Extraído do Livro "História da Literatura Brasileira", publicado no ano de 1916. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Do grupo baiano o mais conhecido,
o mais interessante e curioso e ainda, em suma, o mais distinto, é Gregório de
Matos. Se, como parece, são realmente suas as numerosas composições métricas
que, em cópias do século XVIII, chegaram até nós, foi ele também o nosso mais
copioso poeta dos tempos coloniais. Há vários volumes manuscritos de obras
suas. São umas sérias, outras satíricas e burlescas, a máxima parte aliás, mais
burlescas do que satíricas. São estas não só as mais porém as únicas
conhecidas, tanto dos historiadores da nossa literatura como do vulgo dos
letrados.
Da porção séria da obra de
Gregório de Matos não julgaram aqueles dever ocupar-se. Deste descuido resultou
uma noção imperfeita e uma ideia errada do poeta. Fizeram dele um herói
literário, um precursor do nosso nacionalismo, um antiescravagista, um gênio
poético, um repúblico austero, quiçá um patriota revoltado contra a miséria
moral da colônia. Houvessem procurado conhecer a parte não satírica de sua
obra, ou sequer lido atentamente a parte satírica publicada, única que
conheceram, haveriam escusado cair em tantos erros como juízos.
Único entre os poetas e
escritores coloniais, coube a Gregório de Matos a fortuna de ter um biógrafo
ainda, quase seu contemporâneo. Esta sua biografia escrita por volta do meado
do século XVIII, mais de quarenta anos depois dele morto, e o fato das
numerosas cópias dos seus poemas provam a fama que havia adquirido e a estima
em que era tido. Uma e outra não deixaram de atuar nos que modernamente o
estudaram, aliás com preconceitos nacionalistas já de todo desapropositados. É
também ele acaso o único dos nossos poetas de quem, antes dos mineiros,
encontramos lembrança em autores portugueses. O bispo do Pará, D. Fr. João de
São José, nas suas Memórias, de
meados do século XVIII, consagra-lhe um parágrafo.
O seu parcialíssimo biógrafo
noticiou, e todos o têm repetido, que o padre Antônio Vieira dizia que
"maior fruto faziam as sátiras de Matos que os sermões de Vieira".
Pode ser, mas em toda a obra de Vieira referente ao Brasil se não encontra a
mais vaga alusão ao poeta, e não é de crer o asserto na boca do soberbo
jesuíta.
Filho de um escudeiro fidalgo
emigrado da província portuguesa e proprietário na Bahia de uma senhora
brasileira de boa geração e afazendada, Gregório de Matos cedo foi mandado
estudar a Portugal. Ali se doutorou em leis em Coimbra, onde se lhe revelou o
engenho poético e a índole satírica. Na indisciplina geral da sociedade
portuguesa, mais do que estreada naqueles princípios do século XVII, teria a
Universidade, isto é, a corporação de seus alunos, como sempre teve, parte
conspícua. Não se precisa de grande esforço de imaginação para ver o nosso
brasileiro, naturalmente com boa mesada, reputação de rico, desenvolto,
talentoso, chistoso e trêfego, representando saliente papel nas famosas troças
e tropelias daquela rapaziada irrequieta e bulhenta. "Anda aqui, escrevia
desde Coimbra a um amigo da Corte um seu condiscípulo, Belchior da Cunha
Brochado, ao depois desembargador na Bahia, anda aqui um estudante brasileiro
tão refinado na sátira que com suas imagens e seus tropos parece que baila Momo
às cançonetas de Apolo." Imagina-se o furor que ele faria em Coimbra.
Dali já conhecido e estimado pelo
engenho poético e gênio folgazão, parece saiu também com bons créditos de
leguleio, confirmados pouco depois na prática de advocacia com um bom letrado,
com quem trabalhou em
Lisboa. A metrópole foi-lhe, como a tantos outros brasileiros,
caroável e propícia. Teve em Lisboa os lugares de juiz do crime e de juiz de
órfãos. Como tal uma de suas sentenças figura nos Comentários de Pegas às ordenações do Reino. Cresceu em créditos e
considerações de jurista e jurisperito, com bons augúrios de aumentos na
magistratura, quando de súbito se viu baldado nas suas pretensões a maiores
cargos e, ao que parece, malquisto da Corte ou do Governo. O seu biógrafo, o
licenciado Pereira Botelho, cujas são estas notícias, duvidosas por serem de
uma única testemunha, que não era sequer presencial, não diz claramente o
motivo deste desfavor.
Das suas retorcidas explicações,
no mais sesquipedal estilo do tempo, pode-se porém induzir sem risco de erro
que à sua veia satírica, tão bem iniciada em Coimbra, deveu Gregório de Matos a
sua desgraça. Deu-lhe provavelmente curso e criou-se inimigos entre os
poderosos. Mas ainda nesta conjuntura não lhe foi a fortuna de todo adversa,
pois lhe deparou um favorecedor no primeiro arcebispo nomeado para a Bahia. Sem
obstáculo de não ter Gregório de Matos mais que as ordens menores, o nomeou
tesoureiro-mor da sua catedral, acrescentando-lhe o cargo de vigário-geral. De
Lisboa veio Matos amatalotado com um patrício, que recolhia à terra como
desembargador da Relação. Se são exatos os dados do seu biógrafo, teria
Gregório de Matos, quando regressou à terra natal para nela viver, 58 anos
feitos. Era já um pouco tarde para se lhe afazer e afeiçoar. Não seria uma
natureza afetiva, como não o são em geral os satíricos. Mostra-o se ter deixado
ficar em Portugal, donde só saiu obrigado das circunstâncias. Voltando do
desterro de Angola, deixou-se também, por puro espírito de boêmia, ficar em
Pernambuco, sem mais se lhe dar da família que na Bahia fizera e abandonara. É
certo que entre os seus poemas alguns há à sua futura mulher e à morte de seus
filhos. São porém os versos de praxe dos poetas enamorados. Nos feitos aos
filhos a retórica do tempo escondeu o sentimento real que porventura os
inspirou.
Pelo seu gênio malédico e
satírico, pela irritação com que deixara Portugal, pelo desapego da terra, onde
se encontrava deslocado e contrafeito, e a qual não cuidou de afeiçoar-se,
achou-se naturalmente mal e contrariado nesta, e em oposição com ela. Mais de
trinta anos de Portugal lhe tornaram insuportável a mesquinha vida da sua
mesquinha Bahia.
Muito vaidoso, como soem
geralmente ser poetas e literatos, era-o extremamente do seu título de doutor,
do seu saber jurídico, da posição que tivera no Reino, e até de ser branco.
Sentia-se, pois, afrontado com a indiferença dos seus patrícios e vizinhos,
insensíveis a estas suas superioridades. Acham-se-lhe fartos documentos deste
seu estado d'alma, em todo caso revelador de pouco espírito, em vários passos
de sua obra. Na Epístola ao Conde do Prado, filho do governador-geral Marquês
das Minas, claramente o descobre:
Era eu em Portugal
Sábio, discreto, entendido,
Poeta melhor que alguns
Douto como os meus vizinhos.
E chegando a esta terra
Logo não fui nada disto
Porque um direito entre tortos
Parece que anda torcido.
Desvanece-se grandemente do seu título de doutor e de vez em quando o alardeia. No Benze-se o poeta de várias ações que observava na sua pátria, ralha:
Que pregue um douto sermão
Um alarve, um asneirão;
E que esgrima em demasia
Quem nunca lá da Sofia
Soube ler um argumento
Anjo bento!
A Sofia é a Universidade de Coimbra, alcunha que lhe veio da rua desse nome ficava. Nas Verdades lastima-se:
Os doutos estão nos cantos
Os ignorantes na praça.
Nos Milagres do Brasil exprobra:
Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido.
O saber muito abatido
A ignorância e ignorante
Muito ufano e mui farfante
Sem pena ou contradição:
Milagres do Brasil são.
Mostra Gregório de Matos particular ojeriza a negros e mulatos, aos quais por via de regra chama de cães. Tinha consciência e orgulho de sua prosápia e sangue estreme. Lastima, é certo, os negros e teve uma vez expressões de comiseração pelos escravos (pelo que já o deu a crítica indígena por abolicionista), mas a conta que de uns e outros fazia era a do reinol do mazombo, isto é, do branco filho de português como ele. Nos citados Milagres do Brasil sobram exemplos desta sua ojeriza. E na também citada Epístola ao Conde do Prado:
Pois eu por limpo e por branco
Fui na Bahia mofino
Não suporta o menosprezo da gente
da Bahia à sua superioridade, e não lhe sofre a paciência a este jurista que a
sua qualidade de branco e outras partes lhe não deem isenções e regalias:
Não sei para que é nascer
Neste Brasil empestado
Um homem branco e honrado
Sem outra raça.
Terra tão grosseira e crassa
Que a ninguém se tem respeito
Salvo se mostra algum jeito
De ser mulato!
................
Os brancos aqui não podem
Mais que sofrer e calar
E se um negro vão matar
Chovem despesas.
Não lhe valem as defesas.
Do atrevimento de um cão,
Porque acorda a Relação
Sempre faminta.
E, mais, ainda nos citados Milagres do Brasil:
Que vos direi do mulato,
Que vos não tenha já dito,
Se será amanhã delito
Falar dele sem recato?
.............
Imaginais que o insensato
Do canzarrão fala tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Não, se não por ser mulato;
Ter sangue de carrapato,
Seu estoraque de congo
Cheirar-lhe a roupa a mondongo.
Ao revés era extremamente caroável de mulatas e crioulas. O sátiro que nele descobriu a crítica imaginosa de Araripe Júnior, prodigalizou-se em versos amantéticos, babosos, de velho femeeiro, a esse tipo feminino, de que a Bahia teve sempre a primazia. Mas ainda nestes requebros não é raro revelar-se-lhe, na ironia com que insensivelmente descambam em sátira, aquela quizília de raça. Os seus apetites grosseiros eram, porém, mais fortes que esta sua idiossincrasia, e ele é sobretudo o cantor da mulata.
Na Bahia, o seu primeiro ato
inconsiderado foi andar a secular, apenas revestindo as vestes sacerdotais, a
que o obrigavam as suas funções, quando as exercia, o que foi motivo de
escândalo. Se como sujeito douto, que se vira bem aceito no Reino, onde ocupara
boa posição, se encontrou mal aqui, por outro lado a sua índole desabusada,
solta devia achar a terra à sua feição. Que importa que ele tenha deblaterado
contra ela e contra os seus vícios e defeitos quando da sua mesma obra
verificamos, de modo a não deixar dúvida, que se compôs perfeitamente com tudo
aquilo de que ralha e viveu deleitosamente a mesma vida que tão crua e
insistentemente reprova aos seus concidadãos? O capadócio que era de índole e
condição, achou na sua terra onde expandir os seus instintos nativos se não
atávicos, influídos de mais a mais pelo meio. Gregório de Matos é a mais
perfeita e mais ilustre expressão desse tipo essencialmente nacional, do qual
foi e continua a ser a Bahia a fecunda progenitora, o capadócio.
É ele o seu mais eminente
protótipo, como é também o primeiro boêmio da nossa literatura, com a vantagem
sobre os aqui procriados pelo romantismo de o ser de nascença e originalmente,
e não de macaqueação de Paris. Porque nele se completasse cabalmente o tipo do
capadócio, era também insigne cantador de modinhas, tocador de viola, um
solfista, como então se chamava. Ao último remate da sua caracterização, só lhe
faltou ser mestiço, se com efeito não era, o que quase custa a crer. Mas se a
indolência, o desleixo, a incúria, certas qualidades brilhantes mas
superficiais de espírito, a debilidade de caráter, a lascívia exuberante, são
os sinais mais comuns e aparentes do mestiço, ele moralmente o era, apesar da
sua presunção de branco puro, da sua vaidade de douto, dos seus muitos anos de
Portugal e da educação portuguesa.
Quis, talvez, conciliar duas coisas
incompatíveis, e de o não ter, por impossível, conseguido, resultou o seu
profundo desgosto da terra, manifestado com uma reiteração e variedade de
formas que lhe estão revendo a sinceridade fundamental. As duas coisas que quis
acordar eram a consideração pública pelos seus talentos, letras e graduação
social com a vida dissoluta que, a despeito dos péssimos costumes locais, seria
ainda assim escandalosa, segundo ressalta das anedotas da sua vida e o deixa de
manifesto a sua obra. Como não o conseguisse, e por hora da moralidade humana
que jamais soçobra totalmente não o podia alcançar, rebelou-se, fazendo-se ao
mesmo tempo o flagelo e o divertimento dos seus concidadãos, o "boca do
inferno", como é de tradição o alcunhavam. Não se limitava a versejar por
sua conta, se não que fazia versos para outros. Como fosse de fato quem
satíricos e malédicos mais e melhor os fazia, atribuíam-lhe quantos neste
gênero apareciam, de autoria desconhecida. Não é, pois, improvável que dos
existentes com o seu nome, os haja que não sejam seus. Só se empresta aos
ricos. Disso queixa-se ele, deixando na sua mesma queixa a marca da sua
vaidade:
Saiu a sátira má
E empurraram-me os perversos,
Porque enquanto a fazer versos
Só eu tenho jeito cá.
Noutras obras de talento
Só eu sou o asneirão
Mas sendo sátira, então
Só eu tenho entendimento.
Achou-se, portanto, em guerra com a sociedade cujo era, de cujos vícios e manhas comparticipava, para cuja imoralidade contribuía com o seu exemplo de vida desregrada e ainda torpe, como o testemunham os seus poemas publicados e inéditos. Tinha aliás consciência da animadversão recíproca dele e de sua cidade:
Querem-me aqui todos mal,
E eu quero mal a todos,
Eles e eu por nossos modos
Nos pagamos tal por tal:
E querendo eu mal a quantos
Me têm ódio tão veemente
O meu ódio é mais valente
Pois sou só e eles tantos.
E noutro passo dos inéditos da Biblioteca Nacional (Cod. 34-29, pág. 403) malsina assim cinicamente da terra:
Porque esta negra terra
Nas produções, que erra,
Cria venenos mais que boa planta:
Comigo a prova ordeno
Que me criou para mortal veneno.
É estranho que aquela confissão tão pessoal seja apenas o desenvolvimento, feito aliás com vantagem, destes versos do espanhol Quevedo, tantas vezes imitado e até plagiado por Gregório de Matos:
Muchos dicen mal de mi,
Y yo digo mal de muchos;
Mi decir es más valiente
Por ser tantos y yo ser uno.
Foi justamente esta situação singular em que o puseram a sua índole e o seu engenho que deu a Gregório de Matos a sua feição particular e distinta e o singularizou em a nossa literatura colonial. Enganaram-se redondamente os que pretenderam fazer dele ou quiseram ver nele um precursor da nossa emancipação literária, cronologicamente o primeiro brasileiro da nossa literatura. É de todo impertinente supor-lhe filosofias e intenções morais ou sociais. É simplesmente um nervoso, quiçá um nevrótico, um impulsivo, um espírito de contradição e denegação, um malcriado rabugento e malédico. Mas estes mesmos defeitos, se lhe não permitem figurar com a fisionomia com que o fantasiaram, serviram grandemente à sua feição literária e lha revelaram, embora parcialmente, sobre todas as do seu tempo. Em todo caso, mereceria Gregório de Matos aquela apreciação se houvera apenas sido o poeta satírico de sua obra e da tradição, o díscolo que só ele entre os seus contemporâneos malsinou do regime colonial e dos vícios públicos e particulares que o pioravam, e que, num impulso de despeito pessoal, foi o único a sentir aquilo que devia, volvidos dois séculos, ser o germe do pensamento da nossa independência:
Que os brasileiros são bestas
E estarão a trabalhar
Toda a vida por manterem
Magamos de Portugal.
E mais, se a esse feitio pessoal do seu estro juntasse traços literários que o diferençassem de qualquer modo da poesia portuguesa contemporânea. Mas isto justamente não acontecia. O sátiro era bifronte, e o poeta, ainda na sátira, seguia sem discrepância apreciável a moda poética ali em voga sem nenhuma espécie de originalidade, senão a de ser aqui o único que ralhava do meio.
Numa face tinha o riso escarninho
e petulante e o jeito obsceno do capadócio, na outra a compostura cortesã
acadêmica, devota, do doutor de Coimbra, do magistrado, do vigário-geral, do
procurador da mitra. Com uma zomba, ri, chalaceia, maldiz, descompõe, injuria,
enxovalha, ridiculariza a terra e sociedade a que pertence, e faz praça
desavergonhada dos seus amores reles, da sua vida despejada e indecorosa; com a
outra, tal qual os seus confrades em musa do tempo, louvaminha, bajula, incensa
a magnatas e poderosos, ou verseja motivos e temas futilíssimos, com tropos,
imagens, trocados e jogos de vocábulos em nada destoantes da poética do tempo,
da qual a sua se não afasta em coisa alguma. Como satírico, não destoa Gregório
de Matos, nem pela inspiração, nem pela expressão da musa gaiata portuguesa
coeva, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de Noronha, Cristóvão de Morais,
Serrão de Castro, João Sucarelo, Fr. Vahia, Diogo Camacho e quejandos, todos
como eles, sequazes do espanhol Quevedo, de quem foi o nosso patrício servil
imitador. Também não há, nem na inspiração, nem na expressão da poesia não
satírica de Gregório de Matos algum sinal que o estreme entre os seiscentistas
e gongoristas seus contemporâneos. Emparelha em tudo e por tudo com eles.
Salvo o pouco que dela publicou
Varnhagem no seu Florilégio
(I,17-104), esta feição da obra poética de Gregório de Matos ficou até hoje
desconhecida, mesmo dos que sobre ele mais longamente discorreram. Existe
entretanto na Biblioteca Nacional material manuscrito mais que bastante para o
estudo completo do poeta, sem o qual não podemos ter dele uma noção cabal.
Desse estudo, que fizemos, resultará a certeza de que Gregório de Matos é antes
um poeta burlesco, picaresco, até chulo, à maneira de Quevedo, seu modelo, e
dos satíricos portugueses seus contemporâneos, do que satírico ao modo de um
Horácio, de um Juvenal ou de um Boileau.
E não porque não houvesse nele
talento para o ser. Que o havia mostram-no os seus poemas Aos vícios, belo de conceito e forma, os dois Retratos dos governadores Câmara Coutinho e Sousa de Menezes, e,
acaso sobre todos a sátira que começa
Que néscio que eu era então
Quando cuidava o não era!
São todos modelos de boa poesia do gênero, em que podemos admirar imaginação, chiste e conceito, além da beleza métrica e da excelente língua, numerosa e propriíssima. Estas mesmas qualidades se nos deparam em outros seus poemas, já burlescos, já sérios, mas apenas parcialmente, em alguma estrofe, em algum verso. Geralmente, porém, ele é o tipo do poeta descuidado, desmazelado, como foi o tipo do homem desleixado. Versejava a torto e a direito, por conta própria ou alheia, sem escolha do momento ou do assunto, sem respeito ao próprio estro, nem decoro de quem era. Prodigalizava a veia inesgotável em temas como "A uma briga que teve certo vigário com um ouvires por causa de uma mulata", "A prisão de duas mulatas por uma querela que delas deu o célebre capitão... de alcunha o Mangará pelo furto de um papagaio", "A mulata... que chamava seu um vestido que trazia de sua senhora", "A mulata Vicência amando ao mesmo tempo a três sujeitos", "A um crioulo chamado o Luzia a quem vazaram um olho por causa de uma negra" e quejandas. Dele se conta que vendo em Pernambuco duas mulatas engalfinhadas numa briga que as pôs ridiculamente descompostas, pôs-se a gritar: "Aqui d'El-Rei, contra o Sr. Caetano de Melo!". A razão de seu grito, explicava depois, era ter o governador deste nome lhe defendido versejar, quando se lhe deparavam assuntos como aquele. A historieta é interessante por muito significativo do estímulo e feitio poético de Gregório de Matos. E crescidíssimo número das suas composições chamadas satíricas não têm motivos diversos daquele que se lastimava de perder.
Não são melhores se não por menos
indecorosos, os móveis de sua inspiração de outra ordem que a burlesca. Verseja
por governadores, potentados, bispos e arcebispos, com louvores e
enaltecimentos hiperbólicos e peditórios indignos. Verseja também por
espetáculos de comédias a que assiste, por festas a que vai, por sucessos sem
nenhuma importância, por beldades diversas, e por fim verseja devotamente como
um libertino arrependido ou antes medroso do inferno.
Ao mesmo governador Antônio Luís
Gonçalves da Câmara Coutinho, de quem fez numa das suas temíveis e melhores
sátiras o célebre retrato, endereçou Gregório de Matos um Memorial em forma de
soneto pedindo uma esmola, o qual assim termina:
Seguiram os três reis planeta louro,
Guie-me a minha estrela o peditório
Com que na vossa mão ache um tesouro.
Entre vários sonetos seus a
arcebispos, todos destoantes da reputação que lhe fizeram de poeta isento e
homem de brios, depara-se-nos este a D. João Franco de Oliveira, que do bispado
de Angola passava ao arcebispado da Bahia, e que reproduzimos por dar a medida
da poética de Gregório de Matos:
Hoje os Matos incultos da Bahia
Se não suave for, ruidosamente
Cantem a boa vinda do eminente
Príncipe desta sacra monarquia.
Hoje em Roma de Pedro se lhe fia
Segunda vez a barca e o tridente
Porque a pesca que fez já no Oriente
O destinou para a do meio-dia.
Oh se quisesse Deus que sendo ouvida
A musa bronca dos incultos Matos
Ficasse vossa púrpura atraída
Oh se como Aream, que a doces tratos
Uma pedra atraiu endurecida
Atraísse eu, Senhor, vossos sapatos!
Não esqueçamos que o poeta que
assim saudava o arcebispo era vigário-geral e procurador da mitra. A estes
versos de louvor a poderosos, vezo muito corriqueiro nos poetas contemporâneos,
juntava Gregório de Matos alguns poemas de inspiração mais alta, como este
soneto:
À Instabilidade das Coisas do Mundo:
Nasce o sol, e não dura mais que um dia
Depois da luz se segue a noite escura
Em tristes sonhos morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém se acaba o sol, por que nascia?
Se é tão formosa a luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no sol e na luz falte a firmeza
Na formosura não se dê constância
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância
E tem qualquer dos bens por natureza
E firmeza somente na inconstância.
Ou como este sobre A vida solitária, último paradeiro dos
varões prudentes:
Ditoso tu que na palhoça agreste
Viveste moço e velho respiraste,
Berço foi em que moço te criaste
Essa será, que para morto ergueste.
Aí do que ignoravas aprendeste
Aí do que aprendeste me ensinaste,
Que os desprezos do mundo que alcançaste
Armas são com que a vida defendeste.
Ditoso tu que longe dos enganos
A que a Corte tributa rendimentos
Tua vida dilatas e deleitas
Nos palácios reais se encurtam anos
Porém tu, sincopando os aposentos
Mais te dilatas quando mais te estreitas.
Estas transcrições dão a medida
do valor poético de Gregório de Matos e, parece, justificam o nosso conceito de
que ele se não distingue notavelmente dos poetas portugueses e brasileiros seus
contemporâneos. Que não teve a mínima influência literária no seu tempo ou
posteriormente, provam-no de sobejo as obras dos seus confrades de grupo e as
do século XVIII, o século das Academias literárias e, ao menos até antes dos
mineiros, de extrema pobreza poética.
A importância literária da sua
copiosa obra poética é singularmente levantada por lances interessantíssimos à
história dos nossos costumes e da sociedade do seu tempo. Desta nos deixou,
mormente na parte satírica ou burlesca, precioso elemento de estudo, das suas
maneiras e hábitos, dos seus mesmos sentimentos e feições morais. A sua língua,
que julgamos poder qualificar de clássica, tem modalidades, idiotismos,
adágios, fraseados, muito peculiares, e alguns certamente já brasileiros. O seu
vocabulário, que está a pedir um estudo especial, é abundante em termos
castiços, arcaicos e raros, espanholismos e brasileirismos. Costumes, usos e
manhas nossas aparecem-lhe nos versos em alusões, referências, expressões, que
documentam o grau adiantado da mestiçagem entre os três fatores da nossa gente
que aqui se vinha operando desde o primeiro século da nossa existência. É
sobretudo esta feição documental da sociedade do seu tempo que sobreleva
Gregório de Matos aos seus contemporâneos e ainda a todos os poetas coloniais
antes dos mineiros, todos eles sem fisionomia própria. O único que em suma a
tem é ele.
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