7/03/2018

Temas Poéticos: CAMPOS E FLORESTAS - I


Nos campos

GUILHERME DE AZEVEDO
“A Alma Nova” (1874)

A fragrância do trevo e das flores selvagens
Da noite embalsamava as tépidas bafagens:
Ao longe os astros bons olhavam-nos dos céus.
O mundo era um altar; as serras grandes aras;
E os cânticos da paz corriam nas searas
Em honra do bom Deus.

No solene silêncio imersa ia minha alma
Em tranquila mudez; naquela doce calma
Que sente germinar os frescos vegetais.
De súbito uma voz deixou-me um pouco extático:
Detive-me um momento; olhei: — era o viático!
De noite a horas tais,

Que andava Deus fazendo, assim, pela campina,
Trazido pela mão dum padre sem batina
Roubado às sensações dum longo ressonar?
Fui seguindo o cortejo até que numa choça
O Rei dos reis entrava: o padre, com voz grossa,
Movia-se a rezar.

Nos restos duma enxerga, ali, no vil casebre,
Um pobre cavador, mordido pela febre,
Torcia as grossas mãos nas ânsias do estertor;
E os filhos seminus sentindo a pena ignota
Tentavam-se esconder na velha saia rota
Da mãe louca de dor!

A voz do sacerdote a custo ressoava.
A palavra de amor que ali se precisava,
Não posso dizer bem se acaso ele a soltou.
Falava o Deus severo e forte dos castigos,
Ou esse bom Jesus que aos pés dalguns mendigos
Um dia ajoelhou?

Do padre tinham medo os trêmulos pequenos.
Os magros cães fiéis erguendo-se dos fenos
Latiam tristemente em volta do casal:
E o levita lançava àquela noite escura
A bênção derradeira, erguendo a mão segura,
Num gesto maquinal!

Depois transpondo, à pressa, a porta da cabana,
Saía sem deixar da sã verdade humana
O bálsamo suave, o dom consolador!
Oh, decerto o Jesus de que nos falam tanto
Não era o que deixava ali, naquele canto
Sozinha a mesma dor!

Sorria Deus, no entanto, em toda a natureza!
Nas florestas, no vale, nas serras, na devesa,
Nas moitas dos rosais, no movediço mar!
O constelado azul dir-se-ia um santuário!
Havia aquele albergue apenas solitário,
E frio o pobre lar!

E o rude agonizante, o triste moribundo
Que em breve ia partir; abandonar o mundo;
Os seus deixando sós, na terra, sem ninguém,
Talvez ao pressentir o fim da insana lida
Soltasse maldições, ainda, contra a vida
E contra nós também!

E eu lembrei-me então daqueles bons valentes
Que lutam todo o dia e vão morrer contentes
À noite, ao pé dos seus, depondo os vãos lauréis;
E daqueles, também, de frontes requeimadas
Que pela causa santa, em pé, nas barricadas,
Se batem contra os reis!

Lembraram-me os heróis, serenos, bons, austeros,
Que sagram toda a vida aos ideais severos
Da justiça e do bem; caindo com valor,
Sem que a destra cruel dos déspotas os dome
Nas batalhas da ideia; opressos pela fome,
Varados pela dor!

Ó pobres multidões! As grandes noites frias
Não cessam de morder, famintas e sombrias,
Num banquete nefando os vossos corpos nus!
E o lírio da justiça, a grande flor sagrada,
Nem sempre mostra, em vós, aberta e desdobrada,
As pétalas de luz!

Eu quando porém lanço as vistas ao futuro
E vejo dia a dia a despontar mais puro
O grande sol da ideia, em rúbidos clarões,
Recordo-me que sois a produtiva leiva
Aonde já circula uma opulenta seiva,
De grandes criações!

★★★

As selvas

FAGUNDES VARELA

Selvas do Novo Mundo, amplos zimbórios,
Mares de sombra e ondas de verdura,
Povo de Atlantes soberano e mudo
Em cujos mantos o tufão murmura.

Salve! minh’alma vos procura embalde,
Embalde triste vos estendo os braços...
Cercam-me o corpo rebatidos muros,
Prendem-me as plantas enredados laços!...

Pátria da liberdade! antros profundos!
Vastos palácios! eternais castelos!
Mandai-me os gênios das sombrias grutas
De meus grilhões espedaçar os elos!...

Ah! que eu não possa me esquivar dos homens,
Matar a febre que meu ser consome,
E entre alegrias me arrojar cantando
Nas secas folhas do sertão sem nome!

Ah! que eu não possa desprender aos ermos
O fogo ardente que meu crânio encerra,
Gastar os dias entre o espaço e Deus
Nas matas virgens da colúmbia terra!

Eu não detesto nem maldigo a vida,
Nem do despeito me remorde a chaga,
Mas ah! sou pobre, pequenino e débil
E sobre a estrada o viajor me esmaga!

Que faço triste no rumor das praças?
Que busco pasmo nos salões dourados?
Verme do lodo me desprezam todos,
O pobre e os grandes de esplendor cercados!

Fere-me os olhos o clarão do mundo,
Rasgam-me o seio prematuras dores,
E à mágoa insana que me enluta as noites,
Declino à campa na estação das flores.

E há tanto encanto nas florestas virgens,
Tanta beleza do sertão na sombra,
Tanta harmonia no correr do rio,
Tanta delícia na campestre alfombra...

Que inda pudera reviver de novo,
E entre venturas flutuar minh’alma,
Fanada planta que mendiga apenas
A noite, o orvalho, a viração e a calma!

★★★

No bosque

LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)
Uma bromélia colossal; um quiosque;
Quatro janelas; — uma só aberta,
De trepadeiras a florir coberta;
Crê-se que a casa continua o bosque.

Quando do ferro a trepa desenrosque
Os cem braços gentis, nos quais o aperta,
Já talvez seja a casa então deserta,
E hera nova também seu flanco enrosque.

Inda hoje para vê-la à mata corro...
E à sombra úmida e larga da mangueira,
Na água em madeixa, que entra em um tanque a jorro,

Ela as mãos molha e folga a tarde inteira...
E ali, noite que espera um astro, eu morro:
E ela vive, a calhandra da balseira...

★★★

Revolução na floresta

LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)

E é que estão vivos!... Fala-me a floresta;
E a água, que os pés desnus em flores lava:
Mas... nada desse humor com que eu contava!...
Sombras, nem vós? — Rochas, nem vós? — E esta!...

Brandiu-me um tronco um galho, e, zás... na testa!...
O rubro fruto da miuçalha brava
A vista em sangue em mim raivando crava!
O outro dia era tudo um grito em festa...

Em estar mal com vocês eu nada ganho;
Prefiro em cada cara um gesto amigo;
Gentes, não há um crime assim tamanho...

Eu vos entendo, e vosso espanto sigo
Em cada verde olhar, que em vós apanho,
Paz! que ela vem: não sois seu templo antigo?!...

★★★

Entrada na floresta

LUÍS DELFINO
“Rosas Negras” (1938)

Há uma nódoa branca na verdura:
Um novo aroma bom a seiva exala:
Troncos, de pé!... Quem vai, quem vai buscá-la?
Honra-vos, bosque, a sua formosura!

Ei-la aí. — Esta mata ou treme ou fala:
Tem cada galho um êxtase; ternura
A sombra; o sol ebria-se a fitá-la,
Num voluptuoso espasmo de ventura.

Traçam-lhe um ninho os pássaros; de esguelha
Olha-a um fauno; enche-a a luz de pedrarias;
O ar a oscula, a aquece, a faz vermelha.

Metem-se em liquens de ouro as penedias;
Para ouvi-la, o grotão lhe estende a orelha;
Cantam, para embalá-la, as ramarias.

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