3/30/2018

Literatura Brasileira: Álvares de Azevedo (Ensaio biográfico), de José Veríssimo


Álvares de Azevedo

Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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A Lira dos vinte anos e as Poesias diversas, que compunham o primeiro tomo das Obras poéticas de Álvares de Azevedo, eram uma novidade na poesia brasileira, quase igual ao que haviam sido os Suspiros poéticos, de Magalhães, em 1836, e os Primeiros cantos, de Gonçalves Dias, em 1846.
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Manoel Antônio Álvares de Azevedo nascera em São Paulo em 1831. A infância passou-lhe no Rio de Janeiro. De menino revelou grande inteligência e curiosidade mental, estudando e tanto e tão bem que aos dezesseis anos completara com aproveitamento e brilho o curso do Colégio de Pedro II e recebia a carta de bacharel em letras. Mais que assíduo leitor, era um devorador de livros, ainda na idade em que a tal apetite não pode corresponder igual capacidade de assimilação. Em São Paulo, para onde passou a estudar Direito, distinguiu-se pelo talento com que acaso supria a aplicação e pelo seu precoce engenho poético. A liberdade que lhe outorgava a vida de "acadêmico", numa pequena cidade escolar onde os estudantes tinham graças de estado de que usavam e abusavam, a ausência do constrangimento familiar e as mesmas isenções que lhe conferia o renome de menino prodígio que levara do Rio, influíram-no a viver a vida romântica, realizando as idealizações dos poetas de que se achava saturado, Musset, Byron, Espronceda, George Sand, ou imitando a existência e vezos que lhes atribuía a eles ou tinham as suas criaturas. E pela imaginação ao menos, começou a viver tal vida na qual, com as suas nativas inclinações, entrou muita literatura. Como, porém, o arremedo se lhe fundia perfeitamente com o temperamento e correspondia em suma aos seus mais íntimos instintos poéticos, não resultou em disparate conforme com mais de um tem acontecido. Da combinação das próprias tendências com a imitação literária, criou-se uma vida factícia. Presumiu transplantar para a mesquinha vida de S. Paulo de meados do século passado, costumes e práticas do Romantismo europeu. Quis praticar as façanhas sentimentais dos heróis de Musset e Byron. A candura com que o fez não só o salvou de um ridículo naufrágio, mas até o engrandeceu, criando-lhe a feição que o distinguiria na poesia brasileira e o faria um dos seus dominadores. Daquele seu teor da vida romântica, a expressão literária é a Noite na taverna, composição singular, extravagante, mas acaso na mais vigorosa, colorida e nervosa prosa que aqui se escreveu nesse tempo.
Mostrava-se Álvares de Azevedo poeta pessoal e subjetivo, como não fora talvez nenhum dos nossos antes dele e raros o seriam depois. Impressões da natureza ou de arte não lograva nunca objetivá-las. Transfundiam-se-lhe naturalmente em íntimas sensações, por via de regra dolorosas. É, neste período, o primeiro que quase unicamente canta de amor, que fica alheio à natureza que o cerca ou à nação a que pertence. Só lhe interessa a mulher, "o eterno feminino" de que foi talvez o primeiro a ter aqui o sentimento à maneira goetiana, e que o absorve e alucina. Não é fácil distinguir o que é nele inspiração e sensibilidade poética do que são instintos e impulsos sensuais de moço brasileiro, superexcitado pela tísica que o minava. Eram raros nele os temas objetivos vulgares em Magalhães, Porto Alegre e Gonçalves Dias e menos os temas retóricos ou adequados às amplificações poéticas, tão ao gosto destes, inclusive o último. Quando casualmente os tratava, ou incidentemente lhe acudiam, envolvia-os com o seu sentimentalismo romântico, preocupações femininas ou amorosas, em imagens, pensamentos e sensações. Malsinando dos políticos traidores de seus ideais e que tudo sotopõem aos seus baixos interesses, a imagem de que se socorre é ainda de poeta amoroso: 
Almas descridas de um sonhar primeiro
Venderiam o beijo derradeiro
Da virgem que os amou.

Mesmo quando o desespero romântico, a sua sensibilidade doentia o reverte às crenças tradicionais como nos Hinos do profeta, declamação poética muito à moda romântica, se bem mais eloquente que similares de Magalhães, ainda nesses momentos se lhes insinua na inspiração o eterno feminino, um eterno feminino qual o podia conceber um poeta brasileiro, jovem, sensual e ardoroso. Como aliás nenhum dos poetas da sua geração, Álvares de Azevedo não é um poeta descritivo, um paisagista, conforme mais ou menos serão quase todos os nossos depois dela. Quando, porém, acerta de ter uma inspiração da natureza, à sua emoção mistura-se infalivelmente a mulher e o amor, reagindo sobre a materialidade da impressão e idealizando-a. Vejam Tarde de verão, Tarde de outono, em que ao descritivo inculcado pelo título se substituem puras sensações subjetivas.
Segundo era já consuetudinário na nossa poesia, a sua terra também lhe inspira um canto de amor em que não falta o confronto preferencial com terras estrangeiras: 
No italiano céu nem mais suaves
São da noite os amores
Não tem mais fogo os cânticos das aves
Nem tem mais flores!

Onde sentimos reminiscências da Canção do exílio, de Gonçalves Dias. Mas o que lhe aformoseia a terra natal e lha faz amada é ainda a mulher querida que nela vive. Ao descante de sua terra mistura os seus transportes amorosos.
Aos homens doentes e desconsolados pela ideia da morte, máxime se são poetas, acontece recolherem-se em si mesmos e viverem de uma vida interior. Álvares de Azevedo, valetudinário precoce, foi levado a viver essa vida, apesar das alegrias da idade que lhe resumam em mais de um poema faceto ou humorístico. Alegrias e tristezas chocam-se-lhe na alma jovem, ardente e ambiciosa, produzindo a ironia por vezes amarga de alguns dos seus poemas (O poema do Frade, Um cadáver de poeta, Ideias íntimas, Boêmios, Spleen e charutos) os gritos de descrença e desesperança desses e de outros e de prosas como a Noite na taverna. Dessa ironia é ele o único exemplar na nossa poesia, como seria o instituidor nela dessa desesperação e descrença. De tal estado d'alma lhe veio, com o nímio subjetivismo, o sentimento ora acerbo, ora zombeteiro, da vida, e a carência ou a pobreza de impressões da natureza ou da sociedade na sua poesia. Destas últimas apenas se lhe achará um exemplo claro no único poema objetivo que deixou, Pedro Ivo, aliás um dos mais admiráveis da nossa poesia, dos raros em que o motivo político ou social da inspiração não sufoca ou amesquinha os elementos propriamente poéticos, antes lhes serve excelentemente à expressão. É que no poema de Álvares de Azevedo predominou o mesmo objeto da sua inspiração, a sua íntima emoção mais de poeta que de repúblico.
Entre estes poetas foi Álvares de Azevedo um dos espíritos literariamente mais cultos. Conheceu as obras-primas das melhores literaturas na sua língua original, e tinha boa lição das letras-mães da nossa. Havia atilamento e bom gosto no seu espírito crítico, apenas iludido pelo seu entusiasmo juvenil. Conhecia e amava os portugueses, e foi um dos que sofreu a influência de Garrett, a quem tinha alta e merecida estima. Do influxo do lirismo e da forma garretiana há talvez sinais em seus poemas Ai Jesus!, o poeta, amor e poucos mais. É porém uma influência toda lateral, digamos assim, em que o poeta brasileiro, ainda sofrendo-a, conserva a sua personalidade. Nem ela obrou então aqui com a mesma generalidade ou força, com que atuava a literatura portuguesa antes do Romantismo.
A ideia da morte é uma obsessão em Álvares de Azevedo. Direta ou indiretamente, intencional ou inconscientemente, aparece ou insinua-se-lhe nos versos como a que, com a do amor, lhe é mais familiar. Lembranças de morrer, um dos seus mais belos poemas, como Se eu morresse amanhã, de igual sentimento e beleza, não são mais que manifestações explícitas da íntima angústia de sua alma de que, como verdadeiro poeta, ele fez deliciosas canções. E apenas haverá algumas das suas que a não reveja.


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Imagens:
Acervo da Biblioteca Nacional Digital

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