10/25/2018

O jardineiro Timóteo (Conto), de Monteiro Lobato



O jardineiro Timóteo

O casarão da fazenda era ao jeito das velhas moradias: – frente com varanda, uma ala e pátio interno. Neste ficava o jardim, também à moda antiga, cheio de plantas antigas cujas flores punham no ar um saudoso perfume d’antanho. Quarenta anos havia que lhe zelava dos canteiros o bom Timóteo, um preto branco por dentro. Timóteo o plantou quando a fazenda se abria e a casa inda cheirava a reboco fresco e tintas d’óleo recentes, e desd’aí – lá se iam quarenta anos – ninguém mais teve licença de pôr a mão em “seu jardim”.

Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.

Não desses que fazem versos, mas desses que sentem a poesia sutil das coisas. Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera, desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio.

O jardim tornara-se a memória viva da casa. Tudo nele correspondia a uma significação familiar de suave encanto, e assim foi desde o começo, ao riscarem-se os canteiros na terra virgem ainda recendente à escavação. O canteiro central consagrava-o Timóteo ao “Sinhô-velho”, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea. Nasceu faceiro e bonito, cercado de tijolos novos vindos do forno para ali ainda quentes, e embutidos no chão como rude cíngulo de coral; hoje, semidesfeitos pela usura do tempo e tão tenros que a unha os penetra, esses tijolos esverdecem nos musgos da velhice.

Veludo de muro velho, é como chama Timóteo a essa muscínea invasora, filha da sombra e da umidade. E é bem isso, porque o musgo foge sempre aos muros secos, vidrentos, esfogueados de sol, para estender devagarinho o seu veludo prenunciador de tapera sobre os muros alquebrados, de emboço já carcomido e todo aberto em fendas.

Bem no centro erguia-se um nodoso pé de jasmim-do-cabo, de galhos negros e copa dominante, ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobrexcedesse em altura. Simbolizava o homem que o havia comprado por dois contos de réis, dum importador de escravos de Angola.

– Tenha paciência, minha negra! – conversa ele com as roseiras de setembro, teimosas em espichar para o céu brotos audazes. Tenha paciência, que aqui ninguém olha de cima para o Sinhô-velho.

E sua tesoura afiada punha abaixo, sem dó, todos os rebentos temerários.

Cercando o jasmineiro havia uma coroa de periquitos, e outra menor cravinas.

Mais nada.

– Ele era um homem simples, pouco amigo de complicações. Que fique ali sozinho com o periquito e as irmãzinhas do cravo.

Dos outros canteiros dois eram em forma de coração.

– Este é o de Sinhazinha; e como ela um dia há de casar, fica a par dele o canteiro do “Sinhô-moço”.

O canteiro de Sinhazinha era de todos o mais alegre, dando bem a imagem de um coração de mulher rico de todos as flores do sentimento. Sempre risonho, tinha a propriedade de prender os olhos de quantos penetravam no jardim. Tal qual a moça, que desde menina se habituara a monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos, chegando esta a ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?

Assim ela na família, assim o seu canteiro entre os demais. Livro aberto, símbolo vivo, crônica vegetal, dizia pela boca das flores toda a sua vidinha de moça. O pé de flor-de-noiva, primeira “planta séria” ali brotada, marcou o dia em que foi pedida em casamento. Até então só vicejavam neles flores alegres de criança: – esporinhas, bocas-de-leão, “borboletas”, ou flores amáveis da adolescência – amores-perfeitos, damas-entre-verdes, beijos-de-frade, escovinhas, miosótis.

Quando lhe nasceu, entre dores, o primeiro filho, plantou Timóteo os primeiros tufos de violeta.

– Começa a sofrer…

E no dia em que lhe morreu esse malogrado botãozinho de carne rósea, o jardineiro, em lágrimas, fincou na terra os primeiros goivos e as primeiras saudades. E fez ainda outras substituições: as alegres damas-entre-verdes cederam o lugar aos suspiros roxos, e a sempre-viva foi para o canto onde viçavam as ridentes bocas-de-leão.

Já o canteiro de Sinhô-moço revelava intenções simbólicas de energia. Cravos vermelhos em quantidade, roseiras fortes, ouriçadas de espinhos; palmas de Santa Rita, de folhas laminadas; junquilhos nervosos.

E tudo mais assim.

Timóteo compunha os anais vivos da família, anotando nos canteiros, um por um, todos os fatos dalgumas significações. Depois, exagerando, fez do jardim um canhenho de notas, o verdadeiro diário da fazenda. Registrava tudo. Incidentes corriqueiros, pequenas rusgas de cozinha, um lembrete azedo dos patrões, um namoro de mucama, um hóspede, uma geada mais forte, um cavalo de estimações que morria – tudo memorava ele, com hieróglifos vegetais, em seu jardim maravilhoso.

A hospedagem de certa família do Rio – pai, mãe e três sapequíssimas filhas – lá ficou assinalada por cinco pés de ora-pro-nóbis. E a venda do pampa calçudo, o melhor cavalo das redondezas, teve a mudança de dono marcada pela poda de um galho do jasmineiro.

Além desta comemoração anedótica, o jardim consagrava uma planta a subalterno ou animal doméstico. Havia a roseira-chá da mucama de Sinhazinha; o sangue-de-adão do Tibúrcio; a rosa-maxixe da mulatinha Cesária, sirigaita enredeira, de cara fuxicada como essa flor. O Vinagre, o Meteoro, a Manjerona, a Teteia, todos os cães que na fazenda nasceram e morreram, ali estavam lembrados pelo seu pezinho de flor, um resedá, um tufo de violetas, uma touça de perpétuas. O cão mais inteligente da casa, Otelo, morto hidrófobo, teve as honras duma sempre-viva rajada.

– Quem há de esquecer um bico daqueles, que até parecia gente?

Também os gatos tinham memória. Lá estava a cinerária da gata branca morta nos dentes do Vinagre, e o pé de alecrim relembrativo do velho gato Romão.

Ninguém, a não ser Timóteo, colhia flores naquele jardim. Sinhazinha o tolerava desde o dia em que ele explicou:

– Não sabem, Sinhazinha! Vão lá e atrapalham tudo. Ninguém sabe apanhar flor…

Era verdade. Só Timóteo sabia escolhê-las com intenção e sempre de acordo com o destino. Se as queriam para florir a mesa em dia de anos da moça, Timóteo combinava os buquês como estrofes vivas. Colhia-as resmungando:

– Perpétua? Não. Você não vai pra mesa hoje. É festa alegra. Nem você, dona violetinha!… Rosa-maxixe? Ah! Ah! Tinha graça a Cesária em festa de branco!…

E sua tesoura ia cortando os caules com ciência de mestre. Às vezes parava, a filosofar:

– Ninguém se lembra hoje do anjinho… Pra que, então, goivo nos vasos? Quieto fique aqui o senhor goivo, que não é flor de vida, é flor de cemitério…

E sua linguagem de flores? Suas ironias, nunca percebidas de ninguém? Seus louvores, de ninguém suspeitados? Quantas vezes não depôs na mesa, sobre um prato, um aviso a um hóspede, um lembrete à patroa, uma censura ao senhor, composto sob forma dum ramalhete? Ignorantes da língua do jardim, riam-se eles da maluquice do Timóteo, incapazes de lhe alcançar o fino das intenções.

Timóteo era feliz. Raras criaturas realizam na vida mais formoso delírio de poeta. Sem família, criara uma família de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.

Era feliz, sim. Trabalhava por amor, conversando com a terra e as plantas – embora a copa e a cozinha implicassem com aquilo.

– Que tanto resmunga o Timóteo! Fica ali mamparreando horas, a cochichar, a rir, como se estivesse no meio duma criançada!…

É que na sua imaginação as flores se transfiguravam em seres vivos. Tinham cara, olhos, ouvidos… O jasmim-do-cabo, pois não é que lhe dava a benção todas as manhãs? Mal Timóteo aparecia, murmurando “A benção, Sinhô”, e já o velho, encarnado na planta, respondia com voz alegre: “Deus te abençoe, Timóteo”.

Contar isso aos outros? Nunca! “Está louco”, haviam de dizer. Mas bem que as plantinhas falavam…

– E como não hão de falar, se tudo é criatura de Deus, hom’essa!…

Também dialogava com elas.

– Contentinha, hein? Boa chuva a de ontem, não?

– …

– Sim, lá isso é verdade. As chuvas miúdas são mais criadeiras, mas você bem sabe que não é tempo. E o grilo? Voltou? Voltou, sim, o ladrão… E aqui roeu mais esta folhinha… Mas deixe estar, que eu curo ele!

E punha-se a procurar o grilo. Achava-o.

– Seu malfeitor!… Quero ver se continua agora a judiar das minhas flores.

Matava-o, enterrava-o. “Vira esterco, diabinho!”

Pelo tempo da seca era um regalo ver Timóteo a chuviscar amorosamente sobre as flores com o seu velho regador.– O sol seca a terra? Bobice!… Como se o Timóteo não estivesse aqui de chovedor na mão.

– Chega também, ué! Então quer sozinho um regador inteiro? Boa moda! Não vê que as esporinhas estão com a língua de fora?

– E esta boca-de-leão, ah! ah! está mesmo com uma boca de cachorro que correu veado! Tome lá, beba, beba!

– E você também, seu rosedá, tome lá seu banho pra depois, namorar aquela dona hortênsia, moça bonita do “zóio” azul…

E lá ia…

Plantas novas que abrolhavam o primeiro botão punham alvoroço de noivo no peito do poeta, que falava do acontecimento na copa provocando as risadinhas impertinentes da Cesária.

– Diabo do negro velho, cada vez caducando mais! Conversa com flor como se fosse gente.

Só a moça, com seu fino instinto de mulher, lhe compreendia as delicadezas do coração.

– Está aqui Sinhá, a primeira rainha margarida deste ano!

Ela fingia-se extasiada e punha a flor no corpete.

– Que beleza!

E Timóteo ria-se, feliz, feliz…

Certa vez falou-se na reforma do jardim.

– Precisamos mudar isto – lembrou-se o moço, de volta dum passeio a São Paulo. – Há tantas flores modernas, linda, enormes, e nós toda a vida com estas cinerárias, estas esporinhas, estas flores caipiras… Vi lá crisandálias magníficas, crisântemos deste tamanho e uma rosa nova, branca, tão grande que até parece flor artificial.

Quando soube da conversa, Timóteo sentiu gelo no coração. Foi agarrar-se com a moça. Ele também conhecia essas flores de fora, vira crisântemos na casa do Coronel Barroso, e as tais dálias mestiças no peito duma faceira, no leilão do Espírito Santo.

– Mas aquilo nem é flor, Sinhá! Coisas da estranja que o Canhoto inventa para perder as criaturas de Deus. Eles lá que plantem. Nós aqui devemos zelar das plantas de família. Aquela dália rajada, está vendo? É singela, não tem o crespo das dobradas; mas quem troca uma menina de sainha de chita cor-de-rosa por uma semostradeira da cidade, de muita seda no corpo, mas sem fé no coração? De manhã “fica assim” de abelhas e cuitelos em volta delas!… E eles sabem, eles não ignoram quem merece. Se as das cidades fossem mais de estimação, por que é que esses bichinhos de Deus ficam aqui e não vão pra lá? Não, Sinhá! É preciso tirar essa ideia da cabeça de Sinhô-moço. Ele é criança ainda, não sabe a vida. É preciso respeitar as coisas de dantes…

E o jardim ficou.

Mas um dia… Ah! Bem sentira-se Timóteo tomado de aversão pela família dos ora-pro-nóbis! Pressentimento puro… O ora-pro-nóbis pai voltou e esteve ali uma semana em conciliábulo com o moço. Ao fim deste tempo, explodiu como bomba a grande notícia: estava negociada a fazenda, devendo a escritura passar-se dentro de poucos dias.

Timóteo recebeu a nova como quem recebe uma sentença de morte. Na sua idade, tal mudança lhe equivalia a um fim de tudo. Correu a agarrar-se à moça, mas desta vez nada puderam contra as armas do dinheiro os seus pobres argumentos de poeta.

Vendeu-se a fazenda. E certa manhã viu Timóteo arrumarem-se no trole os antigos patrões, as mucamas, tudo o que constituía a alma do velho patrimônio.

– Adeus, Timóteo! – disseram alegremente os senhores-moços, acomodando-se no veículo.

– Adeus! Adeus!…

E lá partiu o trole, a galope… Dobrou a curva da estrada… Sumiu-se para sempre…

Pela primeira vez na vida Timóteo esqueceu de regar o jardim. Quedou-se plantando a um canto, a esmoer o dia inteiro o mesmo pensamento doloroso:

– Branco não tem coração…

Os novos proprietários eram gente da moda, amigos do luxo e das novidades. Entraram na casa com franzimentos de nariz para tudo.

– Velharias, velharias…

E tudo reformaram. Em vez da austera mobília de cabiúna, adotaram móveis pechisbeques, com veludinhos e friso. Determinaram o empapelamento das salas, a abertura de um hal l, mil coisas esquisitas…

Diante do jardim, abriram-se em gargalhadas. – É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé de Sousa, em pleno século das crisandálias!

E correram-no todo, a rir, como perfeitos malucos.

– Olhe, Ivete, as esporinhas! É inconcebível que inda haja esporinhas no mundo!

– E periquito, Odete! Pe-ri-qui-to!… – disse uma das moças, torcendo-se em gargalhadas.

Timóteo ouvia aquilo com mil mortes n’alma. Não restava dúvida, era o fim de tudo, como pressentira: aqueles bugres da cidade arrasariam a casa, o jardim e o mais que lembrasse o tempo antigo. Queriam só o moderno.

E o jardim foi condenado. Mandariam vir o Ambrogi para traçar um plano novo, de acordo com a arte moderníssima dos jardins ingleses. Reformariam as flores todas, plantando as últimas criações da floricultura alemã. Ficou decidido assim.

– E para não perder tempo, enquanto o Ambrogi não chega ponho aquele macaco e me arrasar isto – disse o homem apontando para Timóteo.

– Ó tição, vem cá!

Timóteo aproximou-se com ar apatetado.

– Olha, ficas encarregado de limpar de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?

Timóteo, trêmulo, mal pôde engrolar uma palavra:

– Eu?

– Sim, tu! Por que não?

O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:

– Eu? Eu, arrasar o jardim?

O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender daquela resistência.

– Eu? Pois me acha com cara de criminoso?

E, não podendo mais conter-se, explodiu num assomo estupendo de cólera – o primeiro e o único de sua vida.

– Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Mas, olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto há de virar um tapera de lacraias! A geada há de torrar o café. A peste há de levar até as vacas de leite! Não há de ficar aqui nenhuma galinha, nem um pé de vassoura! E a família amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros lazarentos!… Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina assim uma coisa que dinheiro nenhum paga. Não se mata assim um pobre negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana! Deixa estar!…

E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça:

– Deixa estar! Deixa estar!

E longe, na porteira, ainda espalmava a mão para a fazenda, num gesto mudo:

– Deixa estar!

Anoitecia. Os curiangos andavam a espacejar silenciosamente voos de sombra pelas estradas desertas. O céu era todo um recamo fulgurante de estrelas. Os sapos coaxavam nos brejos e vaga-lumes silenciosos piscavam piques de luz no sombrio das capoeiras.

Tudo adormecera na terra, em breve pausa de vida para o ressurgir do dia seguinte.

Só não ressurgirá Timóteo. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre.

E lá encontrará a manhã enrijecido pelo relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para a fazenda num derradeiro gesto de ameaça:

– Deixa estar!…


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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