jurisdição fixada, e o de fundar na Ásia o império português.

Deixou-se D. Manuel absorver por este último; não, no entanto, até o ponto de por inteiramente de lado o primeiro daqueles problemas. Não tinha a expedição do Gama conseguido, conquanto bem feliz como empresa econômica, estabelecer no Oriente a influência portuguesa. Andavam por lá os mouros em grandes assanhes e alaridos, a criar para os cristãos uns tantos obstáculos, que só à custa de força militar poderiam ser vencidos.

É com esse fim que se apressa D. Manuel a aparelhar uma poderosa frota de guerra, cujo comando se confia a Pedro Alvares Cabral.

Compunha-se essa esquadra de naus, caravelas, um navio de mantimentos, além de duas embarcações mercantes que se lhe incorporaram — tudo formando o total de treze vasos.

Eram todos os capitães homens afeitos à vida marítima, e já conhecidos por serviços que haviam prestado.

Iam também pilotos e práticos que tinham figurado até na viagem do Gama.

Tinham ainda posto na expedição: Pero Vaz de Caminha, que ia como escrivão da feitoria que se devia assentar em Calicute, e que veio a ser autor da célebre carta escrita da Ilha de Vera Cruz a D. Manuel; o mestre, ou bacharel Joanes, médico (físico) e astrônomo, e ao qual se deve também uma carta com a indicação precisa da situação da terra descoberta; o cronista Duarte Pacheco Pereira, autor do Esmeraldo de situ Orbis; oito missionários franciscanos, tendo por guardião fr. Henrique de Coimbra; alguns padres seculares, e um vigário para Calicute.

2 - Era a frota tripulada por mais de 1 000 homens, "gente escolhida e bem armada"; e ia provida do necessário para dezoito meses, tanto em armas como em munições de boca.

Ao chefe da expedição deram-lhe instruções escritas em um regimento especial. Além disso recebeu ele verbalmente do próprio rei, e dos mais autorizados conselheiros da coroa, muitas recomendações reservadas, e avisos para casos que pudessem sobrevir durante a viagem.

Desde os primeiros dias de março (de 1500) era extraordinário o movimento em Lisboa, devido à grande afluência de gente de todas as províncias, como acontecia sempre que se anunciava a partida de expedições de certa importância para os mares longínquos.

Nos primeiros tempos, as solenidades da despedida davam ensejo a cenas comoventes, como de pompa feral. Ninguém sabia se aquela gente que parte voltaria ao carinho dos lares. De tais temeridades contra o velho oceano não eram todos que triunfavam.

Aquele adeus podia ser o último.

Depois, as coisas foram mudando.

Os heróis pouco a pouco se familiarizavam com o mar.

E então a alegria e a esperança iam podendo mais que o terror.

Até que, desvendados de uma vez todos os mistérios, a partida de grandes expedições passava a ser motivo de festas para toda a população do reino.

3 - É uma de tais cenas que alvoroça agora toda Lisboa.

No dia 8 de março, tendo à frente o capitão-mor, saía do paço da Alcáçova a expedição, no meio de aclamações, dirigindo-se para a margem do Tejo.

O rio simulava agora uma floresta de mastros. As naus estavam embandeiradas, e ostentando profusão de flâmulas de vivas cores.

Sob o troar dos vivas e o estridor das trombetas, seguiu a gente para bordo; e não demorou que as naus salvassem à terra, sob vasto delírio de ovações.

Pelas três da tarde, levantavam âncoras, e desciam vagarosamente até Belém.

Na manhã seguinte, assistiam os expedicionários à missa solene celebrada na ermida do Restelo, com a presença do rei e de toda a corte.

Durante a cerimónia esteve o capitão-mor ao lado de D. Manuel, na tribuna real.

Depois da missa, e do sermão do bispo D. Diogo de Ortiz, o próprio rei entregou a Cabral uma bandeira da ordem de Cristo, signo glorioso daquele novo heroísmo que andava assombrando o mundo.

Ordenou-se outra vez o cortejo, pondo-se logo em marcha para a praia, indo Cabral "a par del-rei", à frente a bandeira conduzida pelo alferes, os frades com cruzes alçadas cantando orações.

Chegados à praia, o capitão-mor e todos os capitães despediram-se de D. Manuel, beijando-lhe a mão; e seguiram para bordo, recebendo os últimos votos e manifestações de todo o povo que enchia a praia.

4 - Saindo do Tejo, tomou a armada rumo ao sul.

No dia 14, pela manhã, estava-se à vista das Canárias. A calmaria ali os reteve todo o dia.

Por isso mesmo, dali em diante começou Cabral a afastar-se quanto possível da costa africana, conforme os avisos de Vasco da Gama.

Uma semana depois iam reunir-se os navios no ancoradouro da ilha São Nicolau, das de Cabo Verde.

Dali prosseguiu a frota cada vez mais pelo alto mar.

Por experiência já se sabia que o cabo da Boa Esperança devia ser dobrado muito por fora.

Pelos meados de abril estava-se na latitude de uns 17 graus, longe da África umas trezentas milhas.

Tomou-se, então, o rumo aberto de leste, como à busca de ponto conhecido. E era isso mesmo o que se fazia com segurança.

Começaram logo a ter sinais de costa não distante.

No dia 21 acentuaram-se os indícios.

No outro dia, 22, desenhou-se aos olhos dos navegantes a linha de terra em certa extensão, de norte a sul.

Não demorou a destacar-se da fita escura o relevo de um monte, a que se deu o nome de monte Pascoal.

Ali fundearam as naus, pernoitando no local.

No dia seguinte, apenas puderam os descobridores verificar que a terra era habitada por selvagens. Sobrevindo mau tempo, procuraram e encontraram, no dia 24, um porto abrigado, ao norte, suficiente para toda a esquadra.

Subiram, então, as naus até aquele ponto, e foram ancorar junto a uns ilhéus, numa larga enseada a que se deu o nome de Porto Seguro e agora localizada em Santa Cruz — Cabrália.

5 - No dia 26 de abril (domingo) armou-se num dos ilhéus (o da Coroa Vermelha) um tosco altar, onde se rezou a primeira missa em terra do Brasil.

Alguns dias depois, repetiu-se a cerimonia com muito aparato em terra firme, no alto de uma colina, onde se levantou uma grande cruz de madeira, à frente da qual se erigiu um altar, onde foi celebrada a missa oficial, pregando fr. Henrique de Coimbra.

Pela primeira vez, naquelas paragens que nasciam para a história, salvou a artilharia; enquanto Cabral tomava posse formal da Terra, em nome do seu soberano, dando-lhe o nome de Ilha de Vera Cruz (1 de maio). Convém que se não perca ensejo de notar como tudo se vem fazendo desde que se saíra das Canárias.

Desce-se pelo alto mar. Em certa altura, ruma-se para leste, quebrando a linha quase em ângulo reto.

Avista-se dentro de alguns dias, a terra procurada.

Desembarca-se ali; celebra-se missa; chanta-se ao lado da cruz o padrão da coroa.

E no outro dia, 2 de maio, estava a frota de novo ao mar, agora, sim, rumo do seu destino.

Tudo isso se passa sem nenhuma surpresa, sem um gesto de espanto e admiração, como se o que se faz é tarefa já sabida.

Cabral comunica o fato ao rei. Caminha escreve a D. Manuel a sua famosa missiva. Mestre Joanes também escreve ao rei. Mas nenhum deles tem uma exclamativa, uma palavra de ufania ao menos diante daquela fortuna.

É como se aqueles homens dissessem ao rei que tinham desempenhado o encargo que traziam.

E para que o rei não assuste a Europa levantando logo todo o pano, fala-se ainda em ilha, como sempre se fazia, e como sem dúvida se combinara ao sair de Lisboa.

Se era uma ilha, como é então que, no ano seguinte, a primeira expedição exploradora, em vez de vir à latitude de Porto Seguro, vem ganhar terra duzentas léguas para o norte?

É que os portugueses já sabiam que a ilha de Vera Cruz era muito grande...

6 - Antes de prosseguir na sua derrota, fez o capitão-mor retroceder para Lisboa o capitão Gaspar de Lemos, com a incumbência de dar ao rei notícia do descobrimento.

Por esse capitão escreveram a D. Manuel, tanto o chefe da expedição, como Pero Vaz de Caminha e o bacharel Joanes.

Em Lisboa não produziu a notícia nenhuma sensação. Apressou-se apenas D. Manuel (e isso é o que queria) a comunicar o sucesso às outras cortes, e sem grandes mostras de quem sentisse a sua fortuna aumentada: achara-se uma ilha que ia ser de vantagem como estação para os navegantes da Ásia...

Ainda hoje discutem-se muito certas particularidades da obra de Cabral; como por exemplo: se foi ele o primeiro que chegou a esta parte do novo mundo, e se teve o propósito de descobrir terras neste lado do Atlântico.

Quanto ao primeiro ponto, torna-se já impertinente a discussão; pois o feito do navegante português é o único que tem autenticidade histórica.

E se a controvérsia se ampliasse para abranger todos os aspectos da questão, é claro que a prioridade dos portugueses encontraria fundamentos na própria obra das grandes navegações, que eles iniciaram, e nas quais não tiveram competição de nenhum outro povo senão depois de desvendados os caminhos.

Mesmo que se viesse a criar um ou outro predecessor de Cabral no Brasil, a tais predecessores poderiam os portugueses opor mais de um de navegantes seus a quem a América não era desconhecida mesmo antes de Colombo.

Que valor podem ter, portanto, as tais viagens de Jean Cousin, de Vicente Pinzon, de Diogo de Lepe?

7 - O outro ponto discutido é ainda mais frágil.

 O Descobrimento do Brasil - Quadro de Oscar Pereira da Silva (1867-1939)


Até certa época, todos os cronistas, e até historiadores de nota, nacionais como estrangeiros, davam o sucesso como puramente casual.

Desde os princípios do século passado, começaram a aparecer algumas dúvidas; e em breve se foi atacando, primeiro timidamente, e por fim com grande vigor, a velha versão, que tinha por si uma coerência de três séculos.

Hoje pode considerar-se inteiramente desfeita a antiga lenda da tempestade e das correntes pelágicas.

Enquanto abriam pelo sul o caminho da Ásia, nunca deixaram os portugueses de ir devassando, ao mesmo tempo, o Atlântico ocidental.

De Vasco da Gama por diante, o pensamento de assegurar a posse de terras descobertas neste oceano tornou-se obsidente para os portugueses.
Até que, discriminadas entre as duas coroas ibéricas as zonas respectivas de domínio, puderam eles fazer o que até então não tinham feito por não arriscar a grandeza do seu patrimônio.

Decerto que Cabral não saiu do Tejo para descobrir o Brasil. Nem isso se conceberia, sabendo-se como sempre andou precavida a corte de Lisboa. O que ela sempre quis, ainda quer agora, isto é, fazer passar a descoberta do Brasil como feita por acaso.

Por isso mesmo é que, em vez de mandar uma caravela direito à terra de Vera Cruz, incumbe a uma grande expedição, que tinha outro destino, de vir, de passagem, achar a dita terra.

Cabral propriamente não fez mais que um reconhecimento.

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