9/14/2018

Fora de horas (Conto), de Aluísio Azevedo


Fora de horas

Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Ora! Para que lhes hei de contar isto? Histórias do Norte! Histórias de amor! Coisas que não voltam mais!

Era a última vez que eu ia ter com ela, e seria menos uma entrevista de amor do que um encontro de despedida; meus lábios pressentiam já ligeiro travor de lágrima nos beijos que sonhavam pelo caminho.

Fui. Ela me esperava à meia-noite, como de costume, espreitando por detrás da porta cerrada, descalça e palpitante de ansiedade e de susto. Eu costumava chegar furtivamente, cosendo-me à própria sombra pelas paredes da rua. Entrava; a porta fechava-se então de todo, surdamente, e nós ficávamos sendo um do outro até esgotar-se a noite. Ninguém desconfiava da nossa felicidade. 

Vivia, a minha amada em companhia de uma parenta velha, sua madrinha, viúva e rica, senhora de engenho, dona austera e venerável, devota até ao fanatismo. A madrinha idolatrava-a loucamente.  A casa era grande, antiga e nobre, povoada de agregados, de mucambas e muitos fâmulos. Para chegar ao quarto da afilhada era preciso atravessarmos, eu e ela, de mãos dadas, na escuridão, longos corredores e varandas; com o calcanhar no ar, a respiração suspensa, os sapatos fora. Mas que prêmio era ganhar o fim dessa jornada aflitiva e tenebrosa! A alcova lá no fundo, isolada do resto da casa, dava janelas sobre um jardim de árvores floríferas, todo cercado de altos muros de convento e todo envolvido no doce mistério de uma fortaleza de amor.

Que delícia contemplar da altura das janelas silenciosas o céu todo orvalhado de estrelas, e beber o segredo da noite; cinturas presas, cabeças juntas, cabelos confundidos.

Ela não tinha mãe desde o berço e fora criada pela madrinha. Casara aos quinze anos e enviuvara aos dezoito. A nossa loucura principiou no calor das valsas e foi-se derramando num delírio de mocidade até aquela perfumada alcova, onde a nossa última madrugada recolheu no seio o eco dos nossos derradeiros beijos.

A madrinha não me podia ver.

Ressentimentos de devota: Eu nesse tempo, com pouco mais de vinte anos, supunha-me um batalhador predestinado a regenerar o mundo a golpes desapiedados contra as velhas instituições; tinha o meu jornal republicano e acatólico é duelava-me dia a dia, ferozmente, com os redatores de um órgão ultramontano e com os velhos jornalistas conservadores. Imaginem se a velha me podia ver!

Era por toda a cidade apontado a dedo; amado pela metade da população e amaldiçoado pela outra. Os devotos enfureciam-se comigo e os padres pediam ao diabo que me carregasse para longe da minha província.

Ouviu-os o demo. Tive de partir para o Rio de Janeiro. E foi nas últimas horas percursoras desse triste dia que os mais amorosos lábios de mulher gemeram contra os meus a dolorosa cavatina percursora da saudade.

Ai! quantas lágrimas nos ensoparam os beijos e quantos soluços nos cortaram os juramentos de fidelidade! Só resolvemos separar-nos quando o horizonte já nos ameaçava com a aurora. E lentamente nos afastamos do nosso paraíso, mais tristes e mais mudos que os dois primeiros amantes enxotados sobre a terra. Ao meu lado ela caminhava quase tão nua e certamente mais comovida e chorosa do que a primeira Eva. 

— Espera! Espera ainda um instante, meu querido amor! suplicava-me entre beijos desesperançados, na ocasião de abrirmos a porta da rua. Espera! Diz-me um negro pressentimento que nunca mais nos veremos! Espera ainda! um instante só! 

Mas era preciso separar-nos. O dia não tardaria a repontar e eu tinha de estar ao lado de minha família ao amanhecer. O vapor largaria cedo. Os amigos viriam buscar-me logo pela manhã. Era preciso ir!

— Adeus! Adeus!

E arranquei-me dos seus braços, enquanto desfalecida e soluçante, ela se amparava contra a parede do corredor. E, para não sucumbir também, tratei de apressar a fuga e precipitei-me sobre a porta da rua.

Mas, que horror! a chave já lá não estava na fechadura. Alguém de casa tinha carregado com ela.

— Ah! Foi Dindinha com certeza, disse dolorosamente a minha pobre amada. Meu Deus! meu Deus!

E quase sem poder andar, de tão nervosa e trêmula, voltou ao interior da casa e tornou a ter comigo, para me segredar aterrada que havia luz no quarto da madrinha.

— Descobriu tudo! Descobriu tudo! murmurou aflita. Fechou-nos! Estamos presos! Estamos perdidos!

— E agora?... perguntei, deveras agitado, lembrando-me da monástica altura dos muros do jardim.

— Não sei! Não sei! foi a única resposta que lhe obtive.

Tornamos à alcova, mais tristes e mais lentos do que de lá saímos. A ideia da nossa separação não nos acabrunhava mais do que a de ficarmos juntos à força. Se me doía abandonar aquele doce paraíso de amor, não me atormentava menos ter de ficar lá dentro prisioneiro.

E ela, perplexa, chorava, chorava, apertando a cabeça entre os formosos braços, numa angústia sem esperança de salvação. Urgia, porém, tomar qualquer partido decisivo: o dia estava a chegar e eu não podia amanhecer ali, tendo de seguir para o Rio de Janeiro e embarcar dentro de poucas horas!

Afinal, a minha companheira de agonia muniu-se de coragem e foi bater de leve, muito de leve, no quarto da madrinha. 

Silêncio. 

Tornou a bater. 

Bateu terceira vez.

— Quem está aí?

— Sou eu, Dindinha. Abra por favor...

— Que quer a senhora a estas horas?

— Nada, Dindinha... Eu queria a chave da porta da rua....

— Para quê?

— Não me pergunte, Dindinha, por amor de Deus! e dê-me a chave... Peço-lhe por tudo que Dindinha mais deseja no mundo!...

— Não dou!

— Minha Dindinha...

— Não! não!

— Abra a sua porta ao menos... 

E esta súplica foi já toda embotada de lágrimas e soluços.

A velha veio à porta e eu então pude espiar lá para dentro. Era um pequeno aposento, bem arrumado e limpo. Havia uma cômoda com um oratório, onde luzia uma lâmpada que era única a iluminar o honesto e tranquilo dormitório. Petas paredes aprumavam-se quadros de santos, contrastando com o retrato a óleo de um tenente de cavalaria, mal pintado, mas de olhinhos vivos e que parecia sorrir lá da sua moldura para a viuvinha, com o ar escarninho assim como  diz: “Tu então, pequena, fizeste a tua falcatrua e foste apanhada, hein?... Pois é bem feito!”

 A velha, assentada de novo na sua rode, conservava a fisionomia fechada e parecia implacável. 

A afilhada, procurando esconder nos braços nus a pecadora nudez do colo, desfazia-se em lágrimas e nelas repisava as suas súplicas, jurando que nunca mais, nunca mais! por tudo que houvesse de sagrado reincidiria naquela feia culpa!

— Não!

— Tenha pena de mim, Dindinha!...

— Quem é que eslava aí com a senhora?!

A moça calou-se, de olhos baixos, arfando-lhe por sob a cambraia da camisa os seios atormentados. 

— Diz ou não diz?!

— É... é... Para que Dindinha quer saber?... Dindinha vai ficar zangada se eu disser...

— Diga quem é!

— Dindinha saberá depois...

— Pois então retire-se já daqui! Saia da minha presença!

— Não... Não... Eu digo... É...

E ouvi o meu nome balbuciado a medo no ouvido da velha.

Um charuto aceso, que lhe metessem pela orelha, não lhe produziria tanto efeito.

A devota teve um frouxo de tosse, convulsa. 

— Com efeito! rosnou afinal, contendo a custo uma explosão de cólera. Com efeito! Pois é esse alma perdida, esse ateu, esse monstro, que a senhora introduziu velhacamente em minha casa?!

— Tenha paciência, Dindinha... Ele parte esta manhã mesmo para o Rio de Janeiro...

— Paciência?!... É boa! Esse herege há de ficar aqui preso e só sairá com alto dia e na presença do senhor vigário geral e dos padres da Sé, a quem vou chamar! o público há de ver e apreciar o escândalo, para vergonha sua e para castigo dele! Paciência?! Sim hei de ter paciência, mas será para desmascarar aquele pedreiro livre!

A Velha tinha chegado ao auge da cólera e já falava em voz alta.

Vi o caso perdido.

E a minha pobre cúmplice, de pé ao lado da rede, descalça e apenas resguardada pela trêmula camisa, abaixou ainda mais o rosto e deixou que as suas perdidas lágrimas lhe corressem ao suspirado resfolegar do peito.

A velha conservava-se inflexível. Mas a afilhada chegou-se mais para junto dela e pousando carinhosamente uma das mãos nos punhos da rede, começou a embalá-la de leve, e começou a murmurar num flébil queixume ressentido.

— Dindinha entretanto não devia fazer assim comigo... Dindinha bem sabe o muito que lhe quero e o muito que a respeito... Mas Dindinha devia lembrar se de que enviuvei com dezoito anos e tenho apenas vinte... Devia lembrar se de que sou moça e que o rapaz a quem amo não pode sequer aproximar-se de Dindinha...

— Confiada!

—... Devia lembrar-se que... certa noite... (e abaixou mais a voz) quando eu era ainda pequenina e dormia no mesmo quarto com Dindinha... já depois que meu padrinho se separou de vosmecê... o tenente Ferraz, que ali está pintado na parede, saltou a janela do nosso quarto e Dindinha o recebeu nos braços, depois de ter ido verificar se eu estava dormindo...

— Cala-te, doida!

— Eu estava bem acordada, mas fiquei quietinha na minha rede, fingindo que dormia, só para ser agradável a Dindinha... e ouvi todas as palavras de ternura que o tenente disse ao ouvido da Dindinha...E nunca falei disto a ninguém... Ouvi tudo! Por sinal que o tenente dizia: “ Eu te amo, minha flor! Eu te amo como um louco! Se quiseres que...”

Mas a velha interrompeu-a.

— Cala-te! Cala-te! disse.

A sua fisionomia tinha pouco a pouco se transformado com as palavras da afilhada e ia ganhando um triste e compassivo ar de desconsolação. Os olhos relentaram-se-lhe de saudade com aquele frio recordar do passado.

Quando a rapariga quis continuar as suas revelações, ela interrompeu-a de novo com um fundo suspiro, e acrescentou com a voz quebrada pela comoção:

— Cala-te, minha filha!... Aí tens a chave... Abre-lhe a porta... Vai! vai, antes que amanheça... E deixa-me só! deixa-me ficar só!

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