3/07/2018

O Cerco de Paris (Conto), de Alphonse Daudet



O Cerco de Paris

Publicado na revista "O Echo", no início do século XX. Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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Subíamos pela Avenida dos Campos Elísios com o doutor V., perguntando às paredes esburacadas e aos passeios deslajeados pela metralha, a história de Paris durante o cerco, quando, um pouco antes de chegar ao pavilhão da Estrela, o doutor parou, e, mostrando-me uma dessas grandes casas pomposamente agrupadas em torno do Arco do Triunfo, me disse:

— Vê essas quatro janelas fechadas, lá em cima, sobre aquela varanda? Nos primeiros dias de agosto, daquele terrível mês de agosto do ano passado, tão cortado de catástrofes e desastres, chamaram-me ali para um caso de apoplexia fulminante. Era em casa do coronel Jouve, um couraceiro do primeiro império, velho escravo da glória e do patriotismo, que nos começos da guerra tinha vindo alojar-se nos Campos Elísios, em um quarto com varanda... Advinha para quê? Para assistir à entrada triunfal das nossas tropas. Pobre velho! Soube do desastre de Wissemburg quando acabava de comer. E lendo o nome de Napoleão, firmando aquela participação oficial da derrota, caiu como que fulminado por um raio.

Encontrei esse couraceiro veterano, estendido a todo o comprimento sobre o topete do aposento, com a cara injetada de sangue, e inerte, como se tivesse recebido na cabeça um golpe de clava. De pé, devia ser muito alto; caído, parecia enorme. Feições corretas, dentes soberbos, espessos e ondeados cabelos brancos; oitenta anos que quase pareciam sessenta... Junto dele estava a neta, de joelhos, banhada em lágrimas. Parecia-se muito com ele. Ao vê-los, um ao lado do outro, dir-se-ia que eram duas magníficas medalhas gregas, moldadas com o mesmo cunho. Apenas havia a diferença de uma delas ser antiga, com os vestígios do tempo e um tanto apagado de contornos, e a outra nítida e brilhante, tendo todo o lustro e suavidade de moderna cunhagem.

Comoveu-me a dor daquela criança. Filha e neta de soldados, tinha seu pai no estado-maior de Mac-Mahon: e a imagem daquele grande velho, estendido diante dela, evocava no seu espírito outra imagem não menos terrível.

Tranquilizei-o o melhor que pude, mas, no fundo, eu poucas esperanças tinha. Efetivamente, por espaço de três dias, o enfermo permaneceu no mesmo estado de torpor e de imobilidade...

Entretanto, chegou a Paris a notícia de Reichsoffen. Deve recordar de que maneira estranha... Até ao anoitecer, todos acreditávamos numa grande vitória: vinte mil prussianos mortos e o príncipe real prisioneiro...

Não sei por que milagre, por que corrente magnética, um eco daquela alegria nacional chegou até ao nosso desgraçado surdo-mudo, até aos limbos da sua paralisia: mas o certo é que, ao acercar-me naquela tarde da sua cama, pareceu-me que o doente não era já o mesmo homem. O seu olhar tinha-se tornado lúcido, a língua estava menos entorpecida. Teve forças para me sorrir, e tartamudeou duas vezes:

— Vi... tó... ria!

— Sim, coronel, uma grande vitória!

E, à proporção que eu lhe ia dando pormenores acerca do feito de Mac-Mahon, via cessar a tensão das suas feições e iluminar-se-lhe o rosto...

Quando eu ia sair a jovem esperava-me, pálida, de pé, diante da porta. Soluçava.

— Está salvo! disse eu, apertando-lhe as mãos.

— A infeliz rapariga mal teve ânimo para me replicar que, no mesmo instante, acabava de saber-se o resultado de Reichsoffen: Mac-Mahon em fuga, todo o exército derrotado.

Olhamo-nos os dois com tristeza. Ela estava desolada, pensando em seu pai: eu tremia, pensando no velho. Com certeza não resistiria àquele novo golpe... Como haveríamos de proceder?... Era mister deixar-lhe a sua alegria, as ilusões que o fizeram reviver!... Impunha-se-nos a necessidade de mentir.

— Pois bem: mentirei! — disse-me a heroica rapariga, enxugando apressadamente as lágrimas.

E, radiante, tornou a entrar no quarto do avô.

Era ingrato o encargo que impusera a si própria. Nos primeiros dias tudo correu bem: o pobre velho tinha a cabeça tão esvaída que se deixava enganar como se fosse uma criança. Mas com a volta da saúde, as suas ideias iam ganhando mais clareza. Era necessário tê-lo ao corrente do movimento dos exércitos e relatar-lhe as comunicações oficiais.

Inspirava, na verdade, uma dor profunda, ver aquela rapariga inclinada dia e noite sobre o mapa da Alemanha, assinalando-o de pequenas bandeiras e esforçando-se por combinar uma campanha gloriosa: Bazaine perto de Berlim. Froissart na Baviera. Mac-Mahon junto do Báltico.

Aconselhava-se comigo para tudo isto, e eu prestava-lhe a minha ajuda quanto era possível, mas o próprio avô era quem, mais que todos nós, servia naquela invasão imaginária. Havia conquistado a Alemanha tantas vezes durante o primeiro império! Sabia de antemão todos os incidentes.

— Agora vão para tal ponto... Levam cabo isto ou aquilo...

E as suas previsões nunca deixaram de realizar-se, o que, naturalmente, o orgulhava.

Por infelicidade, apesar de não acabarmos de tomar cidades e de ganhar batalhas, para ele nunca íamos bastante depressa. Aquele veterano era insociável!... Todos os dias, ao chegar ali, me era notificado um novo feito de armas.

— Doutor, tomamos Mongúcia — dizia-me a jovem, com um sorriso amargo, saindo ao meu encontro.

E, através da porta, ouvia uma voz alegre, que me gritava:

— A coisa vai bem, a coisa vai bem! Dentro de oito dias estamos em Berlim.

Naquele momento estavam os prussianos oito dias de Paris...

Perguntamos a nós mesmos se não seria melhor transportá-lo para a província: mas, tão depressa saísse, o estado da França revelar-lhe-ia tudo; e ainda o achava demasiadamente fraco, excessivamente entorpecido por aquele grande abalo, para poder saber a verdade. Decidimos, por conseguinte, que ficasse.

No primeiro dia de cerco — nunca mois esqueci isto — fui vê-lo. Muito comovido, com aquela angústia que punha em nossos corações o ver cerradas as portas de Paris, a batalha aos pés de seus muros, as aldeias dos arredores transformadas em fronteiras.

Encontrei o bom velho sentado na cama, cheio de alegria e satisfação.

— Ora — disse-me ele — até que enfim começou o cerco!

Olhei-o assombrado.

— Quê? O coronel sabe?

A neta voltou-se para mim

— Sim, é verdade, doutor!... Grande notícia! Começou o cerco de Berlim.

Dizia isto com um aspecto solene, cosendo tranquilamente! Como poderia suspeitar da menor coisa? Não podia ouvir os canhões dos fortes, não podia ver aquela malfadada Paris, sinistra e derruída. O que via, do seu leito, era um pedaço do Arco do Triunfo, e, em redor de si, no seu quarto, todo um museu de coisas do primeiro império, muito de molde a acalentar-lhe as ilusões: retratos de marechais, quadros de batalhas, o pequeno rei de Roma, vestido de traje curto.

***

A partir desse dia, as nossas operações militares simplificaram-se muitíssimo. A tomada de Berlim não era mais do que uma questão de paciência. De vez em quando, se o bom velho se aborrecia mais, lia-se-lhe uma carta de seu filho — uma carta imaginaria, é claro — visto que em Paris já não entrava nada, e, de Sedan, o ajudante de Mac-Mahon tinha sido levado para uma fortaleza alemã.

Imagine-se o desespero daquela pobre rapariga, sem notícias de seu pai, sabendo-o demais a mais prisioneiro, falto de tudo, doente talvez, e obrigada a fazê-lo falar em curtas alegres, curtas, como poderia escrevê-las um militar em campanha, avançando sempre em país conquistado.

Algumas vezes faltava-lhe o ânimo; passavam-se semanas sem notícias. Mas o velho inquietava-se e já não dormia. Era então o momento propício para chegar uma carta da Alemanha, que ela lhe ia ler para junto da cama, contendo as lágrimas.

O coronel escutava-a em meio do maior silêncio, sorria com arde quem compreende, aprovava, criticava, explicava os parágrafos mais confusos. Mas era magnífico, sobretudo, nas respostas que mandava o seu filho:

— Nunca te esqueças de que és francês... Sê generoso com essa pobre gente. Não lhe tornes demasiadamente dolorosa a invasão...

E, recomendações e mais recomendações, adoráveis conselhos acerca do respeito à propriedade e do galante cavalheirismo devido às damas — um verdadeiro código de honra militar, para uso dos conquistadores. Introduzia-lhe também algumas considerações gerais sobre a política e as condições que, para a paz, se deveriam impor aos vencidos. E. devo confessar, que não era exigente neste ponto:

 — A indenização de guerra — dizia ele — e nada mais... Para que serviria tirar-lhes províncias? Por acaso podia fazer-se França da Alemanha?

Ditava isto com voz firme, e deixava transparecer tanta sinceridade nas suas palavras, uma fé patriótica tão ardente que era impossível a alguém não se comover, ouvindo-o.

Continuava o cerco avançando sem cessar... Mas, ai! Não era o de Berlim... Estávamos na época dos grandes frios, do bombardeamento, das epidemias, da fome. Mas, graças aos nossos esforços e cuidados, à incansável ternura que se multiplicava em torno dele, nem um instante foi perturbada a serenidade do bom velho. Até nos últimos transes lhe consegui arranjar pão branco e carne fresca. Está claro que só havia estas coisas para ele, e não se pode imaginar nada mais comovedor do que esses almoços do avô, tão inocentemente egoístas: o velho, sentado na cama, fresco e risonho, com o guardanapo por baixo da barba; a seu lado a neta, um pouco pálida pelas privações, guiando-lhe as mãos, fazendo-o beber, ajudando-o a comer todas essas coisas que lhe estavam a ela defendidas.

***

Uma tarde, quando eu cheguei, a jovem veio ao meu encontro, completamente transtornada, e disse-me:

— Entram amanhã.

Estaria aberto o quarto do velho?

O fato é que, pensando depois nisso, me lembro de que, naquela tarde tinha qualquer coisa extraordinária na expressão do semblante. É provável que nos ouvisse. Mas nós falávamos em prussianos, e o pobre homem pensava nos franceses, naquela entrada triunfal que há tanto tempo esperava. Mac-Mohon, descendo pela avenida, entre música e flores; seu filho ao lado do marechal, e ele, o velho, na sua varanda, de grande uniforme como um Lutzen, saudando as bandeiras esburacadas e as águias enegrecidas pela pólvora...

Pobre avô Jouve! Sem dúvida, tinha imaginado que não o queriam deixar assistir a esse desfilar das nossas tropas, para lhe evitarem uma comoção excessiva. Mas, pela manhã, à mesma hora em que os batalhões penetravam timidamente pela larga avenida, que conduz da porta Maillot às Tulherias, abriu-se com mil precauções a janela lá de cima e apareceu nela o coronel, com o seu capacete e a sua espada, com a sua velha farda gloriosa de antigo couraceiro de Milhaud.

Ainda hoje pergunto a mim próprio que energia de vontade, que impulso de vida, o puseram de pé, assim com o seu arnês de guerra...

O fato é que ele lá estava, aprumado, estranhando ver tão desertas e silenciosas as largas avenidas, corridas as persianas das janelas. Paris sinistra como um grande Lazareto, por toda a parte bandeiras, mas bandeiras singulares, todas brancas e com cruzes vermelhas, e ninguém para sair ao encontro dos nossos soldados.

Por um instante, julgou que se havia enganado...

Mas, não! Lá ao longe, por detrás do Arco do Triunfo, ouvia-se um ruído confuso, via-se uma linha que avançava igual ao sol nascente... Depois, pouco a pouco, brilharam as pontas dos capacetes; os pequenos tambores de Yena começaram o rufar, e, por baixo do Arco da Estrela, ritmado pelo andar pesado dos pelotões e pelo choque dos sabres, ressoou subitamente a marcha triunfal de Schubert!...

 Então, no tétrico silêncio da praça, ouviu-se um grito terrível de:

— Às armas!... armas!... Os prussianos!

E os quatro ulanos da vanguarda puderam ver, lá em cima, na varanda, um velho alto vacilar, agitando os braços, e cair hirto no chão.

Desta vez o coronel Jouve estava morto e bem morto.

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