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5/04/2025

Biografia de Monteiro Lobato (Síntese Biográfica)

 

BIOGRAFIA DE  MONTEIRO LOBATO (SÍNTESE)

Em 18 de abril de 1882, em Taubaté, Estado de São Paulo, nasce o filho de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato. Recebe o nome de José Renato Monteiro Lobato, que por decisão própria modifica mais tarde para José Bento Monteiro Lobato, desejando usar uma bengala do pai gravada com as iniciais J.B.M.L.

Juca assim era chamado —  brincava com suas irmãs menores Ester e Judite.

Naquele tempo não havia tantos brinquedos: eram toscos, feitos de sabugos de milho, chuchus, mamão verde, etc.

Adorava os livros de seu avô materno, o Visconde de Tremembé.

Sua mãe o alfabetizou, teve depois um professor particular e aos 7 anos entrou num colégio. Leu tudo o que havia para crianças em língua portuguesa. Em dezembro de 1896 presta exames em São Paulo das matérias estudadas em Taubaté.

Aos 15 anos perde seu pai, vítima de congestão pulmonar, e aos 16 anos, sua mãe.

No colégio funda vários jornais, escrevendo sob pseudônimo.

Aos 18 anos entra para a Faculdade de Direito por imposição do avô, pois preferia a Escola de Belas-Artes.

É anticonvencional por excelência, diz sempre o que pensa, agrade ou não. Defende a sua verdade com unhas e dentes, contra tudo e todos, quaisquer que sejam as consequências.

Em 1904, diploma-se Bacharel em Direito; em maio de 1907 é nomeado promotor em Areias, casando-se no ano seguinte com Maria Pureza da Natividade (Purezinha), com quem teve os filhos Edgar, Guilherme, Marta e Rute.

Vive no Interior, nas cidades pequenas, sempre escrevendo para jornais e revistas, "Tribuna de Santos", "Gazeta de Notícias" do Rio e "Fon-Fon", para onde também manda caricaturas e desenhos.

Em 1911 morre seu avô, o Visconde de Tremembé, e dele herda a fazenda de Buquira, passando de promotor a fazendeiro.

A geada, as dificuldades, levam-no a vender a fazenda em 1917 e a transferir-se para São Paulo. Mas na fazenda escreveu o JECA TATU, símbolo nacional.

Compra a "Revista do Brasil" e começa a editar seus livros para adultos. "Urupês" inicia a fila em 1918.

Surge a primeira editora nacional "Monteiro Lobato & Cia.", que se liquidou transformando-se depois em Companhia Editora Nacional sem sua participação.

Antes de Lobato os livros do Brasil eram impressos em Portugal; com ele inicia-se o movimento editorial brasileiro.

Em 1931 volta dos Estados Unidos da América do Norte, pregando a redenção do Brasil pela exploração do ferro e do petróleo.

Começa a luta que o deixará pobre, doente e desgostoso. Havia interesse oficial em se dizer que no Brasil não havia petróleo. Foi perseguido, preso e criticado porque teimava em dizer que no Brasil havia petróleo e que era preciso explorá-lo para dar ao seu povo um padrão de vida à altura de suas necessidades.

Já em 1921 dedicou-se à literatura infantil. Retorna a ela, desgostoso dos adultos que o perseguem injustamente. Em 1943 funda a Editora Brasiliense para publicar suas obras completas, reformulando inclusive diversos livros infantis. Com "Narizinho Arrebitado" lança o Sítio do Picapau Amarelo e seus célebres personagens. Através de Emília diz tudo o que pensa; na figura do Visconde de Sabugosa critica o sábio que só acredita nos livros já escritos. Dona Benta é o personagem adulto que aceita a imaginação criadora das crianças, admitindo as novidades que vão modificando o mundo. Tia Nastácia é o adulto sem cultura, que vê no que é desconhecido o mal, o pecado. Narizinho e Pedrinho são as crianças de ontem, hoje e amanhã, abertas a tudo, querendo ser felizes, confrontando suas experiências com o que os mais velhos dizem mas sempre acreditando no futuro.

E assim o Pó de Pirlimpimpim continuará a transportar crianças do mundo inteiro ao Sítio do Picapau Amarelo, onde não há horizontes limitados por muros de concreto e de ideias tacanhas.

Em 4 de julho de 1948 perde-se esse grande homem, vítima de colapso, na Capital de São Paulo.

Mas o que ele tinha de essencial, seu espírito jovem, sua coragem, está vivo no coração de cada criança. Viverá sempre, enquanto estiver presente a palavra inconfundível de "Emília".

 

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Fonte:
“Robinson Crusoé”. Editora Brasiliense. São Paulo, 1986.

3/16/2025

O Rouxinol (Hans Christian Andersen), por Monteiro Lobato

 

O ROUXINOL

A China, Vocês sabem, o imperador é chinês e todos que vivem em redor dele são chineses.

Há muito e muitos anos o palácio do imperador da China era o mais belo de todos os palácios do mundo; basta dizer que fora construído inteiro de porcelana finíssima — tão fina e frágil que ninguém tinha ânimo de nele tocar nem com a ponta do dedo. Nos jardins viam-se as flores mais esquisitas, com minúsculas campainhas de prata amarradas nas pétalas; o vento fazia retinir esses sininhos chamando a atenção dos passantes. Tudo mais nos jardins do imperador era desse gosto e a tal distância se prolongavam que nem os jardineiros sabiam onde era o fim. Mas se alguém conseguisse chegar ao fim dos jardins veria que davam para uma floresta de enormes árvores e muitos lagos fundos. A floresta ia descendo até uma praia e mergulhava num mar, de modo que em certo ponto os navios navegavam por cima das ramagens. Naquela floresta morava um rouxinol de maravilhoso canto. Que músicas sabia esse passarinho! Os pescadores que passavam por perto, de caminho aos lagos, esqueciam-se dos peixes para ouvi-lo.

Viajantes vinham de todas as partes do mundo para admirar o palácio e os jardins do imperador da China, mas quando ouviam o canto do rouxinol murmuravam extasiados: "Isto vale mais que tudo!" E ao regressarem para suas terras contavam as maravilhas vistas e escreviam livros e livros sobre o palácio e os jardins, sem nunca se esquecerem do rouxinol que valia mais que tudo. Os que eram poetas faziam lindas poesias sobre a maravilhosa avezinha cantora da floresta dos lagos.

Esses livros começaram a correr mundo e um deles foi parar nas mãos do imperador, que ficou a lê-lo em seu trono de ouro, volta e meia balançando a cabeça para indicar que estava satisfeito com o que diziam a respeito dos seus jardins e palácios. Mas esse livro também acabava com a mesma observação de todos os viajantes sobre o rouxinol, considerando-o superior a tudo.

— Que é isto? indagou o soberano. Não sei de nada! Será possível que exista semelhante passarinho em minhas terras, em meu próprio jardim, e eu o ignore?

E chamou o mordomo, que era um personagem de tal importância que se alguém falava com ele a única resposta recebida era "Pf!" som que não quer dizer coisa nenhuma.

— Deve haver um passarinho muito notável, chamado rouxinol, disse-lhe o imperador. Os viajantes declaram que é a maior maravilha que viram no meu reino. Por que nunca me disseram nada a respeito?

— Jamais ouvi falar dele, Majestade, respondeu o mordomo, e creio que nunca foi apresentado à corte.

Pois ordeno que venha cantar diante de mim esta mesma noite, disse o soberano. O mundo inteiro sabe que esse rouxinol existe e eu o desconheço...

— Jamais ouvi falar dele, repetiu o mordomo, mas farei que seja procurado e introduzido perante Vossa Majestade.

Muito fácil de dizer, mas onde encontrar o rouxinol? O mordomo consultou toda a gente do palácio e de ninguém obteve a menor informação a respeito. Foi ter com o imperador e disse que o tal rouxinol com certeza era peta de quem escreveu o livro.

— Vossa Majestade não deve crer em tudo quanto está nos livros; muita coisa é fantasia poética da arte negra (eles chamam arte negra à arte de escrever, por causa da tinta).

— Mas o livro em que li isso, replicou o soberano, foi-me enviado pelo muito alto e poderoso imperador do Japão — e de nenhum modo pode conter falsidade. Quero ouvir o rouxinol! Quero ouvi-lo esta noite. E se não vier, toda a corte será passada a fio de espada, logo depois da ceia.

— Tsing-pe! murmurou humildemente o mordomo, e voltou a correr o palácio inteirinho, onde falou com todo o mundo, porque era necessário descobrir-se, fosse lá como fosse, o tal rouxinol maravilhoso; do contrário perderiam todos a vida naquela mesma noite.

Depois de muita correria encontraram na cozinha do palácio uma pequena ajudante de cozinheira que disse:

— Um rouxinol? Oh, conheço esse rouxinol que canta maravilhosamente. Eu costumo levar os restos de comida para minha mãe doente; ela mora perto da praia, e quando volto, e me sinto cansada, sento-me debaixo duma árvore da floresta e ouço o rouxinol cantar. E tão lindo ele canta, que eu choro sem querer, porque é o mesmo que se minha mãe estivesse me beijando.

— Menina, disse o mordomo, arranjarei para você um emprego nesta cozinha e ainda darei licença para que assista ao jantar do imperador, se nos mostrar o caminho que vai ter à floresta desse rouxinol.

Momentos depois chegavam à floresta em questão. Metade da corte, pelo menos, seguira a menina. Súbito, uma vaca mugiu.

— Oh, exclamou um dos cortesãos, lá está ele! E que força de pulmões tem, para um corpinho tão pequeno! Mas... parece-me que já ouvi este canto nalgum lugar...

— Bolas! exclamou a menina. Isso é uma vaca que está berrando. Estamos ainda longe.

Mais adiante uma rã coaxou num brejo.

— Magnífico! exclamou outro cortesão. É ele! Canta que parece sino de igreja!...

— Qual o que, disse a menina. Isso é uma rã do brejo!

Mas afinal chegaram ao ponto onde o rouxinol costumava aparecer e imediatamente ouviram seu gorjeio.

— Lá está o rouxinol! gritou a menina. Devagar agora, se não foge. Ali, naquela árvore. Olhem, olhem! E aquele passarinho escuro!...

— Será possível! duvidou o mordomo. Nunca imaginei coisa assim. Tão singelo e sem cor. Com certeza perdeu as cores de assombro de ver tanta gente notável aqui reunida.

— Rouxinolzinho, gritou a menina, o nosso poderoso imperador deseja que você vá cantar diante dele esta noite.

— Com o maior prazer, respondeu o passarinho, e para dar amostra do seu canto gorjeou a sua linda música extasiando a todos.

— Parece som de cristal, disse o mordomo, e olhem como palpita a gargantinha dele! É espantoso que nunca ouvíssemos falar dessa ave! Vai fazer um enorme sucesso na corte.

— Quer que cante mais um pouco para o imperador ouvir? inquiriu o rouxinol, certo que algum daqueles figurões era o soberano.

— Meu querido rouxinolzinho, respondeu o mordomo, o imperador não está aqui, e eu o convido para comparecer hoje de noite no palácio imperial, onde Sua Majestade o espera ansioso.

— É muito melhor o meu canto ouvido na floresta do que num palácio, mas irei, já que o imperador o quer.

Os preparativos no palácio para receber o rouxinol foram magníficos. As paredes de porcelana brilhavam, batidas da luz de mil lâmpadas de ouro; as mais raras flores, todas com os seus sininhos de prata, enfeitavam os corredores, fazendo tanto barulho que ali ninguém podia conversar.

No centro do salão onde estava o imperador em seu trono havia um poleiro de ouro para o rouxinol, Toda a corte se colocara lado a lado, à espera, e a menina da cozinha ficou a espiar pelo vão da porta, visto que ainda não obtivera o cargo prometido pelo mordomo. Todos tinham os olhos na avezinha, para o qual o imperador fez sinal de começar.

E o rouxinol cantou e cantou tão maravilhosamente bem que lágrimas começaram a deslizar pelas faces do imperador. O seu encanto foi tamanho que ele resolveu pôr em redor do pescoço da avezinha um colar de diamantes mas o rouxinol recusou, achando que já se achava sobejamente recompensado.

— Vi lágrimas nos olhos de Vossa Majestade, disse ele, e isso vale para mim pela mais alta recompensa. As lágrimas do imperador possuem a virtude de ser o maior dos prêmios.

E continuou a cantar.

— Isto é a mais bela música que ainda ouvi! disseram as damas presentes e puseram água na boca a fim de ficarem com a fala líquida ou fluida, como era a vozinha do rouxinol. Até a criadagem do palácio ficou maravilhada — o que é de estranhar, porque justamente os criados são os mais exigentes. O sucesso do rouxinol havia sido completo.

O Imperador convidou-o para ficar residindo ali, numa gaiola de ouro, da qual podia sair duas vezes de dia e uma de noite — sempre acompanhado de dois fâmulos a segurarem uma fita de seda amarrada a um dos seus pezinhos. Aquele modo de viver, entretanto, não lhe agradava e só servia para avivar as saudades da vida livre da floresta.

Em toda a cidade o assunto era aquele — o rouxinol. Numerosas crianças foram batizadas com o seu nome, mas nenhuma mostrou possuir a sua gargantinha de cristal.

Um dia o imperador recebeu uma caixa de presente.

— Há de ser algum novo livro a respeito do famoso pássaro, pensou consigo. Mas não era livro nenhum e sim um rouxinol artificial, feito de diamantes, safiras e rubis. Quando lhe davam corda, cantava uma das músicas do rouxinol de verdade, e também estremecia a caudinha, toda rutilante de pedrarias. Em redor do seu pescoço vinha uma fitinha com estes dizeres: "O rouxinol do Imperador do Japão é pobre comparado com o rouxinol do Imperador da China."

— Maravilhoso! exclamaram todos os presentes, e o portador da ave artificial foi imediatamente nomeado para um cargo novo Imperial Trazedor do Rouxinol Imperial.

— Eles agora precisam cantar em dueto, este e o outro, lembraram os cortesãos. Vai ser um assombro.

A ideia foi aceita com entusiasmo e o duelo teve logo início. Mas a tentativa não deu resultado porque o rouxinol de verdade cantava como queria e o outro só de acordo com a corda.

—Não é culpa do rouxinol novo, observou o maestro do palácio, porque este está certo, visto como marca os compassos segundo os princípios da minha escola — e foi então ordenado que o rouxinol artificial cantasse sozinho. O seu sucesso foi muito maior que o obtido pelo rouxinol real — e além disso era ele muito mais agradável à vista, por causa das pedrarias foi a opinião de todos.

Trinta e três vezes cantou a mesma música sem cansar-se, e cantaria ainda outras se o Imperador não declarasse que era tempo de ser ouvido o rouxinol real. Mas... onde estava ele? Ninguém o tinha visto escapar-se da gaiola e sumir-se pela janela.

—Como foi isso? indagou o Imperador magoado — e todos os cortesãos recriminaram a avezinha como profundamente ingrata.

— Mas o melhor ficou, disseram logo em seguida, e o rouxinol artificial foi posto a cantar novamente, e cantou pela trigésima quarta vez a mesma música. O maestro do palácio disse dele ainda maiores louvores, continuando a afirmar que era na realidade muito melhor que o outro, além de ser incomparavelmente mais lindo.

— Vossa Majestade compreende o valor desta jóia, explicou o maestro ao Imperador. Com o outro não podíamos saber nunca que música viria, mas com este temos a certeza do que vai cantar. Podemos analisá-lo, abri-lo, ver o que tem dentro e admirar a maravilha do engenho humano.

— Realmente! afirmaram todos os presentes. O maestro tem toda a razão — e combinaram exibi-lo ao povo no próximo domingo, depois de obtida do Imperador a necessária licença.

Fez-se com grande sucesso a exibição; o povo ouviu-o cantar com o mesmo prazer com que toma chá, porque eram todos chineses e para o chinês nada como o chá. Todos, menos um. Um pescador que já havia ouvido o rouxinol na floresta, só esse não gostou.

— Canta bem, não há dúvida, dissera esse homem, mas só canta uma certa música, e além disso noto que falta qualquer coisa nessa música — o que, não sei.

Mas para a grande massa do povo vencera o rouxinol artificial, e em vista disso o verdadeiro foi banido da China por um decreto do soberano.

O novo vencedor viu-se colocado sobre um coxim de seda, ao lado do leito do imperador, no meio de um monte de jóias e pedrarias. Foi-lhe dado o título de Imperial Cantor da Câmara Imperial, com direito ao lado esquerdo do soberano, que é o lado mais importante por ser o lado do coração. O maestro do palácio escreveu uma obra em vinte e cinco volumes sobre a jóia cantora, obra tão cheia daquelas letras chinesas desenhadas com tinta nanquim, que ninguém leu — e se alguém lesse não entenderia. Mas todos a admiraram para não correrem o risco de ser tidos como estúpidos.

Um ano passou-se. Tanto o Imperador, como toda a sua corte e ainda o povo chinês, aprenderam de cor, sem escapar um sonzinho, a célebre música do rouxinol. E todos a cantavam. Até nas ruas a meninada ia para as escolas cantando a cantiga do rouxinol imperial.

Certa manhã, em que o rouxinol estava pela milésima vez cantando a sua música para o imperador, qualquer coisa dentro dele estalou — craque! e o silêncio se fez.

O imperador pulou da cama onde se achava e chamou pelo médico do palácio. Mas o médico, apesar de grande sábio, nada pode fazer.

Foi chamado um relojoeiro, que abriu o rouxinol e procurou consertá-lo. As molas estavam gastas e se se pusessem outras a música se alteraria. Foram apesar disso mudadas as molas, e para que não se gastassem como as primeiras, o imperador declarou que ele só cantaria uma vez por ano. O maestro do palácio fez um longo discurso para provar que a música mudara um pouco, mas era ainda melhor que a primitiva — o todos tiveram de achar que sim.

Cinco anos mais tarde uma desgraça caiu sobre o império: o imperador adoecera de doença grave. Vendo que o soberano estava nas últimas, os ministros providenciaram para a imediata escolha do seu sucessor. O povo aglomerado em frente ao palácio ansiava por saber do mordomo como ia passando o velho soberano; mas o mordomo aparecia e emitia apenas aquele seu célebre "Pf!" que não significava coisa nenhuma.

O imperador jazia muito pálido e desfigurado em seu leito, e sozinho, porque todos os cortesãos só queriam saber de rodear o futuro soberano. Os criados tinham corrido a servir o novo sol e as camareiras também — e como os corredores próximos haviam sido tapetados para que nenhum rumor fosse feito, o silêncio em torno do velho Imperador era mortal.

O pobre soberano mal podia respirar; sentia um grande peso no coração e, abrindo os olhos, viu que o vulto da Morte estava sentado sobre o seu peito, com a sua coroa na cabeça, o seu cetro numa das mãos descarnadas e a sua espada na outra. Estranhos seres espiavam detrás dos reposteiros de veludo. Eram as más ações do soberano que vinham espiá-lo, agora que a Morte se sentara em cima do seu peito.

— Lembra-se de mim? murmurava uma, fazendo caretas.

— E de mim? murmurava outra, e tantas foram as perguntas desse gênero que o imperador começou a suar frio.

— Oh! exclamou ele, horrorizado. Música! Que soem os tambores! Não quero ouvir o que estas sombras me dizem!

Mas as sombras das suas más ações continuaram a fazer-se lembradas e a Morte concordava com a cabeça com tudo quanto elas diziam.

Música! Música! vociferava o soberano. Meu rouxinol de ouro, canta, canta! Dei-te todas as honras e te pus ao pescoço o meu colar de diamantes. Cante, eu ordeno, canta!

— Mas o rouxinol artificial conservou-se mudo — estava sem corda — e sem corda não podia cantar ainda com ordem do imperador. E a Morte continuava a encarar firmemente o moribundo com as suas órbitas ocas, no silêncio tumular que envolvia tudo.

Súbito, uma melodia estranha soou à janela. Vinha lá de fora, da garganta dum rouxinol vivo que pousara num galho. Era o rouxinol da floresta, que ouvira o apelo do moribundo e se apressara em vir confortar sua pobre alma dolorida. E à medida que ia cantando, os fantasmas do quarto se iam esvaindo e o sangue voltava a circular com mais vida nas veias do Imperador. Até a própria Morte se pôs a ouvi-lo, maravilhada, murmurando a espaços:

— Continue, rouxinolzinho! Continue...

— Só continuarei se você me der essa coroa.

A morte tirou da sua cabeça a coroa do Imperador e deu-a ao rouxinol — e o rouxinol cantou mais uma canção. A Morte pediu mais música — e o rouxinol para cada nova canção exigia uma das coisas que ela já havia tirado do Imperador — o cetro, a espada, o estandarte.

E o rouxinol cantou, cantou como os rouxinóis costumam cantar nos jardins sombrios, ao cair da noite, quando o orvalho começa a misturar-se aos perfumes das flores sonolentas. Por fim a Morte esvaiu-se do quarto, como um nevoeiro que se extingue ao sol.


— Obrigado! Obrigado, meu maravilhoso amigo! Conheço-te muito bem. Foste por mim mesmo banido dos meus domínios e no entanto vieste afugentar do meu quarto os horrendos monstros que me torturavam. Como poderei recompensar-te do bem que me fizeste?

— Recompensado estou, respondeu o rouxinol. Já vi lágrimas em vossos olhos, da primeira vez que cantei — e não me esquecerei disso nunca. Dormi, Imperador, dormi que o sono vos restaurará as forças. Eu continuarei a cantar para embalo do vosso sono.

E cantou, cantou, cantou até ver o soberano profundamente adormecido.

O sol já batia de novo em sua janela quando o Imperador caiu do sono, refeito da doença e curado. Nenhum dos seus serviçais aparecera no quarto, porque todos já o supunham falecido. Só o rouxinol lhe fazia companhia, lá do galho a cantar.

—Ficarás agora sempre comigo, disse o Imperador e cantarás sempre que eu pedir. O outro, o teu rival de diamantes e rubis, será despedaçado.

— Por que isso? disse a avezinha. Ele cantou enquanto pode. Conservai-o como antes. Eu não posso construir meu ninho aqui, nem viver no palácio, mas virei sempre que puder, e pousarei neste galhinho, perto desta janela, e cantarei para Vossa Majestade apenas. Cantarei em prol dos que sofrem, dos que injustamente são afastados da vossa presença pelos maus cortesãos. Isso porque sou um cantorzinho que voa por toda a parte, e pousa no teto dos camponeses humildes e dos pescadores paupérrimos, e de toda a gente que vive longe da corte e nem sequer é por ela suspeitada. Eu amo mais o vosso coração do que a vossa coroa. Virei cantar apenas para vós — mas haveis de prometer-me uma coisa.

— Prometo tudo quanto pedires! disse o Imperador erguendo o punho da espada como testemunha.

— Quero que ninguém saiba que Vossa Majestade possui uma avezinha que lhe conta tudo.

Disse e voou para longe.

Os criados vieram afinal espiar o cadáver do velho Imperador... Mas o seu assombro não teve limites quando o cadáver se ergueu na cama e lhes disse, muito amavelmente:

— Bons olhos os vejam, amigos!


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

O Pinheirinho (Hans Christian Andersen), por Monteiro Lobato

 


O PINHEIRINHO

No de uma floresta havia nascido um pinheirinho.

A natureza o plantara num lugar arejado onde podia tomar bastante sol, e o rodeara de outros pinheiros. De todos, porém, era ele o menor. E isto o entristecia, tornando-o ansioso por crescer e igualar-se aos seus companheiros. Pouca importância dava à luz do sol, às brisas leves que sopravam e às crianças que passavam por ali em busca de framboesas e outras frutas silvestres. Era comum virem as crianças com cestinhas cheias de framboesas sentar-se junto ao pequeno pinheiro, exclamando alegres: "Que linda arvorezinha!" Mas ele se conservava indiferente e insensível a qualquer elogio.

Passando um ano viu-se crescido de mais um nó, e o mesmo se deu no ano seguinte, pois os pinheirinhos crescem aos nós, de ano em ano. Calcula-se a idade deles pelo número de nós que mostram no tronco.

— Por que não sou do mesmo tamanho dos meus companheiros? suspirava o pinheirinho. Como não há de ser bom poder contemplar o mundo lá de cima! Pássaros viriam construir ninhos em meus galhos e quando o vento soprasse eu me curvaria com a mesma dignidade dos meus irmãos.

Nada o agradava. Nem as carícias do sol, nem os passarinhos, nem as nuvens que sobre ele passavam pela manhã e à tardinha. Durante o inverno, quando o alvo manto da neve atapetava o solo, acontecia muitas vezes surgir alguma lebre espavorida que na carreira saltava por cima dele. Como isto o acabrunhava! Mas decorridos mais dois invernos já a lebre se via obrigada a passar sob os seus galhos.

— Oh, como desejo crescer, crescer, tornar-me alto, grande como os outros! almejo tanto neste mundo como ser grande!

Com a entrada do outono apareciam na floresta homens de machado em punho, em busca das árvores mais desenvolvidas. Como isto acontecesse regularmente todo os anos, o pinheirinho, já agora bem crescido, tremeu

ao pensar que talvez viesse a ter o mesmo destino dos outros irmãos seus, que tombavam fragorosamente a golpes de machado. Os lenhadores lhes aparavam os galhos, deixando os troncos tão nus e compridos que mal se poderia reconhecer neles os esbeltos pinheiros de horas antes. Eram em seguida postos sobre rodas e puxados para fora da floresta.

Para onde iriam? Que destino lhes era reservado?

Na primavera, depois que as andorinhas e as cegonhas retornavam dos países quentes, o pinheirinho lhes perguntava ansioso se sabiam o que fora feito dos pinheiros destruídos e se porventura haviam encontrado algum pelo caminho. Nada respondiam as andorinhas; mas as cegonhas, após alguma reflexão, moviam a cabeça afirmativamente, dizendo:

— Quando deixamos o Egito vimos no mar navios novos, todos ostentando soberbos mastros. Esses mastros devem ser os pinheiros levados daqui, pois tinham o cheiro resinoso. Parabéns por ter irmãos de tanta imponência.

— Ah, como desejo ser grande para atravessar o mar! Como é esse mar? Com que se parece?

— Levaríamos muito tempo para explicar, respondiam as cegonhas alçando voo.

— Goze a mocidade, murmuravam os raios de sol que vinham brincar nas agulhas dos seus galhos. Goze a mocidade enquanto é tempo.

E o vento perpassava beijando o pinheirinho, e o orvalho punha nele as suas lágrimas prateadas; mas a árvore continuava insensível, sem os compreender.

Ao aproximar-se o Natal vários pinheirinhos ainda pequenos foram cortados; eram arbustos menores que aquele ambicioso que só pensava em conhecer novas terras. A esses os lenhadores levavam para fora da floresta sem lhes podar os galhos.

— Para onde irão? perguntava a si mesmo o pinheirinho. Menores do que eu! E por que não lhes cortaram os galhos? Que irão fazer com eles?

— Nós sabemos, nós sabemos, porque espiamos pelas janelas das casas da cidade, chilreavam os pardais. Sabemos para onde vão. Ah, se você pudesse ver como os homens os enfeitam dos mais lindos objetos dourados e prateados, com flocos de algodão e velinhas acesas, certo que morreria de inveja.

— Que mais? Continue, pediu o pinheirinho, ansioso por novidades.

— Foi só o que vimos, mas valeu a pena.

— Quem me dera ter o mesmo destino! exclamava a árvore. Deve ser melhor do que cruzar os mares num navio. Estou aflito para que o Natal chegue. Só assim, grande como já estou, também serei levado. Como não deve ser bom estar numa sala toda iluminada, recoberto de coisas bonitas! E depois... depois sem dúvida alguma esperam-me agradáveis surpresas, pois do contrário não seria tão ricamente adornado. Quem me dera saber o que me acontecerá depois! Estou tão cansado de esperar? Por que demora tanto o dia da minha partida?

— Goze a mocidade! sussurravam as brisas. Goze os dias felizes e calmos que está vivendo ao ar livre, diziam os raios de sol.

Mas o pinheirinho, à medida que crescia, mais e mais se impacientava para sair logo da floresta. Durante todo o verão e mesmo durante o inverno manteve intacta sua verde roupagem, e os que o viam elogiavam-no admirados: "Que linda árvore!" Chegado o Natal o nosso pinheiro viu, enfim, realizar-se o seu sonho. Foi o primeiro a receber os impiedosos golpes do machado. E tombou com um gemido, sentindo como um desmaio. Esqueceu das honrarias que o aguardavam e teve saudade de deixar para sempre o lugar onde nascera e crescera. Sabia perfeitamente que nunca mais voltaria a rever seus companheiros, nem a grama, nem as flores que desde o começo da vida o cercavam. E talvez nem mesmo os pássaros...

A viagem esteve longe de ser agradável. Cobrou alento, porém, ao ver-se retirado do caminhão juntamente com outros pinheiros do mesmo porte. Perto ouviu alguém dizer:

— Este é o mais bonito. Ficaremos com ele.

Dois criados, a uma ordem do amo, levaram-no para um belo salão. Nas paredes notou quadros grandes e pequenos e ladeando a chaminé viu lindos vasos de porcelana; também viu cadeiras de balanço, poltronas, sofás de seda, mesas com livros de figuras, brinquedos e caríssimos presentes espalhados pelo espaçoso cômodo. O pinheirinho, colocado num barril pintado de verde e cheio de areia, foi posto bem no meio da sala. Era de ver-se como estava trêmulo.

Que iria acontecer? Tanto os criados como várias moças da casa puseram-se a enfeitá-lo cuidadosamente, pendurando-lhe pelos galhos saquinhos de confeitos, maçãs douradas, pacotinhos de nozes, dezenas de velinhas brancas, azuis e vermelhas. Sob a folhagem verde colocaram bonecas, que mais pareciam criaturas vivas, de tão bem feitas. O pinheirinho jamais imaginara que pudesse tornar-se tão lindo, sobretudo depois que bem no topo uma das moças lhe ajeitou uma linda estrela dourada.

— À noite, quando iluminado, vai ficar ainda mais belo, diziam todos.

— Quem me dera já fosse noite! suspirava a árvore. Por que não acendem as velinhas? E depois? Que acontecerá depois? Ah, se os meus companheiros da floresta pudessem ver-me, com certeza haviam de morder-se de inveja. E os pardais? Virão espiar-me pela janela? E que será de mim? Criarei raízes e passarei aqui o inverno e o verão?

Tudo isto perguntava-se ele a si mesmo, e tal era a sua impaciência que principiou a sentir dor de casca; para um vegetal, dor de casca é o mesmo que dor de cabeça para nós.

Por fim as velinhas foram acesas. O pinheiro sentiu um tremor em todos os seus galhos — era medo de queimar-se. E foi justamente o que aconteceu. Felizmente uma das moças acudiu a tempo, e o acidente não passou duma queimadura sem importância. O pinheiro então resolveu manter-se imóvel, não só para que não se repetisse aquilo como também para não derrubar nenhum dos lindos objetos que o enfeitaram. Nisto abre-se a porta principal e um bando de crianças entra na sala em tumulto. Logo atrás vinham os mais velhos. Por alguns instantes os pequenos estacaram deslumbrados, para logo em seguida prorromperem em exclamações e pulos de alegria. E todos em círculo puseram-se a dançar em torno da árvore, de cujos galhos os presentes eram retirados um por um.

— Que pretenderão fazer? pensava a árvore. Que irá acontecer depois disto?

À medida que se derretiam, as velas iam sendo apagadas, e quando a última se extinguiu as crianças tiveram licença para assaltar o pinheiro. Com que fúria atiraram-se à árvore de Natal, arrancando as bolas prateadas que enfeitavam! Pouco faltou para que não o derrubassem.

Sempre alegres, as crianças brincavam a correr pela sala. Ninguém mais parecia prestar atenção ao pinheiro. Apenas uma velha criada o procurou, para remexer por entre os galhos na esperança de encontrar algum figo seco ou maçã escapos à gula da meninada.

— Uma história! Queremos uma história! pediram as crianças, puxando para junto do pinheiro um homenzinho gorducho.

— Está bem, concordou ele sentando-se debaixo da árvore. Aqui na sombra é melhor e o pinheiro também poderá ouvir a história. Mas só contarei uma. Qual é a que querem? Ivede-Avede, ou o Polichinelo que caiu da escada e acabou obtendo a mão da princesa?

— Ivede-Avede! gritaram umas.

— Polichinelo! gritaram outras.

E formou-se logo ensurdecedora algazarra. Só o pinheiro se mantinha em silêncio, embora perguntando a si mesmo se também não teria direito de dar opinião, já que fora parte importante na festa daquela noite.

Serenados os ânimos o homenzinho narrou a história do Polichinelo que caiu da escada mas acabou obtendo a mão da princesa. Terminada a narrativa voltaram as crianças a fazer algazarra. Queriam agora ouvir a história do Ivede-Avede. O pinheiro quedou-se pensativo. Nunca os pássaros da floresta lhe haviam narrado histórias assim.

— Polichinelo caiu da escada e acabou casando com uma princesa, repetia o pinheiro, certo de que um homem tão bem vestido não iria contar uma história que não fosse verdadeira. Vejam só o que é o mundo! Será que também eu irei cair de uma escada e casar-me com uma princesa?

Igualmente muito o alegrava a ideia de que no dia seguinte voltaria a cobrir-se de brinquedos, velinhas, maçãs douradas e tantas outras coisas bonitas. "Amanhã saberei manter-me firme para melhor apreciar a minha grandeza", pensava ele. "Amanhã tornarei a ouvir a história do Polichinelo e talvez a de Ivede-Avede."

E a noite toda passou a sonhar as alegrias que o futuro lhe reservava.

Na manhã seguinte as primeiras pessoas a entrarem no salão foram os dois criados. Imediatamente o pinheiro julgou que o vinham enfeitar, mas ficou muito desapontado ao ver-se conduzido para o porão da casa, onde nem a luz do dia penetrava.

— Que significará isto? conjeturava ele. Para que me terão posto aqui? Irão abandonar-me neste cômodo escuro?

E recostado à parede continuou a pensar. Longo tempo teve para as suas reflexões, pois passavam-se noites sem que surgisse viva alma. Quando alguém lá aparecia era apenas pra tirar ou pôr a um canto alguma canastra. Viu-se desse modo em completo abandono, como se a existência tivesse sido inteiramente olvidada.

— Deve ser inverno, dizia o pinheiro. O solo está endurecido e recoberto de neve; com certeza é por isso que não me plantam. Vão deixar-me bem abrigado aqui até que chegue a primavera. Pensando bem, os homens têm bom coração. Eu só desejava que este lugar não fosse tão escuro e solitário. Nem uma lebre para dar um pouquinho de vida a este silêncio. Como era bom lá na floresta, quando a neve cobria o solo e a lebre passava junto de mim, ou mesmo quando pulava por cima de mim, embora eu me aborrecesse tanto com a brincadeira. Como é horrível esta solidão!

— "Cuí, cuí, cuí", guincharam dois camundongos, saindo do buraco e procurando abrigo por entre os seus galhos. Que frio! Não fosse isso estaríamos bem aqui, não acha, velho pinheiro?

— Não sou velho, protestou a árvore. Há outros muito mais velhos do que eu.

— De onde vem e como se chama? indagaram os camundongos, curiosos. Conte-nos alguma coisa do mundo. Já esteve na dispensa onde há queijos bem guardados, presuntos pendurados do teto e de onde a gente pode sair duas vezes mais gordo do que quando entra?

— Desconheço tais lugares, respondeu o pinheiro. Mas conheço a floresta, onde brilha o sol e gorjeiam os pássaros.

E contou aos ratinhos a história da sua vida. Os camundongos, que jamais tinham ouvido falar de coisa parecida, observaram admirados:

— Quanta coisa você já viu! E como já foi feliz!

— Sim, já fui feliz, repetiu o pinheiro rememorando fatos passados.

Em seguida contou da festa do Natal e de como fora coberto de velinhas e brinquedos cada qual mais lindo que o outro.

— Não pode haver maior felicidade, velha árvore!

— Não sou velho, protestou o pinheiro. Cheguei da floresta este ano e o meu crescimento foi interrompido.

— Quanta coisa bonita você sabe contar! disseram ainda os ratinhos.

Na noite seguinte voltaram eles com quatro camundonguinhos novos para ouvirem as histórias do pinheiro; e quanto mais este as contava mais saudades ia sentindo dos tempos passados, que não voltam mais. Apesar disso, depois que escutara a história do Polichinelo que conseguira casar-se com uma princesa, não abandonava a esperança de também vir a obter algum dia a mão duma princesa. E recordou-se saudoso da elegante bétula que nascera a seu lado. Para um pinheiro uma bétula vale por uma bela princesa. A fim de entreter os camundongos narrou a história do Polichinelo tal qual a ouvira. Os ratinhos pulavam de contentamento. No dia seguinte apareceram outros camundongos e no domingo voltaram acompanhados de duas ratazanas. Estas, porém, declararam não haver gostado da história, o que deveras vexou os camundongos.

— Só sabe essa história? indagaram as ratazanas.

— Só esta, respondeu a árvore. Ouvia-a, na noite mais feliz da minha vida.

— Mas nem por isso é interessante. Conhece alguma história de queijos e presuntos? Conte-nos alguma coisa sobre despensas.

— Nada sei sobre isso.

— É pena, disseram as ratazanas e retiraram-se para as suas tocas, no que foram acompanhadas pelos camundongos pouco tempo depois.

— Era tão bom quando esses ratinhos amigos encarapitavam-se nos meus galhos para ouvir histórias! suspirou o pinheiro. Também isso passou. E quando me tirarem daqui irei sentir saudades dos momentos felizes que vivi com eles.

Um belo dia entraram no porão várias pessoas. As malas foram removidas do canto e o pinheiro, depois de retirado de onde estava, viu-se jogado ao chão; em seguida um criado o arrastou até ao terraço da casa.

— Agora sim, vou recomeçar a viver! murmurou ele satisfeito ao sentir o ar puro e os quentes raios do sol.

Do terraço avistava-se o jardim recoberto de flores. As rosas recurvavam-se sobre as latadas que as sustinham, perfumando o ambiente; e por toda parte, em todos os canteiros, uma flor principiava a desabrochar. Pardais voavam alegres, em chilreios, chamando as companheiras.

— Agora sim, irei viver! exclamou satisfeito o pinheiro, distendendo os seus ramos secos mas que ainda retinham ao alto a estrela dourada, muito brilhante à luz do sol.

Duas crianças que haviam dançado em torno dele no dia de Natal, apareceram. Ao avistarem a estrela uma delas correu para arrancá-la.

— Olhe aqui o que ainda está neste pinheiro murcho! disse calcando com os pés os galhos da pobre árvore.

Olhando para o jardim florido e vendo a miserável condição a que chegara o pinheiro desejou ter ficado no canto escuro do porão. Evocou os dias felizes passados na floresta, a alegre noite de Natal e os pequeninos camundongos que tanto gostavam de ouvir a história do Polichinelo.

— Tudo acabado! lamentou ele. Quando eu era feliz não sabia dar valor à minha felicidade. Só agora compreendo a vida — e justamente agora tudo está acabado para mim...

Pouco depois um rapaz de machado em punho picou a árvore em pedaços, que amontoou a um canto para serem queimados. E quando as labaredas começaram a devorá-lo o pinheiro gemeu doridamente, como só sabem gemer os pinheiros que se vêem queimados vivos. Cada estalo que a madeira dava era um gemido de dor. Ao ouvirem esses estalos as crianças deixaram os brinquedos e vieram acocorar-se ao pé do fogo. Mesmo envolto em chamas o pinheiro ainda recordava-se de um ou outro dia feliz de verão passado na floresta, ou de alguma noite de inverno, quando as estrelas cintilavam com mais fulgor. E também não deixou de recordar a noite do Natal e a história do Polichinelo, a única que jamais ouviu e a única que aprendera contar. Por fim, todo desfez-se em cinzas e acabou-se a história do pinheiro ambicioso, que, como os homens, só soube dar valor à felicidade depois que a perdeu.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

João Grande e João Pequeno (Hans Christian Andersen), por Monteiro Lobato



 JOÃO GRANDE E JOÃO PEQUENO

Havia lá não sei onde dois rapazes de igual nome. Ambos se chamavam João. Mas um possuía quatro cavalos e o outro apenas um. Para evitar trapalhadas, o dono dos quatro cavalos passou a chamar-se João Grande, e o outro, João Pequeno. Vamos agora ver o que aconteceu aos dois Joões.

João Pequeno trabalhava a semana inteira para João Grande, ele e o seu cavalo. Como pagamento desse serviço João Grande lhe cedia aos domingos os seus quatro animais, e como João Pequeno possuísse umas terras, aproveitava-se desse dia para correr nelas o arado. Era de ver então o orgulho com que estalava o chicote sobre os cinco animais atrelados à charrua, pois que João Pequeno tinha naquelas horas a ilusão de que todos os cavalos fossem seus.

— Vamos, meus cinco cavalos! gritava ele.

João Grande soube e protestou.

— Você não pode dizer isto, porque seu mesmo só há um cavalo. Não se esqueça.

Mas foi inútil. João Pequeno não resistia. Bastava que visse passar pela estrada gente que ia à igreja, de livrinho debaixo do braço, para repetir aquilo.

— Vamos, meus cinco cavalos!

João Grande ficou danado e veio com ameaças.

— Se tornar a repetir essa frase, eu mato o seu cavalo a pau e quero ver! Tome cuidado, está ouvindo?

João Pequeno, amedrontado, prometeu calar-se.

Prometer, porém, é simples; o difícil é cumprir e João Pequeno faltou logo ao prometido. No próximo domingo, ao aproximar-se um grupo de gente endomingada, gritou de novo:

— Vamos, meus cinco cavalos!

João Grande, que estava espiando, apareceu, furioso, com um pau na mão.

— É agora, seu patife! e pã! — derrubou-lhe o cavalo com uma formidável cacetada na cabeça.

O pobre João Pequeno pôs a boca no mundo; chorou a mais não poder. Perdera o cavalo, que era tudo quanto possuía na vida. Por fim, como não houvesse remédio, teve de conformar-se e então tirou o couro do cavalo morto e secou-o ao sol. Depois dobrou-o, botou-o num saco, foi à vila ver se o negociava.

Para chegar à vila tinha de atravessar uma floresta, na qual foi colhido por uma terrível tempestade. Teve de parar debaixo duma árvore, pois não enxergava dois passos à frente.

Quando a chuva cessou viu a pequena distância uma casa de porta e janelas fechadas, mas com luz dentro. Como já ia anoitecendo João foi lá bater para pedir pousada.

Veio abrir uma mulher de cara feia, dizendo-lhe que o marido não estava e pois não podia recolhê-lo.

— Dormirei aqui fora, disse João enquanto a mulher lhe fechava a porta no nariz.

Olhando em redor o rapaz descobriu um rancho de palha, sobre o qual uma cegonha havia construído um ninho. "Passarei a noite em cima desse rancho, pensou ele, e espero que a cegonha não me atrapalhe o sono."

Subiu em cima do rancho e acomodou-se. De lá podia ver o que se passava dentro da casa, pela bandeira da porta. E viu sentados à mesa da sala de jantar a mulher e mais um sacristão. O sacristão trinchava um peixe enquanto a mulher enchia de vinho o copo.

João ficou a espiar aquele gostoso regabofe, até que ouviu tropel de cavalo. Era o dono da casa que vinha vindo.

Esse homem era um bom homem; só que tinha grande birra do sacristão e por isso o sacristão só na sua ausência vinha regalar-se com os bons quitutes que a mulher sabia preparar.

Ao ouvir o tropel do cavalo, a mulher assustou-se e pediu ao sacristão que se escondesse numa canastra vazia que estava a um canto da sala. Depois tirou a mesa, escondeu o peixe e o vinho e deixou tudo como se nada houvesse.

— Que pena! exclamou lá do telhado João Pequeno ao ver a mesa limpa; mas falou mais alto do que devia e o homem ouviu.

— Quem está falando aí? indagou ele.

João Pequeno desceu e contou a sua história, acabando por lhe pedir agasalho por uma noite apenas — e o homem, que era bondoso, não pôs dúvida. Fê-lo entrar e ainda o convidou para a ceia.

A mulher de novo arrumou a mesa e serviu um prato de sopa a cada um. O marido tomou a sua com grande apetite, mas João só pensava no peixe recheado que vira a mulher esconder dentro do forno.

Ao sentar-se ele havia posto debaixo da mesa o saco de couro do cavalo e como estivesse com os pés em cima, cada vez que fazia um movimento o couro ringia. E a cada ringido ele exclamava:

— "Bico calado!" — mas pisava o couro ainda com mais força para que ringisse ainda mais alto. Que é que há dentro desse saco? perguntou o homem.

— Um couro mágico, respondeu o rapaz. Está a dizer que não devemos nos contentar com sopa, visto haver quitutes gostosos escondidos no forno.

O homem levantou-se e foi ver — e encontrando no forno o peixe recheado convenceu-se de que na realidade o couro era mesmo mágico. Trouxe tudo para mesa e os dois regalaram-se.

Finda a ceia, João fez o couro ringir de novo.

— Que diz ele agora? perguntou o homem.

— Diz que atrás do fogão há três garrafas de vinho.

Mordendo os lábios de ódio, a mulher fingiu-se de desentendida e teve de ir lá e trazer as garrafas de vinho. Depois de bebido o vinho, o homem manifestou desejos de adquirir o couro mágico.

— Esse couro será capaz de me fazer aparecer aqui o diabo? indagou ele, já com cabeça meio toldada pelo vinho.

— Como não? Faz tudo quanto a gente pede. Mas o diabo é tão feio que o senhor vai assustar-se. Não há perigo, não sou criança. Que jeito tem ele?

— Muitos jeitos, mas gosta sobretudo de aparecer disfarçado de sacristão.

— Oh, nesse caso deve ser horrível! exclamou o homem. Eu tenho tal ódio a sacristãos que não posso vê-los nem pintados. Mas sabendo que não é sacristão de verdade e sim o diabo com forma de sacristão, creio que não haverá, Faça que apareça o diabo — mas que não se aproxime de mim.

— Vou consultar o couro, disse o rapaz e apertando-o com o pé provocou outro ringido.

— Que diz ele?

— Diz que se o senhor abrir aquela canastra, ali no canto, encontrará o diabo encolhido dentro e disfarçado em sacristão.

Cautelosamente o homem foi abrir a canastra — e recuou com um berro, vendo que de fato lá estava um sacristão todo encolhido e a tremer.

— Irra! exclamou. Já posso gabar-me de ter visto o diabo em pessoa! E é tal qual o nosso sacristão da aldeia.

Depois, para apagar o mau efeito do que vira na canastra, bebeu mais vinho e ali ficou até altas horas em companhia de João Pequeno. Por fim disse: Quanto quer pelo couro mágico? Dou uma quarta cheia de dinheiro.

O rapaz fez-se de rogado, mas tanto homem insistiu que afinal cedeu.

— Pois seja. Aceito em troca do couro uma quarta de dinheiro — mas quero-a bem, bem cheia.

— Está fechado o negócio — com uma condição, disse o homem: levar daqui a canastra com o diabo dentro. Não quero saber do diabo em minha casa.

Combinado o negócio, João Pequeno deu ao sitiante o couro do cavalo, recebendo em troca uma quarta de dinheiro bem medida. Para que pudesse levar tudo aquilo, recebeu ainda, de lambujem, um carrinho de mão. E despedindo-se do homem, o rapaz lá se foi com a canastra de sacristão dentro e a quarta de dinheiro.

Do outro lado da floresta havia um rio muito largo, atravessado por uma ponte. Ao chegar ao meio da ponte João parou e disse em voz alta, a fim de ser ouvido pelo sacristão:

Esta canastra de nada me serve e só irá dar-me trabalho. Pesa como se estivesse cheia de pedras. O melhor a fazer é atirá-la ao rio.

E com estas palavras pôs-se a erguer a canastra, como se realmente fosse arrojá-la às águas.

— Pelo amor de Deus, não faça isso! implorou lá dentro o sacristão.

— Céus! exclamou João Pequeno, simulando grande espanto e medo. O diabo ainda está aqui dentro! Toca a atirá-lo ao rio sem demora para que morra afogado.

— Tenha dó de mim, suplicou o sacristão. Darei uma quarta de dinheiro em troca da minha vida. -Isso já soa melhor, disse João Pequeno abrindo a canastra.

Mais morto que vivo, o sacristão saltou fora, e empurrando a canastra vazia para dentro d’água dirigiu-se à sua casa, onde mediu uma quarta de dinheiro e deu-a a João em paga do que prometera. Com o que já havia recebido do sitiante, o rapaz ficou com o seu carrinho abarrotado de moedas.

— Fui bem pago pelo meu cavalo! disse ele consigo ao chegar em casa e ao amontoar as moedas no chão do seu quarto. Só quero ver a cara de João Grande quando souber da fortuna que ganhei com o couro do meu cavalo. Mas é melhor guardar segredo sobre a minha esperteza.

Em seguida mandou pedir emprestada a João Grande uma quarta.

— Que irá fazer com uma quarta? matutou João Grande desconfiado. E teve a idéia de esfregar visgo no fundo da medida, na esperança de que na volta ela trouxesse algum vestígio do que fosse medido.

E foi justamente o que aconteceu. Ao ser devolvida a quarta vieram três moedas coladas ao fundo.

— Quê?! Não é que o homenzinho conseguiu dinheiro? exclamou João Grande admirado, e apressou-se em ir indagar como ele obtivera tanto dinheiro que chegava a medi-lo em quarta.

— Foi o que recebi pelo couro do meu cavalo, respondeu João Pequeno ao ser interpelado.

— Vou fazer o mesmo, resolveu João Grande — e correu a matar os seus quatro cavalos. Feito isto tirou-lhes o couro e levou-os à vila para vender.

— Couros! Couros! Quem compra couros gritava pelas ruas da povoação.

Vários sapateiros indagaram do preço, mas ao ser-lhes dito que custavam uma quarta de dinheiro cada um, riram-se do vendedor.

— Será que este bobo cuida que dinheiro se mede às quartas? disseram todos.

Certo de obter o preço desejado, João Grande continuou a percorrer as ruas da aldeia, oferecendo os seus couros. E a todos que lhe indagavam do custo, respondia invariavelmente:

— Uma quarta de dinheiro, não dou por menos.

— Ele está mangando conosco! gritaram os sapateiros e tomando boas guascas deram-lhe uma formidável sova. "Couro nele, sem dó nem piedade!" berravam. "Vamos pô-lo fora da cidade a chicote!"

E o pobre homem viu-se obrigado a correr tanto quanto lhe permitiam as pernas, pois nunca apanhara tal surra em toda a sua vida.

Desta vez João Pequeno me paga! rosnou ele furioso, ao chegar em casa. Pico-o em pedacinhos. Nesse meio tempo faleceu a avó de João Pequeno, e embora tivesse sido ela muito má para ele, João sentiu a sua morte. Piedoso como era, colocou o cadáver da ancia na cama, coberto com um cobertor, a fim de ver se o calor a faria viver novamente. Depois de bem ajeitar a defunta, preparou-se para passar ali a noite, velando numa cadeira.

Altas horas entra João Grande, pé ante pé, de machado em punho. Sabendo perfeitamente onde ficava a cama de João Pequeno, aproximou-se cautelosamente e com vigorosa machadada abriu a cabeça da velha, certo de que estava liquidando o rival.

— Toma, para não se fazer de esperto! exclamou ao retirar-se.

— De que escapei! murmurou João Pequeno lá com os seus botões. Felizmente minha avó já estava morta, pois do contrário nem sua alma escaparia!...

Em seguida cuidou de vestir a velha com o seu melhor vestido e foi pedir emprestado ao vizinho um cavalo. Atrelou-o ao carrinho e arrumou o cadáver no assento traseiro, de modo que se mantivesse sentado, mesmo com o veículo em movimento. Feito isto atravessou a floresta. No dia seguinte pela manhã parou numa hospedaria para tomar qualquer coisa. O estalajadeiro era homem rico e bondoso, mas irritadiço em extremo, desses que perdem a cabeça por qualquer coisinha.

— Bom dia, disse ele ao ver João Pequeno entrar. Que é que procura tão cedo em minha casa?

— Estou de passagem, pois vou levar minha avó à vila, respondeu João. Deixei-a lá fora, no carrinho. Não poderá o senhor levar-lhe uma xícara de café? Mas é preciso que lhe fale em voz alta, pois é surda como uma porta.

O estalajadeiro foi levar o café.

— Aqui está o café, disse ao ouvido da anciã. Como era de esperar, o cadáver não murmurou palavra.

— Aqui está o café que o seu neto mandou trazer! repetiu o homem alçando a voz. Mas como a velha continuasse muda, ele resolveu berrar-lhe ao ouvido. Nada adiantou. A velha permaneceu imóvel. Na quarta vez, perdendo a paciência, o estalajadeiro arrumou-lhe com a xícara na cabeça. A violência do choque fez que o cadáver perdesse o equilíbrio e tombasse de lado.

— Meus Deus! exclamou João Pequeno, que só esperava por aquilo. O senhor matou minha avó! Olha só a brecha que abriu na testa da pobre velha! Coitada da minha avó!...

O estalajadeiro lamentou profundamente o acontecido, e para evitar que o caso fosse parar na polícia prometeu dar a João Pequeno uma quarta de moedas e ainda fazer o enterro, contanto que tudo ficasse por isso.

João Pequeno, após alguma relutância, acabou aceitando a proposta. Recebeu uma quarta de dinheiro, assistiu aos funerais da velha custeados pelo estalajadeiro e voltou para casa. Lá chegando, a primeira coisa que fez foi mandar pedir a João Grande uma quarta para medir o dinheiro.

— Que diabo! exclamou o outro surpreso. Teria ele ressuscitado? Vamos ver o que é isso, e resolveu ele mesmo levar a medida a João Pequeno.

Grande foi o seu espanto ao encontrar o outro de perfeita saúde, sem um arranhão, e maior foi o assombro ao vê-lo ainda mais rico.

— Estas moedas são o resultado de um engano, dis— se João Pequeno. Certo de que me assassinava, você matou minha avó, e para não ter trabalho com o enterro eu vendi o cadáver por uma quarta de moedas.

Entusiasmado ante a perspectiva de ótimo lucro, João Grande correu à sua casa e passando a mão no machado abriu a cabeça da sua avó. Em seguida rumou para a cidade vizinha, onde sabia existir um médico que adquiria cadáveres para experiências.

— Quem é o morto e como o obteve? indagou o médico.

— É o cadáver da minha avó. Matei-a para vender o cadáver por uma quarta de dinheiro.

— Santo Deus! exclamou o médico horrorizado. Este homem está maluco! Não diga tal disparate, se tem amor à vida e não quer ver-se pendurado a uma forca.

E tanto fez ver a João Grande a hediondez do seu ato e a grave pena em que incorrera, que o rapaz saltou do seu trole e saiu na disparada. Como o estivesse tomando por louco, o doutor deixou-o fugir em paz.

— Desta vez ele me paga! rosnou João Grande logo que se viu longe da aldeia. Mostrarei a João Pequeno quem sou eu!

— Chegando em casa arranjou um enorme saco e saiu em procura de João Pequeno, ansioso por vingar-se. Encontrou-o, agarrou-o e dirigiu-se com ele às costas ao rio para atirá-lo n’água. Se ele, João Grande, perdera quatro cavalos e a avó, João Pequeno iria perder a vida — morreria afogado.

Para alcançar o rio, João Grande tinha de caminhar vários quilômetros, e o fardo que transportava não era dos mais leves. Passando por uma igreja e ouvindo o badalar dos sinos que chamava os fiéis, resolveu entrar e rezar uma oração, deixando o saco à porta do templo, certo de que o prisioneiro não escaparia.

Ao ver-se só João Pequeno pôs-se a suspirar, lamentando-se em voz alta e fazendo esforços sobre-humanos para escapulir. Um velho pastor, que na ocasião ia passando a conduzir algumas ovelhas, ouviu as lamentações e veio averiguar do que se tratava.

— Ai de mim! suspirou João Pequeno. Tão moço e já condenado a ir para o reino dos céus!

— Pois eu, já sou velho, só sonho com essa ventura, suspirou o ancião.

— Nesse caso a felicidade eterna está ao seu alcance, disse o rapaz. Basta que abra o saco e se ponha no meu lugar. Num abrir e fechar de olhos estará no paraíso.

Sem esperar por mais o pastor desatou o cordel que amarrava a boca do saco e João Pequeno saltou fora. O pastor, então, pediu-lhe que tomasse conta das suas ovelhas e entrou para o saco. João atou sòlidamente o cordel e tratou de afastar-se depressa, levando por diante as ovelhas.

Momentos depois João Grande sai da igreja e repõe o saco às costas. Achou-o mais leve, pois o velho pastor pesava menos que João Pequeno, e atribuiu isso à oração que acabara de rezar. Chegando ao rio, que era largo e profundo, arrojou o fardo às águas, exclamando:

— Desta vez não escapará, e dentro em pouco estará ajustando contas com o demo.

Feito isto vinha voltando para casa muito satisfeito quando, numa encruzilhada, topou João Pequeno a tanger calmamente um rebanho de gordas ovelhas.

— Que diabo! Eu então não o afoguei? Responda!...

— Sim, respondeu João Pequeno. Você atirou-me ao rio, deve fazer aí uma meia-hora.

— Mas como se salvou e onde obteve esses carneiros?

— São ovelhas aquáticas. Vou contar-lhe toda a história, pois foi graças a você que consegui estes belos animais que me vão dar muito dinheiro.

Quando me vi arrojado ao rio, senti a queda vertiginosa e quase desmaiei de medo. Mas assim que o saco encostou no fundo, apareceu uma linda donzela, envolta num manto de gaze branca como a neve e tendo à cabeça uma coroa de louros. Chegou e pôs-me em liberdade, dizendo num sorriso: "Oh, é João Pequeno? Que agradável surpresa! Eis aqui alguns carneiros para você. Mais adiante encontrará muitos outros mais. É um presente que lhe faço." Olhei em torno e vi grande número de animais aquáticos andando de um lado para outro. O fundo do rio estava atapetado de flores. Pequeninos peixes passavam rente aos meus ouvidos, como fazem os pássaros aqui na terra. Que belas mulheres vivem lá embaixo! E que lindas e gordas ovelhas pastam a relva aveludada que nasce nos remansos...

— Se tudo era assim tão bonito, por que não ficou morando lá? É o que eu teria feito.

— Tenho cá as minhas razões. Mas, como ia contando, a ninfa avisou-me de que alguns quilômetros rio abaixo eu poderia juntar outras ovelhas ao meu rebanho. Conhecendo de sobejo o rio, e não ignorando as inúmeras voltas que ele dá, achei mais conveniente sair em terra e tomar por um atalho. Assim encurtaria de meio quilômetro a minha caminhada e entraria ainda mais cedo na posse dos carneiros.

— Que homem de sorte! exclamou João Grande tomado de inveja. Acha que também poderei obter algumas ovelhas se chegar até ao fundo do rio?

— Sem dúvida. Sinto não poder transportá-lo. Se, porém, estiver disposto a ir comigo até a ponte e meter-se num saco, poderei jogá-lo ao rio. O prazer será todo meu.

— Fico-lhe desde já muito grato. Mas advirto-o de que se não encontrar nada do que me falou, farei você ir para o inferno antes do tempo, entendeu?

Depois de garantir ao outro que só havia dito a verdade, João Pequeno dirigiu-se para o rio, acompanhado do rival.

Logo que os carneiros avistaram o rio apressaram a marcha, sequiosos que estavam por matar a sede.

— Veja como correm! disse João Pequeno. É que já estão com saudades do fundo d’água.

— Vamos! Depressa com isso, se não quiser levar uns trancos! rosnou João Grande enfiando-se num enorme saco que um dos carneiros trazia ao lombo. Amarre uma boa pedra ao saco para que afunde bem depressa.

— Não tenha medo. Embora não seja preciso, farei a sua vontade.

João Pequeno amarrou a pedra e depois amarrou fortemente a boca do saco — e empurrou-o ponte abaixo. Segundos depois o fardo desaparecia sob as águas, com estrondo.

E acabou-se João Grande. João Pequeno ficou sozinho no mundo e lá se foi calmamente com os seus carneiros pela estrada afora.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)