6/29/2018

Temas Poéticos: MORTE - VI


Hino de Morte
(Na morte do colega, aluno do 4º ano de Medicina, Antônio José Gonçalves Júnior)

LUÍS DELFINO
"Poesias Líricas" (1934)

Da sacro cineri flores.
DO TÚMULO DE SANNAZARO

I
Omnis glória ejus...
PSALMUS

Um século de glórias e esperanças
Naquela fronte, como um régio almafre,
Imenso balouçava;
E sob a selva dos cabelos densos,
Como um rio escondido nas florestas
A ideia borbulhava.

Homens, vós não sabíeis quem ele era!
Da noite à boca do mancebo inglório
Parásseis um momento:
Detrás da escura selva desse crânio
Se erguera um dia, em trono chamejante,
Do seio nebulento.

Como inunda de fogo a flor do oceano
O sol, — ele inundava o seu futuro
De claridão tamanha.
Eram rastos de chama os dias dele!
Dos loureiros à sombra um sol dormia
Atrás de uma montanha

Era um nimbo de esfera vaporosa
Embaciando as lâmpadas celestes,
Que pesava no mundo!
Seu pensamento: — um dia condensado
De cima do seu crânio cairia,
Como oceano profundo!

Amanhã rangeria aquela porta!
E ao entreabrir-se aquela língua de ouro,
Do céu, onde alma voara,
Aerólito, como um anjo em fogo,
Embuçado nas roupas de mil anos,
Numa ideia rolara.

Assim de chofre o espaço engole um mundo:
Cem cidades assim desaparecem
Nos campos de Senaar;
E como a cruz de um morto, uma coluna
Lá fica apenas sobre a cova delas
Seus ossos a apontar!

II
Nulli flebilior, quam tibi...
HORÁCIO — ODES

Que vistes dele? — Nada. Descansava
Sobre os seus louros, à manhã da vida.
O jovem sonhador!
Sobre o feixe, que abate das florestas,
Também, antes de o erguer, por um momento
Descansa o lenhador.

Tinha afiada a adaga. A hora do alarma
Parecia estalar; sob a armadura
Do combate parou:
Viu o campo: estendeu à larga as rédeas:
Mas da vida o corcel, que ele montava,
Caiu e tropeçou.

Ó meu amigo!... E o que perdeste, ó Pátria!....
Que pedra das abóbadas da glória
Rolou, se espedaçando!
Escárnio dessa turba de mancebos,
— Raça de vermes! — sobre o pó da terra
Esmagava-os, passando.

Se assoberba o ginete relinchando,
Quando a escarpa do Abila o árabe arrasa
Após a hiena e o leão:
A vida dele era um corcel fogoso:
E o corcel, que engolia abismo e escarpa,
Caiu: mas ele não.

No Cusistão daquele peito em brasa
Da liberdade a rosa florescia
Fechada em botão lindo,
Era no meio do mais belo fogo
Que vingava a roseira, onde orvalhada
Cada flor ia abrindo.

Que naufrágio espantoso! Eram só de ouro
Os sonhos que essa mente carregava
Aos vagalhões da vida:
Que nau perdida sobre o mar tormenta
Esperdiçou os louros do poeta,
Em noite desabrida!

Pátria, curva-te ao céspede de um filho:
Ontem por ti morreu: hoje ao seu túmulo,
Não te pejes, baixando:
Cristo era a pátria do universo inteiro
E, sobre a cova de um amigo, Cristo
Se prosternou, chorando.

III
... ore tremente....
OVÍDIO — TRISTIUM

E como o rosto é pálido, e fanadas
Rosas, que um dia abriram purpurinas
À doce luz da vida!
Assim a ruína de cidade morta
Em noite de luar, por entre a relva,
Dorme meio escondida.

O meu coração não pulsa! Entre ruínas
Para o viajor. Pompeia está dormindo...
Dorme, sem ressonar!
Seu coração — o povo que palpita, —
Caído sob as carnes das cidades,
Não... não pode pulsar!

Morto, que vale a vida? O diga Homero,
O cego Homero, que esmolou, trocando,
De cidade em cidade,
Por um alpendre e por um pão, os cantos
Que à Grécia antiga e antigos povos davam
História e eternidade.

A vida é isso: é vaga, que arremessa
Colombo ardente à entrada do oceano,
Donde surge com um mundo,
E torna a arremessá-lo a mesma vaga,
E ele encontra o grilhão, a treva, a morte
Do ergástulo no fundo.

E que há pois do outro lado do sepulcro?
A pedra tumular que arcano esconde?
Que segredo ali jaz?
Quando o alvião a rasga, a ossada alveja:
Silenciosamente o verme mexe,
Eis tudo... e nada mais!...

Mudo o vento da morte entorna as ruínas
Sobre o corpo, e o movimento que mutila,
Por grandioso que seja,
Prostra-se aos séculos, que vão vindo, e passam:
Parte-se a lousa e em um riso alvar o crânio
Parece que graceja....

Ó meu amigo, irmão nos mesmos sonhos,
Já me arrependo de acordar-te ao leito,
Para dar-te estas flores:
As lâmpadas do céu velam-te as noites:
Chora-te, e sempre, à madrugada, à cova
A estrela dos amores.

Amanhã o teu pai sorri, mancebo:
Amanhã tua mãe beija outro filho:
Amanhã entra o mundo!
E as estrelas do céu, da aurora o orvalho
Amanhã velarão a sós no berço
O teu sono profundo.

IV
..... flentem flens...
OVÍDIO — TRISTIUM

Perdão, ó pais, perdão: a frase gela:
Mas há cá dentro o horror de um cataclisma,
Que me fez desumano;
E arrebentou-me a estrofe à flor dos lábios,
Como os vulcões nas asas alevantam
Uma ilha no oceano.

Vós não o esquecereis, não! Infelizes!
A eternidade de uma dor paterna,
Quem a pode sondar?
Ártico polo, que aglomera o gelo,
Quem por cima de lágrimas tão densas
Vai-lhe os seios prumar?

A glória me há de aureolar a fronte:
Apesar de homens vis, que tudo arrancam
Vingai, louros, vingai:
Minha mãe, ó Brasil, ó pátria, é dele
Este loureiro; é dele: — ide ao seu túmulo
De joelho o plantai...

V
Vox ferrea.
VIRGÍLIO — ENEIDA

Homens, é tempo: agora eu me levanto:
Limpei o rosto; — as lágrimas secaram:
Glória, que nos vens dar?
Reis, lá estão os lauréis da vida bela!
Jovens, as rosas caem das roseiras,
Sem o tempo as murchar.

De tanta vida que o inundou, que resta?
A noite sem estrelas do sepulcro!
A luz do lampadário
Da vida, ainda transbordando a enchente
Do óleo, que a seiva aviventou, não arde
No leito mortuário.

Pálida cruz, que os braços seus distende,
Como um soldado de além-mundo vela
Imbele e desarmado:
Roem-lhe os vermes a terrosa planta,
E não retira o pé, único ele,
Do arraial desprezado.

Ecbatana, — a princesa, — se coroava
Com o sol do Oriente, recostada às selvas,
Sobre o almatrá do Oronte:
Seu penacho de templos grimpejava,
Como um cocar de variadas plumas,
Na cimeira da fronte....

Ontem. De sobre escombros de ossos hoje,
No meio de pireus cinereados,
Sobre um roto divã,
Como enrolada em faixas de uma múmia,
Sem trono, a fronte sem cocar de plumas,
Rói-lhe a entranha Hamadã...

★★★

A cova

LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)

Faz mais larga essa cova, estúpido coveiro;
Pois não vês que são dois buscando o mesmo leito?
É preciso que caiba um longo travesseiro,
Para dormirem face a face, e peito a peito.

Virei deitar-me em tempo: hoje não, não me deito
Sem que nos braços meus a carregue primeiro:
Quero cobri-la bem, pôr-lhe o tronco direito;
Que é muito longo sempre o sono derradeiro.

Guarda do cemitério, o jardineiro aí fica,
Quero roseiras só, quero muitas roseiras;
Que ardam rosas em que seu corpo multiplica.

Que os pássaros aqui cantem horas inteiras:
Que esta leiva, em que está da terra a flor mais rica,
Seja o teu ninho, amor, quando um ninho, amor, queiras.

★★★

No limiar da morte
OLAVO BILAC
"Sarças de fogo" (1888)
"Grande lascivo! espera-te a
voluptuosidade do nada."
MACHADO DE ASSIS, BRÁS CUBAS

Engelhadas as faces, os cabelos
Brancos, ferido, chegas da jornada;
Revês da infância os dias; e, ao revê-los,
Que fundas mágoas na alma lacerada!

Paras. Palpas a treva em torno. Os gelos
Da velhice te cercam. Vês a estrada
Negra, cheia de sombras, povoada
De atros espectros e de pesadelos...

Tu, que amaste e sofreste, agora os passos
Para meu lado moves. Alma em prantos,
Deixas os ódios do mundano inferno...

Vem! que enfim gozarás entre meus braços
Toda a volúpia, todos os encantos,
Toda a delícia do repouso eterno!
★★★

Marcha fúnebre
OLAVO BILAC
“Tarde” (1919)
Thamuz, Thamuz, panmegas tethneke!...
Como se ouviu no Epiro, outrora, o extremo grito
"Pã morreu!", — na amplidão reboe o meu lamento:
Torpe a ambição, perdido o amor, inane o alento,
Nestas baixas paixões de um século maldito!
Rolem trenos no oceano e elegias no vento!
Concentrai-vos na dor do funerário rito,
O asas e ilusões num miserere aflito,
E, ó flores num responso, e, ó sonhos num memento!
Bocas, bradando ao céu de minuto em minuto,
Olhos, velando a terra em sudários de pranto,
Corações, num rufar de tambores em luto,
Guaiai, carpi, gemei! e ecoai de porto a porto,
De mar a mar, de mundo a mundo, a queixa e o espanto:
O grande Pá morreu de novo! O Ideal é morto!

★★★

O derradeiro adeus
(Ao amigo, Dr. Aureliano Coutinho)

BRASÍLIO MACHADO
“Madressilvas” (1876)

“Mais feliz do que nós...
Não sentirás neste areal deserto
— Na morte d'alma a vida;
No vivo coração tua própria tumba!”
JOSÉ BONIFÁCIO

Na sala mortuária, em meio de soluços,
pálida, fria, morta, em fúnebre caixão,
ela estava estendida. Aos olhos semiabertos
lançava branca luz das velas o clarão.

E o Cristo ali curvava o lívido semblante,
como um pai contemplando a filha agonizante.

Ninguém chegava ali, qual fria testemunha
de quanto o desespero tem de esmagador...
Ao pé daquela morta erguia-se a saudade
e se achava pequena em frente de uma dor!...

tanto soube cavar da morte a mão escura
num tálamo de amor. — profunda sepultura...

Mas quem sucumbe assim? quem desce para os mortos
pisando sobre o chão que umedecido está
desse orvalho da dor, que lágrima se chama,
do espontâneo chorar que o sentimento dá?

Quem volve ao céu banhada em luzes de uma estrela
e deixa o pobre lar em lágrimas por ela?

Oh! não, não pergunteis... É o anjo da família
que as azas recolheu e vai-se debruçar
aonde não mais desce o hálito da vida,
aonde a eternidade estende o longo mar...

e deixa após de si a noite no seu pouso
por mãe dos filhos seus, por anjo de um esposo!

É a ave que do ninho erguido entre perfumes
caiu ferida ao chão... depois não mais se ergueu;
e veio o pobre esposo achar o ninho — frio,
e os filhinhos chorando ao pé do leito seu...

Desfolharam-se a um tempo as coroas da ventura,
quando ela, esposa e mãe, descia à sepultura...

Não mais daquele seio estanque pela morte
Deus há de abrir o foco esplêndido do amor:
duas vezes na vida aos lábios não se leva
deste néctar divino o cálix sedutor.

Se flores der o vale — o frio há de tolhê-las,
ha de a nuvem passar — se surgem as estrelas!

No entanto é vinda a hora! a eterna despedida!
o beijo derradeiro, o derradeiro adeus!
e à porta um vulto negro, e trêmulo, chorando,
repentino assomou por entre os filhos seus.

Silêncio... era ele, o esposo estremecido e terno,
que ia à morta dizer o seu adeus eterno!

Quando ele apareceu, e foi a passos lentos
caminhando, e do esquife ao pé mudo parou,
ergueu convulso a ponta ao mortuário crepe,
e, sublime na dor, o beijo desatou...

E o derradeiro olhar caiu tão doloroso!
último voo d'alma, e d'alma de um esposo!...

Depois, quando ele ergueu a pequenina filha
que também vinha ali da mãe se despedir,
e pelo seu semblante a dor caiu em lágrimas,
que então foi mais tremenda a hora do partir:

houve um momento ali de comoção tão forte,
que, se não fora tarde, abalaria a morte!...

Depois tudo findou-se. A virgem da saudade,
de goivos coroada, às súplicas conduz
ao Cristo que, suspenso ao muro solitário,
parecia dizer: — já não estou só na cruz!


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