Cruz e Souza, Poeta e “Ponto”
Texto publicado originalmente na revista "Vamos Ler!", em edição de 1942. Transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2018)
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O teatro, esse grande cenáculo
assentado num pedestal de esforços e ilusões, sempre teve o dom de atrair os iluminados.
É, talvez, o espírito de solidariedade humana.
A larga estrada palmilhada pelos
vencedores e vencidos tem o condão de reunir viandantes que desejariam
afastar-se da estrada real. Essa, porém, não deixa. É egoísta e chama para o eu
âmbito todos aqueles que nasceram com a centelha do gênio. E, ao lado dos que
todas as noites pintam o rosto para divertir as multidões, encontram-se outros
artistas: — pintores, poetas, caricaturistas, etc.
O teatro, em 1883, atraiu para as suas
hostes aquele que dez anos mais tarde revolucionaria a poesia brasileira,
provocando um grande choque entre o Parnasianismo e o Simbolismo: — Cruz e Sousa,
o poeta negro.
Na antiga Desterro, hoje
Florianópolis, em Santa Catarina, nasceu, em 1863, João da Cruz e Sousa. Filho de
escravos, o negrinho que poderia almejar? O eito, quando fosse homem, quando
seus músculos se retesassem em “piruetas”, como os do Palhaço, seu célebre soneto.
Tinha o talentoso negro vinte anos de
idade quando aportou a Desterro uma companhia de variedades encabeçada pela
“menina prodígio”, Julieta dos Santos, uma garota de nove anos que representava
como “gente grande”.
Cruz e Sousa, que por causas ainda não
esclarecidas, fora liberto pelos fazendeiros, senhores de seus pais, já era
boêmio, à moda da província, há cinquenta e nove anos.
Fez logo camaradagem com os rapazes
solteiros da companhia, e à noite, após os espetáculos, faziam serenatas à luz
do luar. Uns dedilhavam os violões, e outros cantavam. O espírito do negrinho
recalcado, onde o talento escachoava, sentia-se num novo ambiente. Frequentava
assiduamente a caixa do teatro, sendo acatado por todos pelas suas maneiras
fidalgas.
Sua alma sonhadora de artista
impressionou-se vivamente com o talento de Julieta dos Santos e para ela fez os
seus primeiros versos.
Estava a findar a temporada em
Desterro, os comediantes precisavam levar suas facécias a outras plagas. E o
embarque foi marcado. Cruz e Sousa entristecera. Lá se iam os seus companheiros
de noitadas, deixando-o no mais profundo abandono. Voltaria aos vagos passeios
da praça, sentando-se num dos seus bancos, vendo passar as mocinhas brancas que
nem sequer para ele olhavam.
O seu vulto continuaria a ser
confundido com a escuridade da noite, quando ele tinha n’alma o desabrochar de
alvoradas!
E disse a um de seus companheiros, de
sua mágoa.
“O caso poderia ser removido se você
quisesse”, respondeu-lhe o amigo.
E ficou consertado que Cruz e Sousa
seguiria com a
companhia. Qual porém o lugar que poderia ocupar?
companhia. Qual porém o lugar que poderia ocupar?
E ainda mais uma vez o negro iluminado
foi relegado para o anonimato. Deram-lhe o lugar de “ponto”.
Oculto na caixa de madeira, longe dos olhares
do público, Cruz e Sousa iniciou sua carreira de “judeu errante”, levando como
bagagem um baú de folha de flandres.
Em cada terra que os comediantes
chegavam, os rapazes solteiros alugavam uma casa.
As portas eram arrancadas e transformadas em camas e mesa de
Jantar.
Cruz e Sousa muito benquisto por seus
companheiros de jornada, arvorou-se por prazer a despenseiro e cozinheiro do
pessoal.
E todas as manhãs lá ia o “neófito” em
busca de carne, peixe e hortaliças, para preparar os “pitéus”, antes do ensaio.
E foi tal a fama que correu do novo cozinheiro que o resto do pessoal resolveu
tomar apenas aposentos nos hotéis, sem comida. E iam fazer suas refeições no
“Refúgio dos Inocentes”, nome dado à pensão, por Cruz e Sousa.
Em 1892, o poeta negro chegou ao Rio,
já tendo deixado seus antigos colegas. Em 1893 publicava Missal, que operou uma revolução na literatura do país; e em seguida
Broquéis.
Em 1898 Cruz e Sousa, o "poeta-ponto”,
cerrava os olhos, minado pela tuberculose.
Deixou ainda Evocações, em prosa; Faróis
e Últimos Sonetos.
Quando morreu ocupava um cargo modesto
na Estrada de Ferro Central do Brasil.
Muita gente, por certo, ignorava que
Cruz e Sousa fora “ponto” de teatro.
LUÍS ROCHA
Revista "Vamos Ler!", 15 de outubro de 1942.
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